16 Dezembro 2022
"Há dois anos, o papa Francisco evocou a memória de dom Hélder em alocução à Cúria Romana: 'Os pobres são o centro do Evangelho'", escreve Luís Corrêa Lima, padre jesuíta e professor da PUC-Rio, em artigo publicado por Dom Total, 13-12-2022.
O avanço do processo de beatificação de dom Hélder Câmara faz recordar uma das figuras mais luminosas da Igreja Católica e da humanidade no século XX. Ele é um ícone do amor aos pobres, da fé encarnada, da defesa dos direitos humanos e da renovação da Igreja.
Sua trajetória testemunha importantes acontecimentos e transformações de nosso tempo, com os quais ele se envolveu profundamente. No seminário de Fortaleza, nos anos 1920, Hélder e seus colegas receberam uma formação na qual se abominava o Iluminismo, a Revolução Francesa e o comunismo. Na década seguinte, como jovem sacerdote, ele fez parte da Ação Integralista Brasileira, movimento político que constituía uma versão brasileira do fascismo, fortemente nacionalista e hostil ao comunismo e à democracia liberal. O lema era: “Deus, pátria e família”.
Nos anos 1950, já distante do integralismo, ele foi bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Fundou obras sociais como a Cruzada São Sebastião, para atender moradores das favelas, e o Banco da Providência, que destinava doações e microcrédito a famílias de baixa renda. Foi um dos fundadores da Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB) e do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM).
Na década seguinte, participou ativamente do Concílio Vaticano II. Tornou-se arcebispo de Olinda e Recife e opôs-se regime militar no Brasil. Foi um líder contra o autoritarismo e defensor dos direitos humanos, utilizando os meios de comunicação para denunciar injustiças. Com força cativante e alma poética, pregava no Brasil e no exterior uma fé cristã comprometida com os anseios dos pobres. Foi duramente perseguido pelos militares e acusado de comunimo. Chamavam-no de “Arcebispo Vermelho”. Um de seus assessores mais próximos, o padre Antônio Henrique Pereira Neto, foi assassinado pelo regime. A casa onde morava dom Hélder chegou a ser metralhada. Após a decretação do AI-5, foi-lhe proibido o acesso aos meios de comunicação. Em suas viagens frequentes ao exterior, divulgou amplamente suas ideias e denunciou as violações de direitos humanos no Brasil. Ele foi um adepto do movimento de não-violência ativa.
Dom Hélder Câmara. (Foto: Reprodução | CNBB)
Há dois anos, o papa Francisco evocou a memória de dom Hélder em alocução à Cúria Romana: “Os pobres são o centro do Evangelho. E recordo o que dizia aquele santo bispo brasileiro: ‘Quando me ocupo dos pobres, dizem de mim que sou um santo; mas, quando me pergunto e lhes pergunto por que tanta pobreza, me chamam de comunista’”. É interessante ver que o papa já o trata como santo. A acusação de comunista, feita a dom Hélder, é recorrente aos que aceitam um cristianismo com práticas assistencialistas, mas não comprometido com a justiça social e a promoção humana.
A passagem de dom Hélder pelo integralismo se deu num tempo em que o Estado laico, constituído pela separação entre Igreja e Estado, era considerado apóstata pela hierarquia católica; e o liberalismo político, base da democracia moderna, foi repudiado como “pestilento”. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humano, muita coisa mudou na sociedade e na Igreja. Dom Hélder soube mudar e também ser protagonista de mudanças.
É curioso ver no presente a volta do lema integralista “Deus, pátria e família”. Isto se dá com uma extrema direita que flerta com a ditadura, quer rejeitar as regras do Estado democrático de Direito, anular uma eleição legítima e evitar a alternância de poder. Esta compreensão de Deus e de pátria nada tem a ver com o ensinamento da Igreja Católica. É fruto do fanatismo e da intolerância. Que a memória de dom Hélder, homem de bondade, discernimento e coragem, ilumine e inspire o nosso tempo.
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Dom Hélder Câmara: um ex-integralista nos altares. Artigo de Luís Corrêa Lima - Instituto Humanitas Unisinos - IHU