30 Janeiro 2023
"Expressões de ódio, racismos e preconceitos contra os pobres e as minorias foram propagadas pelos “cidadãos de bem” e divulgadas nas redes sociais da internet, mas acompanhadas também dos mais diversos graus e modalidades de violência", escreve Sandoval Alves Rocha, doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
O Brasil está estarrecido com as notícias que vieram à tona nos últimos dias, visibilizando a triste situação em que se encontram os povos yanomamis, no Estado de Roraima. A falta de cuidados básicos para com as populações, a grilagem descontrolada e o garimpo ilegal nos territórios indígenas têm sido práticas sistemáticas da política genocida adotada nos últimos anos. Essas ações coadunam com o ódio à democracia que foi exposto nacionalmente no início desse mês, através das depredações das sedes dos três poderes da República.
Estimulados pelo último governo, que foi derrotado nas eleições de 2022, os grupos antidemocráticos não suportam o pluralismo étnico, racial e ideológico, que caracteriza uma democracia. Através da força, da omissão e de atuações orquestradas, eles buscam eliminar a alteridade, tentando inutilmente controlar a sociedade e erradicar possíveis adversários ou inimigos imaginários. Os povos indígenas e comunidades tradicionais representam algumas dessas divergências que tanto amedrontam os grupos autoritários.
O ex-presidente Bolsonaro, antes de tomar posse do governo, prometeu que nenhum centímetro de terra indígena seria demarcado. Ele cumpriu a promessa, atuando eficientemente contra o mais importante dos direitos indígenas. Essa militância contra os povos indígenas se expressou também nas ações antiambientais colocadas em curso. O governo Bolsonaro promoveu os mais elevados índices de desmatamento da Amazônia, superando todos os governos anteriores. Estudos mostram que a partir de 2019, a região perdeu uma área acumulada maior que o Estado do Rio de Janeiro.
A aversão contra esses povos e outros grupos sociais chegou a ser expressa em alto e bom som. Ministros de governo trabalharam pela flexibilização da legislação ambiental, apelando para que se permitisse “a passagem da boiada” numa clara alusão ao projeto de destruição da Amazônia. Insinuações de disparos com armas do fogo, incentivando a eliminação daqueles que pensam diferente foram práticas corriqueiras reproduzidas pelo chefe do executivo federal, políticos e grupos neofascistas.
Expressões de ódio, racismos e preconceitos contra os pobres e as minorias foram propagadas pelos “cidadãos de bem” e divulgadas nas redes sociais da internet, mas acompanhadas também dos mais diversos graus e modalidades de violência. No período do Regime Militar, essas minorias eram cruelmente caçadas e torturadas por colocarem em cheque a falsa moralidade e os procedimentos oficiais através do simples fato de existirem. Descobertas recentes apontam nesse período o funcionamento de campos de concentração especialmente mantidos pelo regime autoritário para torturarem e exterminarem os povos indígenas.
Tudo isso indica que os ataques ao regime democrático não se reduziram aos atos violentos ocorridos no dia 8 de janeiro, em Brasília, nem aos acampamentos que reivindicavam o golpe militar em várias cidades brasileiras, mas tais afrontas à democracia estavam sendo forjadas também através do extermínio planejado das populações indígenas no interior da Amazônia. Essas populações desenvolveram ao longo dos séculos uma convivência harmoniosa com as florestas e territórios, mostrando a viabilidade de sociedades sustentáveis construídas sobre paradigmas culturais radicalmente diferentes dos padrões etnocêntricos vigentes.
Eliminar os povos indígenas e as suas culturas significa reduzir as alternativas viáveis de sociedades humanas capazes de mobilizarem estilos de vida sustentáveis, para além da ditatura do mercado e da racionalidade instrumental que beneficia apenas um diminuído grupo de capitalistas privilegiados. A tentativa de exterminar os yanomamis (e outros povos tradicionais) constitui um ataque à democracia brasileira, uma vez que atualiza os métodos ditatoriais que afundaram o Brasil no obscurantismo e na incivilidade.
Com tais genocídios, temos perdido tradições e culturas capazes de fertilizar a nossa sociedade com valores e conhecimentos inspiradores de novos estilos de vida. O descaso e o desprezo com que tratamos essas populações e o seu patrimônio imaterial mostram a fragilidade da nossa democracia. Vivemos numa democracia cambaleante que busca consolidação e que ainda tem a oportunidade de melhorar, sendo mais dialógica, plural e acolhedora.
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O extermínio indígena e a democracia cambaleante. Artigo de Sandoval Alves Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU