08 Setembro 2010
Entender o cenário da presença das religiões, hoje, no Brasil é o intuito de Faustino Teixeira na entrevista concedida à IHU On-Line, por email.
O teólogo busca compreender a presença e a aceitação do espiritismo no Brasil e traz elementos para entendemos a aproximação desta religião ao catolicismo. “O Brasil foi sempre reconhecido como o país do sincretismo religioso, pela rica capacidade de ressemantização das identidades religiosas, mediante processos de relações e aprendizados com os diferentes. Nas últimas décadas temos verificado, com preocupação, expressões crescentes de exclusivismo religioso, com toques de ‘beligerância iconoclasta’”, conta ele.
Faustino Teixeira é graduado em Ciência das Religiões e Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Fez mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado, na mesma área, pela Pontificia Universidade Gregoriana, de onde recebeu o título de pós-doutor. Atualmente, é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. Entre seus diversos livros publicados, destacamos: Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso (Aparecida do Norte: Santuário, 2008) e Teologia das Religiões: uma visão panorâmica (São Paulo: Paulinas, 1995). Faustino Teixeira seleciona, organiza e edita as Orações inter-religiosas, publicadas semanalmente, sempre às quintas-feiras, no blog do IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como explicar a presença e a aceitação do espiritismo num país de marcada presença católica?
Faustino Teixeira – O campo religioso brasileiro vem sofrendo mudanças substantivas nas últimas décadas. O catolicismo vai perdendo aos poucos sua tranquila hegemonia, tendo que conviver com uma dinâmica religiosa marcada pela presença crescente dos pentecostais e dos “sem religião”. Um fenômeno recorrente a partir dos anos de 1980 é o “trânsito religioso”. Pesquisas realizadas por Ronaldo de Almeida [1], indicam que uma em quatro pessoas mudou de religião no Brasil nos anos de 1990 e uma em cada três na Grande São Paulo, nos anos 2000.
Outra pesquisa realizada em 1994, desenvolvida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), sobre a presença dos evangélicos, apontou que “cerca de 70% dos evangélicos do Grande Rio não nasceram, nem foram criados num lar evangélico. Entraram na igreja por adesão voluntária, rompendo com a religião dos pais”. A pesquisa constatou que a maior parte desses evangélicos veio do catolicismo (61%), que é o maior “doador” de fiéis, e em seguida aparece a umbanda ou candomblé (16%) e o espiritismo kardecista (6%).
Os dados do último Censo IBGE (2000) indicam que o catolicismo ainda responde por 73,8% da declaração de crença. Trata-se, porém, de um catolicismo marcadamente plural. Como assinala Carlos Brandão [2], o nosso catolicismo é uma religião que abraça a diversidade e que possibilita diversas alternativas de viver a crença e a fé. Uma religião “em que Deus pode ter muitos rostos”. Pierre Sanchis [3] vai ainda mais longe, ao afirmar que “há religiões demais nesta religião”. A plasticidade é uma marca característica da religião no Brasil. Como diz o personagem Riobaldo Tartarana [4], no Grande Sertão: Veredas,
“Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces do compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca.”
Estudiosos e observadores do campo religioso no Brasil destacam a presença de uma “impregnação espírita”, ou “querela dos espíritos” na sociedade brasileira que escapam à percepção do Censo. O Censo de 2000 indicou que a declaração de crença espírita envolve cerca de 1,4% da população, em torno de 2.337.432 adeptos. Mas não há dúvida de que o “imaginário espírita” tem uma abrangência muito maior. Em entrevista concedida à IHU On-Line (nº 169 – dezembro de 2005), Bernardo Lewgoy [5] sublinhou a “alta ressonância social” das crenças espíritas no Brasil, que escapa de sua vinculação exclusiva aos centros espíritas. Para ele “o kardecismo é um caso de importância qualitativa muito superior à quantitativa”.
Vale também lembrar que o povo brasileiro tem uma familiaridade particular com os “espíritos”. Como assinala com razão o antropólogo José Jorge de Carvalho [6], “são dezenas de milhões de brasileiros que entram em transe regularmente, recebem entidades ou estabelecem relações personalizadas (de perturbação ou apoio) com a mais variada gama de espíritos”. E deixar-se habitar pelos “espíritos” é também fator de afirmação de uma dignidade singular, de intensificação da qualidade do ser sujeito, como mostrou Roger Bastide [7] em sua bela reflexão sobre a dança dos deuses:
A forma de viver a religiosidade no Brasil é bem mais alargada do que aquela declarada no Censo. Há no Brasil o fenômeno recorrente da dupla pertença. Em pesquisa realizada por Luiz Eduardo Soares [8] e Leandro Piquet Carneiro [9], em 1990, por solicitação e patrocínio do Centro João XXIII (Ibrades), com base nos dados do Gallup, constatou-se que 46% dos católicos praticantes acreditam na reencarnação. Dado também confirmado por outra pesquisa realizada no mesmo ano na Arquidiocese de Belo Horizonte. Em levantamento feito com paroquianos de frequência regular nas missas da Arquidiocese, com aplicação de 270.000 fichas, verificou-se que 54,8% dos entrevistados declararam acreditar na reencarnação.
IHU On-Line – Há ainda outros elementos que ajudam a compreender essa aproximação?
Faustino Teixeira – Não há como tratar dessa familiaridade que aproxima a tradição espírita do catolicismo, bem como da receptividade peculiar que a tradição kardecista vem alcançando no Brasil, sem assinalar a sua interface com o catolicismo. Como mostrou José Jorge de Carvalho, “o espiritismo é também cristão ou neocristão, na medida em que reintroduz, revaloriza noções cristãs tais como a de caridade. Ele não só ressemantiza aspectos do cristianismo como introduz o mundo dos espíritos de uma forma agora muito mais ampla, complementando a doutrina equivalente praticada pelas tradições esotéricas e pelas religiões afro-brasileiras”.
Alguns pesquisadores que se dedicam ao estudo do espiritismo no Brasil, como Bernardo Lewgoy e
Chico Xavier |
Sandra Stoll [10], falam de um “ethos católico do espiritismo brasileiro”. O exemplo mais claro disso é a presença de Chico Xavier [11]. Em seu livro sobre o espiritismo à brasileira (2003), Sandra Stoll assinala que “esse modo católico de ser espírita, concretizado por Chico Xavier através do exemplo de vida, parece ser responsável, em larga medida, pela transformação dessa que era uma doutrina estrangeira em religião integrante do ethos nacional. Da moda de salão, da atividade de cunho terapêutico, o Espiritismo passou a integrar o imaginário brasileiro”.
Esse imaginário vem reforçado por uma impressionante literatura espírita e sua presença nos meios de comunicação social, particularmente nas telenovelas de caráter espírita. Só Chico Xavier contribui com mais de 400 livros psicografados, em 70 anos de produção. Para Sandra Stoll, “num momento em que a inserção na mídia, em especial a televisão, se destaca como fator de divulgação doutrinária, constituindo um novo campo de disputa no espaço público, o espiritismo vem alargando sua inserção social, especialmente entre os segmentos de classe media, por meio de investimento no campo literário”. Vale também ressaltar o sucesso de bilheteria de filmes como Chico Xavier e o mais recente, Nosso lar.
IHU On-Line – O que o senhor pode nos falar sobre as perseguições que os cultos de origem africana sofreram a partir da Proclamação da República, cuja inspiração positivista os via como motivo de atraso e, por isso, tentou proibi-los, inclusive pela força da lei?
Faustino Teixeira – Em clássico artigo publicado na revista Religião e Sociedade, de março de 1986, a antropóloga Yvonne Maggie [12] aborda a questão da repressão sofrida pelas religiões mediúnicas no Brasil, e o faz por intemédio de pesquisa realizada nos arquivos de processos judiciais instaurados para julgar acusados de práticias ilegais de medicina, curandeirismo e magia. Serve-se em particular do decreto 847 da Código Penal de 1890, o primeiro grande conjunto de leis a reger a nova ordem juridical associada ao nascente regime republicano.
O artigo 157 prescreve prisão e multa para aquele que “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública”. Estava, assim, configurado um “medo do feitiço”. Esse tema foi também objeto da dissertação de mestrado de Emerson Giumbelli [13], depois publicada em livro: O cuidado dos mortos. Uma história da condenação e legitimação do Espiritismo”(1995). Em seu trabalho, Giumbelli destacou que as ações policiais e os processos judiciais contra grupos filiados à doutrina de Kardec antecedem ao Código Penal de 1890, e indica referências a isso já em 1881.
IHU On-Line – Por que o espiritismo, antes tão condenado pela Igreja Católica, agora passou a ser perseguido pelas núcleos neopentecostais?
Faustino Teixeira – O Brasil foi sempre reconhecido como o país do sincretismo religioso, pela rica capacidade de ressemantização das identidades religiosas, mediante processos de relações e aprendizados com os diferentes. Nas últimas décadas temos verificado, com preocupação, expressões crescentes de exclusivismo religioso, com toques de “beligerância iconoclasta”. Em 1995 teve o triste episódio, conhecido como “chute na santa”. Mais recentemente atearam fogo na imagem de Santo Expedito, no interior de São Paulo (Ourinhos).
Exercícios de intolerância religiosa ocorrem em templos neopentecostais e mesmo em circuitos da renovação carismática católica. No livro do bispo Macedo [14], Orixás, caboclos e guias, com inúmeras edições, busca-se identificar o apoderamento do demônio com a participação direta ou indireta nos centros espíritas ou com os trabalhos realizados pelas tradições religiosas afro-brasileiras. Não muito distante, temos também a linguagem etnocêntrica e excludente do padre Jonas Abib [15], da Canção Nova, em seu livro Sim, sim! Não, não!, com mais de 400 mil exemplares vendidos, e que provocou intensa reação na Bahia. Sobretudo, algumas igrejas pentecostais que se firmam a partir década de 1970, dando ênfase ao tema da libertação e do exorcismo, os adversários simbólicos são bem definidos: sobretudo as religiões afro-brasileiras, e de forma mais ampla, as crenças que compõem o repertório católico-afro-kardecista, povoado por santos, energias, espíritos, promessas, trabalhos, feitiços etc.
Na já mencionada pesquisa realizada pelo ISER em 1994, sobre os evangélicos no Grande Rio, verificou-se que eles “se percebem como militantes de um grande confronto espiritual. 89% acreditam na existência de religiões demoníacas”. Nas respostas dos evangélicos entrevistados, 95% atribuem este caráter à umbanda e ao candomblé; 83% ao espiritismo kardecista; 52% ao ateísmo e 30% ao catolicismo. A demonização é palavra corrente nos livros doutrinais, nos cultos e rituais desses núcleos neopentecostais e, em especial, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Mas curiosamente, como mostrou Ronaldo de Almeida, em trabalho sobre a guerra das possessões, a IURD acaba elaborando uma “antropofagia da fé inimiga”. Por mecanismos singulares de “fagocitose religiosa”, ela acaba assimilando traços essenciais das crenças que são combatidas.
Notas:
[1] Ronaldo de Almeida é graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas. Na Universidade de São Paulo, ele realizou doutorado em Ciências Sociais, com ênfase em antropologia social. É pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e, atualmente, é professor da Unicamp. Concedeu a entrevista “Quem são os demônios da Igreja Universal?” à IHU On-Line em 21-11-2009.
[2] Carlos Brandão é graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília e doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor na Universidade Estadual de Montes Claros, na PUC-SP, na Universidade Federal de Uberlândia e na Unicamp.
[3] Pierre Sanchis, cientista da religião e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.
[4] Riobaldo Tartarana é uma criação de Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas. No desenrolar dos acontecimentos, apaixona-se por Diadorim. O grande problema é que há um segredo oculto, tanto a Riobaldo quanto ao leitor. Diadorim, embora sendo um dos companheiros do bando de cangaceiros dele, é uma mulher disfarçada de homem.
[5] Bernardo Lewgoy é filosofo e antropólogo. Atualmente, é professor na UFRGS. Concedeu entrevista à edição 169 da IHU On-Line.
[6] José Jorge de Carvalho é graduado em Composição e Regência pela Universidade de Brasília. É mestre e doutor em Antropologia Social pela The Queen`s University Of Belfast. Recebeu o título de pós-doutor pela University of Florida.
[7] Roger Bastide foi um sociólogo francês. Em 1938 integrou a missão de professores europeus à recém-criada Universidade de São Paulo, para ocupar a cátedra de sociologia. No Brasil, estudou durante muitos anos as religiões afro-brasileiras, tornando-se um iniciado no candomblé da Bahia. Morreu em 1974.
[8] Luiz Eduardo Soares é antropólogo e cientista político. Atualmente, coordena o curso de especialização em Segurança Pública pela Universidade Estácio de Sá e é idealizador das propostas para segurança pública candidata à presidência Marina Silva. Concedeu à IHU On-Line, em 16-07-2008, a entrevista `Com a polícia que temos a sociedade não está segura`.
[9] Leandro Piquet Carneiro é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É especialista em Métodos Quantitativos de Pesquisa Social e Política pela University Of Michigan. É mestre e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Pela Universidade de São Paulo recebeu o título de pós-doutor. Atualmente, é membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional e professor da USP.
[10] Sandra Stoll é graduada em História pela Universidade de São Paulo. Fez mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado, na mesma área, pela USP, onde recebeu o título de pós-doutora. Atualmente, é professora na Universidade Federal do Paraná.
[11] Francisco Cândido Xavier notabilizou-se como médium e divulgador do espiritismo no Brasil.
[12] Yvonne Maggie é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É mestre e doutorada em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atualmente é professora.
[13] Emerson Giumbelli é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina. É mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[14] Edir Macedo Bezerra é empresário e religioso, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e proprietário da Rede Record de Televisão.
[15] Jonas Abib é um sacerdote católico brasileiro. Sua vida também é marcada pela música. Em 1978, Jonas Abib, junto com um pequeno grupo de jovens, fundou a comunidade Canção Nova, que tem a missão de espalhar a doutrina católica pelos meios de comunicação social.
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A presença dos espíritos no imaginário da sociedade brasileira. Entrevista especial com Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU