29 Setembro 2021
"Nossa cultura tecnificada e materialista perdeu esta percepção do sentido originário do mito e se alimenta de falsos mitos, especialmente, projetados pelo marketing comercial e também político", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor, em artigo publicado em seu blog, 26-09-2021.
Quando uma massa imbecilizada começou a ovacionar a Jair Bolsonaro como mito houve um estremecimento em todo o universo cultural dos mitos. Todas as culturas possuem e cultuam seus mitos. Chamar de mito a alguém de mente assassina, um ser movido por ódio, exaltação da tortura, covarde desprezo de afrodescendentes, indígenas, quilombolas e LGBTI e que se propõe “destruir tudo o que está aí”, culminando com a dizimação de milhares de compatriotas vitimados pela Covid-19 por sua intencionada omissão sem mostrar qualquer sentimento de empatia é atingir no coração o ancestral sentido do mito.
Há uma infinidade de excelentes estudos sobre o resgate do sentido originário do mito. Cito apenas os mais notáveis: a vasta obra em vários tomos de Karl Kerényi, Bronislav Malinovski (seu clássico Myth in Primitive Psychology de 1926), C.G.Jung e sua escola, particularmente Ginette Paris e James Hillman; ainda Micea Eliade, Joseph Campbell, Georges Dumézil, o brasileiro J. Souza Brandão e entre outros e outras. Com referência às religiões de matriz afro ou surgidas aqui como o Santo Daime e a Umbanda compareceram pesquisadores notáveis como Roger Bastide, A. Carneiro, R. Ribeiro, J. Elbein dos Santos entre outros e outras.
O mesmo pode-se dizer do politeismo dito pagão. O monoteísmo judaico-cristão foi severíssimo contra o politeísmo, em especial, do romano. Logicamente os neocristãos não possuíam o nível de consciência e os instrumentos de interpretação de que hoje dispomos com as contribuições da nova hermenêutica, da psicologia do profundo,do estruturalismo e da nova antropologia. Eles tomaram aquelas divindades, como também no Brasil concernente às entidades das religiões afro (o axé,os orixás etc) como realidades existentes fora de nós. A pesquisa contemporânea vê nelas não entidades externas mas expressões de energias psíquicas internas, poderosas e primordiais, expressas por figuras concretas externas que devem ser adequadamente interpretadas com os critérios referidos. Já observava E. Durkheim; a religião tem mais a ver com energias poderosas do que com doutrinas.
Estas energias são tão profundas e misteriosas que não se deixam captar conceitualmente nem ontem nem hoje. Usam-se então figuras arquetípicas, narrativas plásticas que dão corpo a estas energias que irrompem, se agitam e vivem dentro de cada ser humano. Nesse sentido elas são transculturais e perenes como perene é a condição humana. O exacerbado monoteísmo combatendo o politeísmo, fechou muitas janelas da alma e lançou para o inconsciente energias que teriam colaborado enormemente para a humanização e o enriquecimento do psiquismo humano (evitando o surgimento do machismo e do patriarcalismo que tantos males produzem), caso fossem entendidas em seu sentido originário profundo.
Sirva de exemplo a deusa grega Afrodite: é uma energia arquetípica (das profundezas do inconsciente coletivo) concernente àquilo que subiste em nós: a sexualidade, o enamoramento, a beleza e a sedução e,em seu lado de sombra, a infidelidade e a prostituição. Ou a figura simpática do Preto Velho, sempre sábio e protetor ou o tão incompreendido e difamado Exu, o portador da energia cósmica do Axé que vitaliza todos os seres. São energias vitais que movem a vida humana. Que linguagem adequada encontrar para exprimi-las consoante a sua natureza? O mito e as divindades (Orixás, Oxóssi, Iansã, Xangô ou panteão católico de santos e santas) tentaram expressar plasticamente a vigência destas forças primordiais.
Pelo que sabemos,foram os gregos os primeiros a usar a palavra mito num duplo sentido: como força originária de vida ou como um história inventada. No sentido primeiro e originário, o mito constitui uma realidade arquetípica, uma energia fontal que sustenta o ser humano vivo,criativo e aberto a todo tipo de relação. O mito não é inicialmente uma narrativa, mas uma realidade vivida que enraíza o ser humano no seu chão e com toda a realidade à sua volta e lhe confere sentido de pertença e orientação. Abro um parêntesis para ilustrar o significado originário do mito.
Quando fui lançar na UFRJ meu livro “O Casamento do Céu com a Terra: contos dos povos indígenas do Brasil”(2014) comecei dizendo: “Quero apresentar aqui uma série de mitos indígena”… Nisso me atalhou imediatamente Ailton Krenak, grande liderança nacional indígena:”Esses mitos não são mitos como vocês entendem, coisa obsoleta de indígenas; são verdades vitais que nós vivemos e nos oferecem luz para o nosso caminho. O rio Doce é nosso irmão e as montanhas devoradas pela fúria impiedosa da mineradora Vale são nossas mães e irmãs violentadas”. E arrematou: “vocês têm seus mitos dos quais não têm sequer consciência: o mito da tecno-ciência, do desenvolvimento ilimitado, do consumismo..; o que eles trouxeram para vocês senão desigualdade, conflitos, ansiedade e acumulação de bens materiais que não satisfazem os anseios da alma?".
Produziu-se um grande silêncio. Foi então que antes de falar dos belíssimos “mitos” vivenciais indígenas, especialmente, aqueles ecológicos que nos ensinam a criar um laço afetivo com a natureza e com os animais, tentei explicar aquilo que estou explanando agora: os mitos são as realidades fundadoras do sentido da vida humana situada na região da qual nos sentimos parte e parcela, aquela vivência que nos liga à Terra e ao Céu e nos oferece uma significação integradora da interdependência de todos com todos com os seres da natureza. Nesta acepção positiva até se fala em teologia no “mito cristão”: tudo aquilo de sagrado e de divino que representa o designio de Deus para o nosso mundo,através de sua auto-comunicação por Jesus e por seu Espírito.
Nossa cultura tecnificada e materialista perdeu esta percepção do sentido originário do mito e se alimenta de falsos mitos, especialmente, projetados pelo marketing comercial e também político. Por isso andamos errantes, solitários e perdidos no meio de um mundo de aparatos e do consumismo sem alimentar o melhor de nós mesmos: a nossa interioridade, nossa capacidade de admirar o despontar de uma flor, de sentir a brisa leve, de se encantar com o nascer e o pôr do sol, de celebrar a alegria de estarmos juntos e dialogarmos sobe nossas vidas, sucessos e dissabores.
Os mesmos gregos que refletiram tão profundamente sobre o mito vivencial também nos advertiram acerca do mito inventado, descolado da vivência da “anima” (a dimensão sensível e simbólica da realidade), construído como uma narrativa falaciosa para atrair as pessoas e deixá-las fascinadas e fanatizadas em função de interesses escusos e de sentimentos indignos.
Tal mito forjado, falso, impiedoso, insensível e odiento é esta triste e lamentável figura que escandaliza a polis, a vida social e degrada a política como forma civilizada e humanizada de convivência entre os cidadãos. E o faz, descaradamente, até no Foro mais alto que é a ONU. Este (des)governa nosso país sem qualquer sentido de dignidade do cargo, usando continuamente mentiras e ataques autoritários à democracia, ao STF e às instituições políticas nacionais. Seu nome sequer merece ser citado para não ofender a linguagem.
Tudo o que representa um falso mito e vem construído sobre o ódio e a mentira, como ele está fazendo, jamais foi e será fundamento de uma convivência humana aceitável. Ele ruirá como um castelo de areia.E grande será sua queda. Isso não é profecia, é lição da história.
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O mito verdadeiro e o mito falso (Bolsonaro). Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU