19 Dezembro 2022
"Monsenhor Jonas Abib tinha muito claro que o Reino de Deus não é deste mundo, que o poder é uma ilusão oferecida por lobos, que se transforma em um nada, que só se apega a este poder os incautos."
Antonio Carlos de Melo Sá (Toninho Kalunga), 50 anos, é leigo orionita, morador de Cotia-SP, atuante no Santuário São Luis Orione e voluntário no Pequeno Cotolengo Paulista, é um dos delegados do CELAM e um dos representantes católicos brasileiros na 1ª Assembleia Eclesial da America Latina e Caribe. É militante dos direitos humanos, inserido nas lutas do povo. Foi conselheiro tutelar, vereador de Cotia e coordenador de formação política do Diretório Estadual do PT de São Paulo. Atualmente se dedica à formação de núcleos de cristãs e cristãos, oriundos da Teologia da Libertação, militantes dos movimentos e pastorais sociais, no combate ao fascismo religioso.
Acredito que muitas coisas, como disse o apóstolo Paulo, que hoje vemos como por um espelho, confusamente, posteriormente as veremos face a face. "Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido" (Coríntios 13,12).
O monsenhor Jonas Abib fez sua páscoa. Certamente seu legado, história e fé o levará aos altares católicos e sua memória será lembrada. Penso que o monsenhor Jonas Abib e o padre Leo estão para a Renovação Carismática Católica assim como Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Luciano Mendes estão para a Teologia da Libertação. A mesma Igreja, o mesmo corpo, a mesma cabeça que é Cristo, mas com funções diversas e necessárias para o caminhar da nossa fé.
O padre Jonas Abib é uma figura rara. Fará falta em nosso meio. Um gigante em sua ação pastoral, um evangelizador nato. Um homem que acreditou no chamado de Deus e construiu um verdadeiro império de comunicação a partir deste chamado.
Não há católica ou católico brasileiro neste momento histórico que frequentem uma comunidade que não passe pela base formativa da Canção Nova, de forma direta ou indireta, no sentido de sua influência. A canção nova é certamente o maior centro católico de comunicação do Brasil.
Braço comunicativo da Renovação Carismática Católica (RCC), a Canção Nova é fruto de uma atividade pastoral que começou na base, no meio dos jovens, dos pobres e do povo. E aqui está o primeiro ponto a ser reverenciado pela prática libertadora de Pe. Jonas Abib. Para além da teoria, Jonas Abib teve uma prática inserida no meio do povo, com especial predileção pelos jovens das periferias.
Festiva e comprometida com seu jeito de promover a fé, a RCC inicia seus passos no Brasil num tempo de triste memória. A ditadura militar que empurrava o país para a obscuridade dos calabouços da DOI-Codi (polícia política de extrema-direita dos tempos da ditadura), naqueles tempos, a ditadura brasileira vivia seu auge. Pessoas eram mortas, presas, torturadas e cerceadas em sua liberdade através de um regime antidemocrático civil/militar. Deus sempre manda alívio e sopros de brisa até mesmo no sofrimento infernal. Foi nesse contexto que as pequenas comunidades de oração se encontravam.
Diante das turbulências políticas, o padre Jonas Abib não se intimidava e convocava jovens para "oferecer um ano de suas vidas para Deus" e, assim, propagava-se a experiência de ser uma Igreja alegre, jovem e popular.
Desse modo nasce, no meio da mais terrível ditadura da história da República brasileira, um jeito de ser Igreja que curiosamente, ao mesmo tempo que trazia muitos jovens, ajudava profundamente a driblar uma questão umbilicalmente ligada ao momento político que o país atravessava com sua ditadura civil/militar. Neste mesmo tempo, foram criadas centenas, talvez milhares, de grupos de jovens espalhados pelo Brasil afora. Então, num momento em que reuniões eram proibidas em sindicatos, associações, clubes ou qualquer outra atividade, eram nos grupos de jovens que essa imposição arbitrária era quebrada.
É impossível para qualquer poder terreno ser maior que o amor de Deus.
Quem viveu a experiência de participar de um grupo de jovens e fazer retiros entre o final dos anos 70 e início dos anos 90, pôde se sentir em casa, dentro de duas formas de ser Igreja que se complementam. O Concílio Vaticano II e a Conferência Episcopal da América Latina, em Medellín, em 1969, ativaram, ao mesmo tempo, dois pontos-chave da nossa Igreja.
A verdade é que o Concílio Vaticano II abriu as portas da Igreja para os novos tempos. E, a partir desta verdade, surge uma outra na América Latina. Medellín abriu as portas da Igreja para os pobres como um todo e para os jovens em particular. Esses dois fenômenos, uma Igreja moderna atrelada a uma juventude ativa e empolgada com a acolhida da Mãe Igreja, estando emparedada por um sistema político perverso, deu o ponto necessário para a consolidação da Teologia da Libertação.
Ato contínuo e irmão siamês dos acontecimentos, essa mesma juventude católica ao mesmo tempo era apresentada a uma Igreja que se importava com os problemas cotidianos do povo, era apresentada a uma espiritualidade alegre, transcendental, cativante e encorajadora nos “Retiros de oração no Espírito Santo”, com os “retiros de deserto”, “encontros de jovens”, em finais de semana em casas de retiro que pipocavam em diversas experiências de espiritualidades católicas. Assim, caminhando juntas, a espiritualidade da RCC em conjunto com prática libertadora da TdL se encontravam nas Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, dentro das periferias urbanas e rurais Brasil afora e beberam todos da mesma fonte.
Assim resume o teólogo Leonardo Boff, e fundador da Teologia da Libertação no Brasil, a importância da RCC: “A quarta irrupção foi o surgimento da Renovação Carismática Católica a partir de 1967 nos EUA e na América Latina a partir dos anos 70. Ela trouxe de volta a centralidade da oração, da espiritualidade, da vivência dos carismas. Criaram-se comunidades de oração, de cultivo dos dons do Espírito Santo e de assistência aos pobres e doentes. Esta renovação ajudou a superar a rigidez da organização eclesiástica, a frieza das doutrinas e rompeu com o monopólio da palavra detida pelo clero, abrindo espaço para a voz livre dos fiéis.”
Ou seja, podemos dizer que o padre Jonas Abib foi o precursor e deu ao povo brasileiro a oportunidade de conhecer, sentir e se entregar na presença constante e bela da terceira pessoa da Santíssima Trindade - o Espírito Santo. Foi nesse momento que nasceu a Canção Nova. Sim, era um nome apropriado e adequado para aquele período. Às vezes, quando reflito sobre estas coisas, penso que a Canção Nova só erra quando se deixa levar por conselhos que buscam o poder e não a libertação. Não é à toa que a extrema-direita católica (um nome que nem sequer deveria existir, mas lamentavelmente existe) fica rosnando contra a Canção Nova todas as vezes que ela acerta.
A partir de meados da década de 90, começa um fenômeno de crescimento exponencial da RCC no Brasil, e com este crescimento, a erva daninha do poder. Inicia-se um distanciamento e, em certa medida, a não aceitação de pessoas que não se consideravam pertencentes aos ritos próprios daquele movimento ligado à Canção Nova. Este afastamento abriu um caminho que talvez seja o ponto mais crítico que se possa fazer, a partir do meu ponto de vista, à RCC.
Entrando nos anos 2000, a RCC já era o maior movimento católico do Brasil. Até este período, a política partidária era, de certo modo, repelida pelo padre Jonas, que queria se proteger e proteger sua obra da lógica mesquinha do poder dos deputados e assemelhados.
Mas não conseguiu resistir e até sucumbiu a isso, mesmo que a contragosto. A partir de 2010, a RCC passou a tomar uma postura de defender uma pauta ligada aos ideais da direita política e, por muito pouco, não descambou para a extrema-direita, como o apoio explícito e vergonhoso a Jair Bolsonaro em 2018, que deu vazão a um desvirtuamento completo da RCC e, por consequência, da Canção Nova.
O negacionismo de grande parcela da RCC e a radicalização política de direita levaram muitos de seus membros à internação com quadros graves de covid e lamentavelmente muitos à morte, com a insistência de fazer aglomerações, não querendo abrir mão dos grupos de oração, apenas e tão somente para apoiar um político que desgraçadamente passou a ser um mito, um profanador da fé, pois, afinal de contas, era apenas "uma gripezinha", mesmo diante da falta de vacinas e da pandemia explicita de covid-19.
O padre Jonas Abib, tal precisa ser dito, já não tinha mais vigor físico para combater isso e foi levado por interesses mesquinhos e inescrupulosos a adotar posições políticas em sua velhice que jamais defendeu, nem defenderia, durante sua coerente vida com o Evangelho, com os pobres e marginalizados. Basta ver o tamanho da obra que a RCC e a Canção Nova têm na defesa dos moradores de rua, dos dependentes químicos e nas periferias mais extremas em todo o país.
Mas por que faço este título, com a provocativa pergunta sobre o que o padre Jonas Abib tem a ensinar a nós, ligados à Teologia da Libertação? É que o monsenhor Jonas Abib fez a experiência de não ter medo de levar o Evangelho aos pobres e às periferias. Eu sempre o respeitei profundamente, pois sempre compreendi sua fé e mesmo distante admirei seu trabalho, pois sempre estive inserido nestas mesmas periferias e, se não fosse sua resiliência e jeito, muitos milhares de jovens teriam se perdido na fé. Eu me incluo entre eles.
A ação da RCC fez com que fosse retirada das mãos de uns poucos, devolvendo o Espírito Santo ao coração do povo. O trabalho de base, de aconselhamento, de apoio a familiares de presidiários, com os moradores e moradoras de rua e seus sopões, nas casas de abrigo para crianças, e na recuperação de usuários de álcool e drogas, nas favelas e cortiços. Os carismáticos estão lá, no meio do povo. E é aqui que devemos, todos nós, estar.
Este é o aprendizado. Que queiramos uma Igreja inserida no meio do povo, que seja profética e que fique indignada com cada injustiça praticada contra os pobres. Mas que seja profundamente alegre, que não abra mão de uma espiritualidade ativa e altiva, que possa levar Deus para além das mazelas humanas e que, sem abrir mão de defender a dignidade da vida e vida em abundância para todos os filhos e filhas de Deus, possa também garantir uma espiritualidade que seja libertadora e todos os dias renovada, para que, finalmente, possamos pensar nas pessoas em sua integridade, física, intelectual e espiritual, pois não será carismática se não levar à libertação deste sistema que oprime e mata o corpo e a alma. E assim era monsenhor Jonas Abib.
Bem-aventurado é todo aquela e aquele cujos corpos tiveram a vida ceifada, mas que não corromperam a alma com o egoísmo do poder medíocre que usa o nome de Deus para enganar o povo e enriquecer-se com dinheiro e poder passageiro. Estas moedas apodrecem e apodrecidas e enferrujadas, darão testemunho contra estes que exploram e maltratam os pobres (Tiago 5,1-5).
Muitos pensam que o egoísmo é um mal que acomete apenas os que pensam em bens materiais. Afirmo que o maior de todos os egoístas são aqueles que acreditam que sua fé por si só pode lhe salvar e que avaliam os outros a partir de sua pequenez. (Lucas 18,9-14)
Foi a Renovação Carismática Católica que renovou por dezenas, centenas de vezes a minha fé e me fez compreender, depois de muita insistência, o meu chamado a ser Igreja no meio dos pobres e com os pobres e o motivo pelo qual minha fé me leva à Opção Preferencial pelos Pobres.
Foi a RCC que me fez enxergar a necessidade de uma espiritualidade encarnada no meio do povo, com ele orando, se alegrando e chorando, se deixando levar por Sua vontade. Sabendo que sou pó, e apenas isso. Eu poderia falar das contradições que enxerguei na obra de monsenhor Jonas Abib, como um capítulo de seu livro “Sim, sim. Não, não?” quando trata das religiões de matizes africanas? Sim, mas ele próprio, na mesma obra e depois publicamente, disse que jamais pretendeu ofender religiões alheias, além do mais para cada contradição dele, eu precisaria primeiro avaliar as milhares de contradições minhas.
A obra, o legado e a fé do Pe. Jonas Abib são inspiradores. Elas salvaram muitas milhares de vidas e continuam salvando. Sua obra, como o Papa Francisco gosta de dizer, visitou as periferias humanas e existenciais de milhões de pessoas. Sua vida é fruto de um milagre realizado por Deus. Esta vida, portanto, merece e deve ser reconhecida como sendo uma obra de Deus e sua memória deve ser venerada como um santo deste mesmo Deus. O monsenhor Jonas Abib tinha muito claro que o Reino de Deus não é deste mundo, que o poder é uma ilusão oferecida por lobos, que se transforma em um nada, que só se apega a este poder os incautos.
Que o monsenhor Jonas Abib descanse em paz e que suas bênçãos, intercessões e obras possam ser o indutor necessário para que possamos nos alegrar na presença de Deus diante de mais um de seus santos.
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O que a Teologia da Libertação tem a aprender com o legado do mons. Jonas Abib? Artigo de Toninho Kalunga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU