18 Janeiro 2023
"Confiante no peso do passado (mole sua stat), a igreja passa a fechar os olhos e tapar os ouvidos. Nesse sentido, a igreja dos tempos modernos é bem mais cruel e fechada que a igreja medieval".
O artigo é de Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), apresentado na conferência de 15-01-2023, durante o XXIII Encontro dos Padres Casados do Brasil.
Os movimentos de padres casados, espalhados por diversos países, significam algo na atual política sinodal do Papa Francisco? Ou não têm nada a ver? Foi com essa pergunta na cabeça que redigi o texto a seguir.
- Para início de conversa: o termo ‘sinodalidade’, usado pelo Papa Francisco, não é de imediata compreensão. Não é fácil compreender o linguajar do papa, que não é homem de grandes explicações de seu pensamento, mas de lances, no sentido: para bom entendedor, meia palavra basta. Os termos típicos de Francisco apelam para ‘decodificação’.
Como entender expressões como: uma igreja em saída, não autocentrada, não autorreferencial; hospital de campanha; espírito pelagiano (numa recente fala aos cardeais). No avião de volta do Canadá, no decorrer do ano passado, o papa evocou as palavras de um monge do século V aos jornalistas. Duvido que eles tenham entendido.
- Não vejo como tratar esse assunto com seriedade sem abordar temas de uma história ‘de longa duração’. Dado o tempo limitado desta fala, terei de passar por cima de temas que necessitam aprofundamento. Parece até leviandade, mas esse é o desafio desta fala, dada a complexidade do tema ‘sinodalidade’ no pensamento de Francisco.
- Aqui não abordo especificamente nosso movimento nacional brasileiro de famílias de padres casados, mas trato em geral da eventual importância de movimentos de padres casados, em geral, para a política sinodal do Papa Francisco, dado um pressuposto básico que explico em seguida.
- A expressão sinodalidade postula conhecimento relativamente aprofundado da história dos dois mil anos de cristianismo. Nela, há muita coisa subentendido. Há muita coisa, no bojo dela, que só se revela por meio de uma reflexão sobre os dois mil anos percorridos pela tradição de Jesus. É nessa linha que eu pretendo ir com vocês, e, para tanto, penso em dedicar a maior parte de minha exposição a cinco considerações de caráter histórico (1.1 até 1.5) e só dedicar dois pontos sobre o eventual significado de um movimento de padres casados para o que chamo aqui de ‘política sinodal’ do Papa Francisco (2.1 e 2.2).
A história é uma ciência que se baseia na convicção que tudo que se constrói na história da humanidade (e, por conseguinte, igualmente da tradição de Jesus) pode eventualmente ser descontruído, reconstruído¸ adaptado ou reformulado. Eis um pressuposto básico, e penso que o Papa Francisco trabalha com isso.
Assim proponho que dividamos a história de dois mil anos de cristianismo em duas ‘construções’ ou ‘formatações’ eclesiásticas consecutivas, separadas por um pesado reposteiro. Perceber o contraste entre as duas formatações leva quase automaticamente ao tema da sinodalidade e da razão profunda pela qual o papa optou por lançar esse tema.
1.1.1. A Carta a Diogneto (120 dC) apresenta o movimento de Jesus a curiosos e interessados. A Carta esclarece que o movimento de Jesus não é um movimento religioso, que ele não cria ritos próprios nem usa roupa própria ou outros distintivos. Os ritos não importam, o que importa é o espírito dentro do qual são realizados.
Assim, os discípulos praticam o rito do batismo, que lhes vem de João Batista, enquanto a eucaristia lhes vem da antiga tradição do Êxodo (Páscoa). Tiago, irmão de Jesus, que lidera o movimento entre 33 e 62, se mistura com outros judeus ao frequentar diariamente o templo. Ele pertence a um movimento judaico considerado marginal, e é nesse sentido que será condenado à morte pelo sumo sacerdote, em 62.
1.1.2. Outro dado importante. Na Carta aos Hebreus (65 dC) se lê que o movimento não institui sacerdotes próprios. Quando se escreve aí que Jesus é sacerdote na linha de Melquisedec, isso significa que Jesus não pode ser considerado sacerdote no sentido institucional (veja meu livro Em Busca de Jesus de Nazaré, pp. 77-97).
1.1.3. O movimento de Jesus se autodenomina ‘adelfotês’ (1 Pd 2, 17): confraria. Trata-se de um comportamento ‘fraternal’ em casa e na rua, na oficina e no comércio, acima de clausuras culturais, sociais e políticas. Um movimento perseguido e martirizado: sanguis martyrum semen christianorum (Tertuliano, início século III).
(Conto brevemente a história de Constantino e do Concílio de Niceia 325).
1.2.1. No século IV, um pesado reposteiro cai sobre a história anterior. Trata-se de uma formatação que, em pontos cruciais, se distancia da primeira. Observada a partir do ponto de vista da primeira formatação, é uma deformação. Sua força é tamanha que, com o tempo, a primeira formatação cai no esquecimento.
Penetra nas consciências por operações que demoram séculos. Aparecem termos novos, como religio, sacer, sacerdos (qui sacrum facit), catholicus (espalhado pelo mundo inteiro), dioesesis (subdivisão territorial do império), hierarquia (ordem sagrada), oikoumené ‘por onde tiver casas’). Eles vão sendo assimilados e formam um vocabulário novo, que se torna universalmente aceito.
1.2.2. Com a ideia de ‘hierarquia’ aparece o termo ‘clero’ (do grego: klèros: ‘parte da herança (de terras)’. Aparece a ideia de heteronomia: uns herdam, outros não. Com isso se quebra a ideia original da fraternidade. A razão capitula diante do sagrado, misterioso e intocável. Eis um dos grandes mistérios da história da humanidade, que não comento aqui.
1.2.3. Eusébio de Cesareia (século IV) tenta cobrir a lacuna dos primeiros séculos (como foi antes de Constantino?) por meio da ideia de ‘sucessio apostolica’. Ele ‘cria’ listas de bispos sucessivos sem base histórica, pelo menos até o século III. Pois, em referência aos dois primeiros séculos, suas listas carecem de registro histórico confiável.
Eusébio escreve que, em Roma, por exemplo, os sucessores de Pedro se chamam Lino, Cleto, etc. Além disso, ele apresenta Pedro como sucessor de Jesus, contrariando a informação do historiador judeu Flávio Josefo, que, já no século I dC, menciona Tiago como líder do movimento nas primeiras décadas.
1.3.1. Jesus de Nazaré (o Jesus das parábolas e do sermão da montanha) cai no esquecimento e emerge Jesus Cristo Redentor (Salvador): Jesus morreu por meus pecados, derramou seu sangue para minha salvação. Fui lavado no sangue do Cordeiro no batismo. Pelo sacrifício de Jesus, estou salvo. A mancha do pecado se limpou. Deus cravou seu filho na cruz por nossa salvação. Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, tem piedade de nós.
1.3.2. A ideia do Reino de Deus é substituída pela ideia do céu. Os evangelhos se reduzem a textos sobre a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, enquanto o crucifixo se torna o símbolo maior do cristianismo. Eis onde está a grande maioria dos católicos, nos dias de hoje.
1.3.3. O Credo de Niceia apresenta Jesus numa linguagem meta-histórica. A única referência histórica aparece nas palavras: Sub Pontio Pilato passus et sepultus est. E só. Uma referência desconexa.
1.3.4. Essa nova imagem de Jesus carrega consigo uma contradição. Aparecem duas imagens contraditórias de Deus: de um lado, o Criador aparece como grande potentado (um imperador mesopotâmico, um faraó), ofendido pelo pecado, que exige de seus súditos expiação, sacrifício e reconciliação. O povo tem essa imagem quando diz: castigo de Deus; vontade de Deus; desígnio de Deus.
De outro lado, a igreja não para em dizer que Deus é bom. Isso deixa as pessoas desorientadas, perdidas num labirinto de leituras bíblicas, que certos pregadores explicam a seu modo, sem nenhum embasamento exegético sério. Estamos vivendo isso atualmente no Brasil.
Até aqui, só falei da igreja católica dentro da evolução do Ocidente. Não abordo aqui seu acoplamento aos movimentos de colonização, seus encontros com os universos africanos, americanos e asiáticos. Ou seja, não trato da situação da igreja católica nos continentes vitimados pela colonização europeia, como no Brasil. São questões que não abordo aqui.
1.4.1. O modelo do século IV foi um imenso sucesso durante a Idade Média. Na euforia, não se percebeu que ele carregava consigo os germes de sua autodestruição, pois continuava baseada em heteronomia.
A palavra de ordem continuou sendo: obedecer, seguir (mesmo sem entender). Como na famosa pergunta do cerimonial da ordenação sacerdotal: promittis mihi et successoribus meis reverentiam et oboedientiam?
1.4.2. Ora, acontece que a alma da modernidade é exatamente a procura de autonomia. O choque é inevitável. De um lado, a igreja se agarra sempre mais ao modelo medieval, confiante na retroalimentação automática de seu modelo pela simples sucessão das gerações que se encarregariam de ‘transmitir a fé’ de pai para filho, mãe para filha, adulto para criança.
1.4.3. Confiante no peso do passado (mole sua stat), a igreja passa a fechar os olhos e tapar os ouvidos. Nesse sentido, a igreja dos tempos modernos é bem mais cruel e fechada que a igreja medieval.
Doravante, só abre a boca para condenar, perseguir e mesmo levar à morte: inquisição [inúmeras mortes], fogueira [entre 40 e 50.000 bruxas queimadas], Syllabus, índice livros proibidos, condenação, silenciamento, censura por todo canto. Ela passa a enxergar heresia em todo canto.
Assim chega ao absurdo de condenar Santa Joana d’Arc à fogueira por se vestir de homem! A inquisição é um inferno: todos têm medo de todos, pois todos podem acusar o outro de ‘heresia’. Uma exasperação que durou séculos, grandemente fora do alcance da compreensão dos fieis, que continuam o de sempre.
1.5.1. A cada dia que passa, fica mais claro que a igreja católica ocidental se encontra num beco sem saída. Mais uma vez, a sensação só atinge os setores organizatórios, pois o povo ‘fica no de sempre’. Estatísticas são raras, como é de se esperar. (Apresentar talvez algumas estatísticas, só em relação ao caso da França).
1.5.2. Com o crescente número de pessoas que se declaram ‘sem religião’, fica indicado seguir o que nos diz o bom senso: quem está num beco sem saída tem de regressar à encruzilhada e reencontrar o caminho certo. Reconhecer os ‘erros colossais’ inerentes à formatação eclesiástica do século IV, ir além da reviravolta de Constantino e voltar às origens, como se repete tantas vezes nos dias de hoje.
Com Constantino não há jeito, como Dom Helder Camara disse de modo tão direto: querer renovar a igreja em Roma é como querer limpar as pirâmides do Egito com uma escova de dente.
Penso que, com isso, estamos em condições de abordar a política sinodal do Papa Francisco e os aportes que movimentos de padres casados podem trazer para dita política.
Como disse no início, sem o painel histórico que acabo de apresentar em breves pinceladas, a política sinodal do papa Francisco mal se entende. Penso que o Papa Francisco concordaria grosso modo com a apresentação de duas consecutivas formatações da proposta evangélica.
2.1.1. (Conto, em breves palavras, algo sobre a situação atual do projeto: sucessão de etapas, da diocesana, iniciada em outubro 2021, à continental, a ser celebrada em 2023 e, em seguida, à geral: outubro 2023 e 2024).
2.1.2. Pelo que entendo, o fulcro da discussão sinodal é a ‘inclusão’. A inclusão do mundo leigo e feminino num universo tradicionalmente clerical e masculino. Nesse sentido, o tema ‘sinodalidade’ vai bem mais fundo que o tema ‘aggiornamento’ do Papa João XXIII em 1962, fundamento do Concílio Vaticano II.
Pelo que se percebe nos relatos, a instituição percebe, intuitivamente, para onde o papa pretende ir, se sente atingida e fica ‘nervosa’. A impressão que se tem é que tudo está meio ‘empenado’, sem saída clara.
Minha resposta é simples e direta: os movimentos de padres casados têm algo novo a aportar, sim. Pois sua grande novidade consiste no fato que eles, de certo modo, ‘introduzem’ a mulher. Isso pode ser de grande significado. Como explico em seguida, o único modo de incluir seriamente a mulher na igreja, consiste em abandonar a clássica política da heteronomia e aderir à política, tipicamente feminina, da autonomia.
O que quero dizer com isso?
Até agora fora das pautas de planejamento e consulta, a mulher, na realidade, age na igreja, muda a igreja, mexe com as coisas, como exponho brevemente em seguida. Eis o sentido profundo de qualquer movimento de padres casados. Eis um dado patente, embora seja, até hoje, largamente ignorado.
Permitam-me, para embasar o que acabo de dizer, uma breve apresentação do agir da mulher na igreja católica, no decorrer dos últimos 80 anos. Vocês verão que se trata de um agir autônomo. Eis a ‘via feminina’ de atuar na igreja. Os padres casados vão ter de se adaptar a ela.
Na década de 1940 já aparecem os primeiros indícios discretos de que algo está mudando no universo feminino: as mães não mandam mais seus filhos à missa dominical com a fidelidade de antes. Isso repercute imediatamente na igreja, mas quase ninguém percebe o que está acontecendo.
Nem o padre Henri Godin, em seu livro França, país de missão? (1943), nem o sociólogo Gabriel Le Bras, que atribui o declínio na assistência à missa ao estilo de vida na grande cidade, à perda de fé e à secularização, e não fala da mulher.
Quando, nos anos 1960, se constata um rápido declínio de vocações para o sacerdócio, também não se enxerga nisso a mutação na relação do vocacionado com sua mãe.
Os primeiros estudos que apontam nessa direção são dos anos 1990 (Drewermann, E., Kleriker. Psychogramm eines Ideals, Walter Verlag, Olten, 1990). É no silêncio do universo feminino que se opera a desconstrução da secular formatação ‘constantiniana’ da igreja católica.
A grande mudança vem no ano 1962. A pílula anticoncepcional oral entra em cena e seu sucesso é imediato. A mulher verifica que os ciclos sempre repetidos da gravidez, do nascimento da criança, dos longos tempos dedicados ao recém-nascido, dos trabalhos na casa, da preparação dos alimentos, dos cuidados como o marido, não deixam espaço para que ela se desenvolva plenamente, em contraste com o que acontece ao homem que, depois do ato sexual, fica ‘liberado’.
A pílula conquista o mundo em poucos anos. Hoje, no mundo inteiro, milhões de mulheres recorrem à pílula ou a outros métodos contraceptivos (camisinha, dispositivo intra-uterino, diafragma, diversos produtos espermicidas).
A Organização das Nações Unidas (ONU) aprova oficialmente o planejamento familiar e declara que ele colabora com a saúde e o bem-estar da mulher, dos filhos e da família (conferência do Cairo, 1994).
Estamos diante da emergência de um autêntico pensamento autônomo, em contraste com o pensamento heterônomo até então vigente, em relação à mulher. Elabora-se uma nova arquitetura do estado com a finalidade de promover saúde, educação, bem-estar das famílias, assim como atendimento médico-hospitalar baseado na ideia da regulamentação dos nascimentos.
Eis uma iniciativa genuinamente feminina que põe em movimento a maior revolução do século XX, uma revolução silenciosa. Ao controlar a fertilidade, a mulher entra no mercado de trabalho ao lado do homem. A pílula inaugura um tempo novo, não só para a mulher, mas para a sociedade como um todo.
As relações de gênero e trabalho se transformam em profundidade. O mundo se torna melhor, menos hierarquizado. A igreja acompanha e se torna melhor. A mulher entra em cena.
Eis a real novidade dos movimentos de padres casados. Quando a mulher não aparece mais ao lado do padre casado ‘para compor o quadro’, mas começa a agir com autonomia, algo fundamental acontece na igreja, de resultados ora imprevisíveis.
Enquanto as atuais articulações em torno da sinodalidade ainda colocam a questão da mulher em termo de heteronomia (será que se ‘permitirá’ a mulheres o acesso ao diaconato [o sacerdócio, nem pensar]), ela está decididamente no caminho da autonomia (sobre seu corpo, sobre suas decisões na vida, eventualmente sobre sua atuação na igreja).
Não sabemos o que nos aguarda. Pode ter surpresas, e nisso os movimentos de padres casados podem desempenhar um papel importante.
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Significado do Movimento de Padres Casados para a política sinodal do papa Francisco. Conferência de Eduardo Hoornaert - Instituto Humanitas Unisinos - IHU