19 Dezembro 2022
"O improvável realizado nos leva a sonhar com os olhos acordados. Quem tem fome pode ter a certeza que vai comer, quem está desempregado sabe que vai poder trabalhar. Quem suportou todo tipo de injúria e humilhação se sente protegido pela lei que vai valer para todos", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Os fatos são sempre feitos. São feitos a partir de virtualidades presentes na realidade que, surpreendentemente ou por causas previsíveis, acabam vindo à existência.
Nas eleições presidenciais deste ano o improvável aconteceu. Alguém que as Escrituras chamam de o inimicus homo, o homem do mal, no afã de se perpetuar no poder usou todos os meios legítimos e, principalmente, os ilegítimos para conseguir seu objetivo. Ele possui as características do “anticristo” que, para o Novo Testamento, é mais um espírito do que uma pessoa concreta. Pode ganhar corpo num movimento e no seu líder, mas é, fundamentalmente, uma realidade inimiga de tudo que é vida e de tudo o que é sagrado.
A característica do “anticristo” é arrogar-se o lugar de Deus. É sentir-se para além do bem e do mal. E então usa a ambos, mas principalmente o mal: promove a mentira, difunde fake news, estimula a calúnia, incentiva a violência real, assassinando, ou a violência simbólica, propalando difamações: tudo o que provém do transfundo mais ancestral de nossas sombras irrompe com toda a desfaçatez.
O nosso país viveu durante todo um governo sob o espírito do “anticristo”. Nunca se viu em nossa história tanta maldade, tanta mentira estabelecida como método de governo, tanta insensibilidade exaltada como virtude, tanta proclamação da maledicência como forma de comunicação oficial. E como disse São Paulo em sua Epístola aos Romanos: “Aprisionaram a verdade sob a injustiça” (1,18).
É próprio do espírito do “anticristo” ocultar-se no mundo do obscuro, das zonas inimigas da luz e destroçar todos os traços de transparência. É próprio também deste tipo de espírito arrebanhar pessoas que se deixam fascinar pela brutalidade dos comportamentos, pela insensatez das decisões e pela violência infligida aos mais fracos, aos covardemente postos à margem como os pobres, as mulheres, os negros, os indígenas e aqueles que, por si só, não conseguem se defender. Dizem exultantes: “É isso mesmo, tem que se usar de violência; é bom ser grosso e grotesco”; “é isso que tem que ser”. E proclamam aquele com quem se sentem representados como “mito” ou o “nosso herói”.
Mas a experiência secular humana tem mostrado que a noite nunca perdura por todo o tempo, que não há tempestade que, num dado momento, não cesse e dê lugar à alegria do brilho do sol. Pois assim ocorreu em nosso país. Quem tinha a absoluta certeza de triunfar, até por pretensa promessa divina, se viu, no último momento, derrotado. O “mito” se desfez com a rapidez de um pequeno bloco de gelo, simplesmente se sentiu um morto-vivo, como que escondido em sua própria sepultura. As palavras morreram-lhe na garganta. As lágrimas nunca antes choradas, quando era digno chorá-las, não paravam de escorrer pelo rosto intumescido.
Comprova-se o que a história irreversivelmente tem revelado: o improvável acontece. Por isso temos que contar sempre com o improvável e o inconcebível, pois ambos pertencem à história. Quem usou de tudo, mas de tudo mesmo, até do mais sagrado que é o espaço religioso, não impediu que o improvável irrompesse e o derrotasse surpreendentemente.
Demos uns exemplos. O mais improvável dos EUA era que um negro chegasse, um dia, à presidência da república. E Obama chegou. Que um prisioneiro político, com anos de prisão sob trabalhos forçados, também negro, chegasse a ser o presidente da África do Sul, Mandela. Seria totalmente improvável que alguém vindo “do fim do mundo”, praticamente desconhecido, fosse eleito ao supremo pontificado, como o Papa Francisco. Era absolutamente improvável que uma jovem camponesa de 17 anos chefiasse um exército, como Joana d’Arc, vencendo parte do exército inglês na Guerra dos Cem Anos.
Portanto, o improvável existe e pode acontecer. Nenhum fato realiza todas as possibilidades escondidas dentro dele. Inúmeras virtualidades estão lá dentro e quando a história madura ou o mal chegou ao seu paroxismo e tem que ser vencido, então o improvável irrompe vitorioso. Contra todas as expectativas, o inimicus homo perdeu. O improvável o derrotou.
A Brasil voltou a respirar um pouco de ar menos contaminado pelo veneno da injustiça, da covardia e da mentira.
O improvável realizado nos leva a sonhar com os olhos acordados. Quem tem fome pode ter a certeza que vai comer, quem está desempregado sabe que vai poder trabalhar. Quem suportou todo tipo de injúria e humilhação se sente protegido pela lei que vai valer para todos. E a esperança esperante, finalmente, voltou para nos possibilitar um destino mais auspicioso que nos propicie viver com a paz possível, concedida aos filhos e filhas dos bíblicos Adão e Eva.
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O improvável acontece e aconteceu. Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU