13 Abril 2009
A uma plateia de estudiosos da religião vindos de mais de trinta países para a Conferência sobre o Cristianismo na América Latina e no Caribe, realizada em São Paulo em 2003, o padre e escritor José Oscar Beozzo [1] afirmou: “O crescimento das igrejas pentecostais é o fenômeno mais espetacular no panorama religioso da América Latina nas últimas décadas”. A face verde-amarela do fenômeno se traduz em dados como os do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que aponta que o total de evangélicos no país – incluídos aí todos os ramos, desde os protestantes históricos, como luteranos e presbiterianos, até os neopentecostais – passou de 9,05% da população em 1991 para 15,45% no ano 2000. Um salto, em números absolutos, de cerca de 13 milhões para aproximadamente 26 milhões de pessoas.
O estudo Economia das religiões: mudanças recentes, publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2007, mostra que pela primeira vez, em mais de um século, a taxa de participação dos católicos deixou de cair e manteve-se “estável no primeiro quarto de década, com 73,79% em 2003”. Os evangélicos seguem crescendo, mas agora angariando seu público no segmento dos sem-religião – grupo que caiu de 7,4% para 5,1%. Para os autores, os dados demonstram claramente que “a velha pobreza brasileira” (por exemplo, a das áreas rurais do Nordeste) continua católica, enquanto “a nova pobreza” (na periferia das grandes cidades) “estaria migrando para as novas igrejas pentecostais e para os chamados segmentos sem-religião”.
Tamanhas migrações não ocorrem – e na verdade nunca ocorreram – de forma tão pacífica quanto se poderia imaginar numa seara que lida com o espiritual. “Sempre houve uma disputa de religiosidades no campo religioso brasileiro”, diz Vagner Gonçalves da Silva, professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. “O que é característico, porém, é que as religiões dialogam, mesmo sob o contexto da disputa.”
A entrevista foi produzida por Paulo Hebmüller, jornalista, que nos enviou gentilmente para que fosse publicada pela IHU On-Line. A ele nossos agradecimentos.
Silva é o organizador do livro Intolerância religiosa – Impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro (São Paulo: Edusp, 2008), em que estudiosos de diversas instituições analisam algumas das facetas dessa realidade complexa. Um dos focos principais é o acirramento da disputa religiosa nas últimas décadas. De uma parte, porque a luta para conquistar novos adeptos não se restringe mais a púlpitos e altares: a eles se agregaram as tribunas e palanques da política e as luzes dos auditórios e palcos da mídia. De outra, porque o segmento evangélico neopentecostal – o que mais cresce no País, representado por denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), a Igreja Internacional da Graça e a Igreja Renascer em Cristo – encontrou no ataque aos cultos afro-brasileiros um “diferencial de mercado” para fazer seu proselitismo.
Num dos artigos, Ari Pedro Oro [2], professor de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, qualifica a Iurd como “neopentecostal macumbeira” e “igreja religiofágica” – por incorporar em seu repertório termos do vocabulário das religiões afro, como “descarrego”, “encosto”, “trabalho”, “amarrar” etc. Por sua vez, Ricardo Mariano, professor da pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, salienta que “a tolerância religiosa pode conviver com a discriminação religiosa” e que “esta pode ocorrer, não importa se com mais ou menos frequência, num contexto de liberdade religiosa”.
“A escolha do título do livro não foi ingênua, foi pensada”, diz o antropólogo Silva. Se nunca houve uma aceitação plena das religiões de herança africana, considera, pelo menos não se criava em plano nacional “uma visão tão negativizada do sistema afro-brasileiro”. A introdução do volume, assinada pelo organizador, levanta alguns casos que atestam a nova realidade da intolerância, mas ao mesmo tempo registra vitórias na Justiça obtidas por adeptos que se sentem atingidos por discriminação religiosa. A mais emblemática delas foi o da indenização à família de Mãe Gilda, mãe-de-santo cuja foto apareceu numa edição do jornal Folha Universal, da Iurd, em 1999, numa matéria intitulada “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A foto foi reproduzida de uma edição da revista Veja de 1992, em que Mãe Gilda aparecia numa manifestação pelo impeachment de Fernando Collor. Em 2004, o juiz da 17ª Vara Cível de Salvador assinou sentença que obrigava a Iurd a indenizar os familiares em R$ 1,372 milhão por danos morais (o equivalente a R$ 1,00 para cada exemplar da edição, valor que acabou reduzido posteriormente). De acordo com a família, Mãe Gilda faleceu de tristeza três meses depois da difusão do texto no jornal da Universal.
“Acredito que o caminho (para o segmento afro-brasileiro) é realmente se expor, ir à cena pública sempre que possível das mais diferentes formas para mostrar o que está ocorrendo: na Justiça, na política e na mídia, mas sabendo das dificuldades nas três áreas”, diz Vagner na entrevista a seguir, em que comenta algumas das realidades que chacoalham o rico e multifacetado universo religioso brasileiro:
Confira a entrevista.
Paulo Hebmüller – Estamos vivendo uma guerra religiosa ou guerra santa no Brasil?
Vagner Gonçalves da Silva – Obviamente está havendo uma disputa entre dois campos de uma forma mais acirrada, mas temos que colocar isso num contexto histórico. Na formação da sociedade brasileira, o catolicismo dominante foi uma religião imposta para outras. Ou seja, sempre houve uma disputa de religiosidades no campo religioso brasileiro. O que é característico, porém, é que as religiões dialogam, mesmo sob o contexto da disputa. A maneira como se dá essa imposição não é numa direção única: o catolicismo típico brasileiro absorveu fortes influências das culturas e religiões indígenas e africanas. Houve sim uma dominação, mas ela também se faz sob a troca de elementos de um sistema para o outro. A partir dos anos 1970 e 1980, há um processo um pouco mais acirrado, porque está ocorrendo uma desqualificação sistemática de um segmento cristão, o neopentecostal, contra um outro, que é afro-brasileiro, e esses campos estão na cena religiosa como verdadeiramente antagônicos.
Paulo Hebmüller – Cada lado, porém, vendo a situação de uma forma diferente, não é?
Vagner Gonçalves da Silva – Exato. Numa guerra, os dois lados brigam. Mas os afro-brasileiros não estão necessariamente guerreando contra um sistema. Estão apenas reagindo ao ataque que sofrem. O termo ataque também é relativo, porque do seu ponto de vista os neopentecostais não estão atacando, mas evangelizando e libertando as pessoas do jugo do demônio. Do ponto de vista dos afro-brasileiros, há uma deturpação do que são as religiões da umbanda e do candomblé. Já a Igreja Católica fica com um pé atrás porque essa guerra respinga nela própria, na medida em que os neopentecostais também atacam o catolicismo. Todo mundo fica em alerta em relação às consequências dessa situação.
Paulo Hebmüller – Esses ataques às religiões afro-brasileiras são de certa forma mais tolerados em função também de um aspecto de racismo na sociedade brasileira?
Vagner Gonçalves da Silva – Existe sim uma dimensão racial que envolve o debate. Porém, isso é muito complexo, em primeiro lugar porque não podemos correr o risco de dizer que as religiões afro-brasileiras são apenas de negros. Já foram, mas não são mais. O problema não é de quantificação, mas de representação. Essas religiões são vistas como de tradição africana. À medida que se combatem a religião e a tradição, se combate também uma herança que foi fundamental para constituir a identidade da população negra no Brasil, e essa herança e sua história são de origem africana. É difícil separar nesse pacote o que é só o fenômeno religioso e o que é a cultura. O que está acontecendo agora é que, por conta do ataque a essas religiões, as pessoas começam de novo a associar o mal ao negro. No discurso do pastor, as religiões são más porque nelas existe um demônio, e o nome desse demônio é exu, uma entidade africana. Poucas vezes a gente vê nas sessões de descarrego das igrejas neopentecostais demônios que não sejam da tradição africana, ou vistos como tal. Nunca se vê, por exemplo, o demônio europeu da bruxaria da Idade Média. Mas lá estão exus, pombagiras, Maria Padilha. Ruins ou não, são deuses de um sistema.
Paulo Hebmüller – Um sistema que vem sendo visto de forma cada vez mais negativa, não é?
Vagner Gonçalves da Silva – Sim. Hoje há um preconceito crescente nas escolas contra as religiões afro-brasileiras por conta de alunos que são de família evangélica, seus pais, coordenadores pedagógicos e diretores que não estão sequer interessados em colocar as coisas em termos mais neutros em relação à própria cultura. Se você tiver aula sobre a cultura da Grécia, vai aprender sobre os seus deuses. Mas nenhum professor, ao ensinar mitologia grega, dirá aos seus alunos para acreditar em Zeus ou Apolo. Quando se trata de falar sobre as culturas e heranças africanas, há professores se negando a ensinar questões relativas aos orixás. Eles perguntam: “Como vamos ensinar o que são os orixás, suas cores e domínios, se os orixás são demônios?”. Existe uma confusão entre o que é ensinar para fazer proselitismo e o que é ensinar para a diversidade. Aí sim está ocorrendo uma mistura. O preconceito, a discriminação e o racismo que são típicos da sociedade brasileira afloram de outra maneira: não mais no discurso do negro em si, mas sim dizendo que os elementos que essa herança trouxe não são elementos positivos. No século XIX, o que levou o médico Nina Rodrigues a estudar o candomblé foi o intuito de provar que os africanos e negros eram inferiores e por isso adotavam um sistema religioso animista. Hoje, a história se repete em outro contexto: reafirma-se pela religião um valor negativo associado a um grupo social que faz parte da própria história do Brasil.
Paulo Hebmüller – Isso contribui para criar um quadro de intolerância que seria a novidade do cenário atual?
Vagner Gonçalves da Silva – Acho que sim. A escolha do título do livro não foi ingênua, mas pensada. Cria-se um quadro de intolerância no sentido de que, se nunca houve uma aceitação plena, ao menos não se criava em plano nacional uma visão tão negativizada do sistema afro-brasileiro. Na introdução, levantei alguns casos de intolerância e fiquei impressionado porque as coisas acontecem em cidades grandes e pequenas. Para citar apenas um deles: uma criança desaparece num bairro de periferia em São Luís (MA). Sua família é evangélica e vive próxima de um terreiro. Imediatamente chama-se a polícia, denuncia-se o terreiro, que é acusado de ter raptado a criança para fazer rituais macabros. A polícia entra no terreiro, interrompe a sessão que está acontecendo e vasculha o local sem mandado. Obviamente a criança não foi encontrada lá, ao que parece estava na casa de parentes. Há casos de invasão ou depredação de terreiros, de expulsão de mulheres de um ônibus porque estavam com roupas típicas das religiões afro-brasileiras e assim por diante. Essa batalha nunca ganhava a cena civil. Ela existia, mas sempre no plano doméstico. Hoje está havendo um retrocesso e infelizmente as pessoas começam novamente a ter vergonha de pertencer a essas religiões.
Paulo Hebmüller – O livro chama a atenção para a fragmentação das entidades que representam as religiões afro-brasileiras. Com esse quadro, como fica a resposta pública aos ataques?
Vagner Gonçalves da Silva – Fica complicada. O segmento que ataca é muito bem organizado, tem aliados muito poderosos e algumas décadas atrás descobriu que os meios de comunicação são extremamente importantes no processo de proselitismo. As igrejas depois foram para a política, tomaram gosto por ela, formaram bancadas e perceberam que podiam se articular muito além da conquista de concessões de rádio e televisão. A partir daí, começaram a entrar em outras áreas, e essa orquestração estratégica faz com que os ataques tenham um efeito muito forte. Por exemplo: é possível que um vereador ou deputado, aproveitando as leis de proteção aos animais, apresente um projeto que proíba o sacrifício de animais no contexto religioso. Isso aconteceu em Porto Alegre. Por sua vez, o segmento afro-brasileiro é historicamente bastante seccionado. São dois grandes grupos: o de candomblé e o de umbanda, que normalmente têm muitos antagonismos.
Paulo Hebmüller – Quais são eles?
Vagner Gonçalves da Silva – O candomblé se acha mais “puro”, mais próximo das heranças africanas originais, e a umbanda seria mais “misturada”, porque pega influências indígenas, kardecistas etc. Quando os ataques começaram, dirigiam-se basicamente a exus e pombagiras, e a verdade é que o segmento do candomblé não se importou muito, porque essas são entidades mais da umbanda. Mas como as coisas foram atingindo proporções cada vez maiores, a comunidade tentou se organizar melhor. Isso tem dado algum resultado. Os terreiros, as pessoas ou as organizações têm entrado na Justiça e conseguido alguns ganhos, o que mostra que de fato os juízes têm considerado esses ataques como contravenção ou crime.
Paulo Hebmüller – Por que existe essa fragmentação?
Vagner Gonçalves da Silva – Historicamente o segmento não é organizado. Os terreiros são instituições autônomas, e cada pai-de-santo tem sua família de santo e seu parentesco religioso. Cada um constitui a sua legitimidade e vive do prestígio e da fama como bom resolvedor de problemas. Mas não há uma estrutura hierarquizada, e portanto não são religiões burocraticamente organizadas. Isso enfraquece a capacidade de resposta, o que tem sido um grande empecilho para a reação. Os afro-brasileiros não têm muita familiaridade com a demanda por seus direitos, como aliás todos os segmentos populares no Brasil.
Paulo Hebmüller – A questão é complexa porque não envolve só o aspecto religioso, mas entra pela mídia e pela política. Qual a arena mais adequada para se dar essa resposta pública?
Vagner Gonçalves da Silva – Deveria haver uma resposta em vários planos. No plano jurídico, porque a lei garante liberdade religiosa. A Justiça tem sido bastante adequada nos julgamentos, mas vai coibir na medida em que há um reclamante. A condenação no caso da Mãe Gilda foi exemplar. Se uma religião ataca outra publicamente, a atacada tem todo o direito de recorrer à Justiça, sobretudo quando se trata de vilipêndio de símbolos religiosos. Se alguém chuta a imagem de uma santa católica na televisão, a Igreja tem o direito de recorrer à Justiça porque se trata de algo público e inclusive envolve uma concessão do Estado. É óbvio que a coisa se complica quando o ataque se dá dentro dos templos. Também existe a liberdade do pastor de expressar sua opinião, e quem está lá dentro está porque quer. Quando os ataques ocorrem na televisão e nos espaços públicos, é preciso julgar até que ponto não está sendo ferido o direito que o outro tem de professar a sua fé e não ser discriminado por isso. Por exemplo: você está numa festa de Iemanjá numa praia e de repente para um caminhão de som com alto-falante e surgem pessoas distribuindo folhetos e pregando contra aquilo. Ora, é um direito das pessoas celebrar suas divindades sem serem perturbadas. O mesmo acontece quando se está fazendo um ritual dentro de um terreiro e um carro de som também para na frente e fica anunciando uma igreja. Quando a coisa chega nesse cenário, de fato há um ataque ao direito da pessoa de professar a sua fé.
Paulo Hebmüller – O livro cita exemplos de grupos que estão utilizando estratégias de legitimação pública inspirados no que a própria Iurd fez, pela via política e pela mídia. Esse é um caminho?
Vagner Gonçalves da Silva – É difícil eleger candidatos identificados com o segmento porque eles não têm por trás uma estrutura ou apoio em termos financeiros que essas igrejas têm. Acredito que o caminho é realmente se expor, ir à cena pública sempre que possível das mais diferentes formas para mostrar o que está ocorrendo: na Justiça, na política e na mídia, mas sabendo das dificuldades nas três áreas. Em Porto Alegre, se não fosse a mobilização, não teria sido revertida a proibição do sacrifício de animais. Aliás, não são só os afro-brasileiros que fazem esses sacrifícios. Outras religiões também fazem, como a islâmica e a judaica. Por que a lei vai só contra os afro-brasileiros?
Paulo Hebmüller – A Rede Globo passou a prestar mais atenção na Iurd e a fazer reportagens críticas em relação a ela quando Edir Macedo comprou a TV Record, em 1989. Como analisar essa briga religiosa invadindo a seara da mídia?
Vagner Gonçalves da Silva – São campos que se sobrepõem. O neopentecostal atualmente tem como centro a TV Record, que pertence a um sistema religioso. Há uma oposição à Record, que é a Globo, e há uma disputa entre as emissoras. Juntando a arrecadação entre os fiéis nos templos da Iurd e a publicidade na Record, há um poder muito grande. A Globo, que tradicionalmente procurou se associar à imagem da Igreja Católica, percebe que isso tem consequência em termos de audiência. Some-se tudo com a política e o quadro vai ficando cada vez mais complicado. O que é curioso é a lógica dos próprios campos, ou seja, o religioso, o político e o televisivo. Um age em função do outro: o religioso não age só em função do proselitismo, mas se alia à televisão, porque ela pode atingir milhões de pessoas, e a televisão enxerga nesse rebanho mais espectadores e, portanto, a oportunidade de vender mais publicidade. Já a política percebe que tanto o rebanho de fiéis quanto os telespectadores também são eleitores. Então todos esses segmentos, de telespectadores, de rebanho de fiéis e de eleitores, participam de uma engrenagem bastante interessante.
Paulo Hebmüller – A Iurd entrou com uma enxurrada de processos contra órgãos de imprensa, especialmente a Folha de S. Paulo, alegando que a liberdade religiosa dos seus fiéis tem sido atacada na imprensa. Não é uma situação curiosa, na medida em que ela costuma bater nos outros, mas demonstra não admitir a crítica?
Vagner Gonçalves da Silva – O que achei curioso nesse caso da Folha é a ação ter ocorrido em vários pontos do Brasil com a mesma formatação, e os juízes têm percebido como a Iurd consegue orquestrar uma ação em plano nacional. Aí há de fato uma questão de liberdade de imprensa misturada com a liberdade religiosa. A Iurd não estaria sendo coibida na sua liberdade religiosa, como acusa, se não avançasse sobre outro campo. Isso é problema para ela porque, quando avança sobre outra denominação, a Iurd avança exatamente como forma de proselitismo e acaba vivendo simbioticamente com ela. Hoje em dia é difícil pensar em culto da Iurd sem descarrego e sem todo aquele aparato que ela retira do afro-brasileiro e que é o que lhe dá movimento. A Iurd precisa e vive de quem ataca.
Paulo Hebmüller – Nos seus ataques, a Iurd diferencia o que é de umbanda ou candomblé?
Vagner Gonçalves da Silva – Não há grande cuidado de diferenciar. Tudo é demônio, ou as várias faces do demônio. Claro que o Edir Macedo [3], a considerar pelas suas publicações, tem conhecimento grande do sistema. Ele pega as entidades mais polêmicas, que são os exus e pombagiras, porque elas já tinham sido demonizadas anteriormente pelo cristianismo. Exu está associado à sexualidade e é cultuado em altar na forma de falo. Quando os colonialistas europeus chegaram na África e depararam com esse tipo de entidade, logo a associaram ao demônio. Sobretudo nos terreiros de umbanda, porém, você encontra a ideia do exu como um sujeito que trabalha para o bem e para o mal, que é negociável, enquanto o demônio cristão não é alguém com quem você negocia. Você não vai pedir coisas boas, porque ele é o mal absoluto. Quando se fala que houve uma demonização do exu, digo que houve também uma “exuzização” do demônio. Se a pessoa dá a comida e a bebida, o exu faz tanto o bem como o mal. No sistema afro-brasileiro, as pessoas até que deixaram esse demônio com essa aparência, porque sabem que não é o demônio cristão: é um exu mesmo, na aparência de um demônio cristão. Quando esse demônio vai para o sistema neopentecostal, não é mais o ser da negociação: volta a ser o demônio absoluto, mas com o nome daquele demônio da negociação. Causa confusão, porque a pessoa que trabalhou vinte anos com seu exu na umbanda, quando vai para a igreja neopentecostal, é convencida pelo pastor que durante aqueles anos todos a entidade só fez o mal dizendo que estava fazendo o bem. Ela se sente enganada por sua própria entidade.
Paulo Hebmüller – Como se dá essa relação simbiótica entre o neopentecostal e o afro-brasileiro?
Vagner Gonçalves da Silva – A igreja neopentecostal precisa a toda hora “desmascarar” esse demônio para prosseguir no seu proselitismo. O neopentecostalismo absorve um conjunto de práticas dos terreiros, como as entidades, o uso de velas coloridas, as rosas vermelhas e brancas, aparatos como sabonete do descarrego ou óleo da purificação. A diferença é que na igreja você compra o sabonete do descarrego e nele está escrito um versículo (como: “Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e a tua carne será restaurada, e ficarás limpo”, de 2 Reis 5.10). Todo esse arsenal de elementos é trazido para o campo neopentecostal e usado no sentido que ele quer dar. O Edir Macedo diz que na verdade esses são elementos bíblicos que o demônio levou para o campo afro-brasileiro e que agora a Iurd está recuperando. Trazida para o campo cristão, essa magia fica muito mais legitimada. Posso ter até receio de usar um sabonete que o pai-de-santo me recomendou, mas se vou na igreja e o pastor diz que posso usar porque está na Bíblia, fico mais confortável. Não preciso ter vergonha de usar roupa branca, porque o próprio pastor se apresenta de branco, e assim por diante.
Paulo Hebmüller – O diferencial da Iurd em relação às outras igrejas evangélicas e à própria Igreja Católica foi ter reconhecido e legitimado o poder das entidades das religiões afro-brasileiras?
Vagner Gonçalves da Silva – Assim como o catolicismo, as igrejas pentecostais batiam, mas não lidavam com as entidades trazendo esse poder para o seu próprio campo, como fazem as denominações neopentecostais do tipo da Iurd. Obviamente a Igreja Católica nunca aceitou práticas que não fossem as suas, mas a bem da verdade por baixo da batina ocorriam sincretismos e associações para os quais muitas vezes a Igreja fazia vista grossa. A Igreja sabia que todo esse catolicismo popular, como a Congada, as festas do Divino Espírito Santo, as Folias de Reis, muitas vezes tinha um pé no terreiro e na herança africana, mas sempre deixou que isso também fizesse parte da constituição dessa vivência, embora a atacasse no discurso oficial. Os protestantes já rompem com essa herança e têm uma visão teológica mais enxuta em relação a isso. O pentecostalismo traz novamente um avivamento que reativa uma certa experiência religiosa que o protestantismo já tinha deixado de lado e que o catolicismo tinha nos setores mais populares. Quando o neopentecostalismo surge, a experiência do avivamento se aproxima muito mais da tradição afro-brasileira. Esses evangélicos percebem que ali existe uma força e puxam-na para o campo neopentecostal. Por isso o diálogo é tão intenso – e eu digo diálogo porque é ao mesmo tempo ataque e uso desses elementos. Os trânsitos são bastante complexos, mas de qualquer maneira todos estão dialogando.
Paulo Hebmüller – O neopentecostalismo trocou o sacrifício de Cristo, que na teologia cristã tradicional selou a reconciliação entre Deus e o homem, por um sacrifício diário do Anticristo no púlpito. Como se dá essa inversão?
Vagner Gonçalves da Silva – Nessa teologia, o tempo todo as coisas trocam de lugar. Na visão católica, o fiel pede ao santo e se o santo atende o pedido paga-se um ex-voto. Ou seja, primeiro o santo cristão tem que fazer a sua parte para que o homem pague a promessa. No neopentecostalismo, primeiro é o homem que dá e coloca Deus na posição de devedor. E como, segundo a teologia desses pastores, Deus criou tudo para o homem e tudo está à sua disposição, o que o homem precisa para ter essas coisas? Apenas mostrar a sua fé, e ele a mostra dando tudo o que tem. Essa moeda de troca no plano simbólico, a fé, se traduz numa moeda de troca efetiva de mercado. É por isso que o pastor diz: “coloque a mão no bolso, tire tudo o que você tem e mostre o tamanho da sua fé”. Ele não diz: “coloque a mão no coração e mostre a sua fé”. A fé não se expressa mais em termos de atos, mas sim em termos do dinheiro que você dá para a igreja. E não é a quantidade em si que importa, mas sim a relação do que você dá em relação ao que tem. Se você tem mil e dá cem, e outra pessoa que tem cem dá cinquenta, ela tem uma fé maior. Esse mecanismo foi um achado bastante grande na Teologia da Prosperidade: as igrejas enriquecem e ao mesmo tempo os fiéis colocam o divino na posição de ter que retribuir o que foi dado. É uma inversão bastante significativa nos fluxos de dar, receber e retribuir.
Paulo Hebmüller – É o que se chama de “protagonismo do demônio” no neopentecostalismo?
Vagner Gonçalves da Silva – Nas religiões afro-brasileiras, o grande manipulador é o pai-de-santo que trabalha com exu, que é o mensageiro e mobilizador do sistema. A pessoa pede para o pai-de-santo, ele faz o sacrifício para exu, que leva o pedido para o orixá e este dá o retorno. Quando o pastor subjuga o exu no púlpito, coloca-se no lugar desse intermediário e acaba sendo por excelência o sujeito da intermediação. Ou seja, derruba de uma vez só o pai-de-santo e o exu. Quando coloca para trabalhar para ele um “ex-pai-de-encosto”, prova duplamente o seu poder como intermediário. Não é mais o exu, não é mais o pai-de-santo, mas é ele, pastor, que está na verdade fazendo o sistema circular. É claro que o pastor diz que não tem poder por conta dele e que o poder vem de Deus, mas quem está no púlpito é ele. Quando ele se veste de branco e assume aparência de pai-de-santo, as pessoas se identificam porque já conhecem essa linguagem e esses ritos. Se não conhecem, estão aprendendo ali. Tanto é que o Ronaldo Almeida [4] diz que essa igreja está produzindo os seus próprios exus.
Paulo Hebmüller – A Iurd também usa citações e referências bíblicas fora de contexto para motivar os fiéis em suas campanhas.
Vagner Gonçalves da Silva – A Iurd é bastante inventiva e dinâmica no sentido de trabalhar com os símbolos que estão presentes no imaginário e usá-los na igreja. Fiquei impressionado quando fiz uma tabela dessas correspondências para o livro. Por exemplo: na Sexta-Feira Santa, a Iurd tem ritos com flores, perfumes, banhos de água fortificada, sabonetes abençoados de descarrego. É o que fazem as religiões afro-brasileiras, porque para elas esse é considerado um dia de fechamento de corpo. Em setembro é a Festa de Cosme e Damião no catolicismo e festa de Erês para os afro-brasileiros. A Iurd faz distribuição de balas e doces “sagrados” e alerta para que os pais não deixem as crianças aceitarem balas de outros, porque elas podem estar amaldiçoadas. Em junho, os católicos têm as festas de São João, com suas fogueiras, e os afro-brasileiros fazem a fogueira de Xangô. A Iurd então promove a Fogueira Santa de Israel. E assim por diante. Eles trabalham com o imaginário do povo, mas invertendo o sinal. Ou seja, pegam um sincretismo já constituído historicamente na sociedade brasileira entre catolicismo e religiões afro e fazem com que ele deságue no sistema neopentecostal.
Paulo Hebmüller – Ser a igreja sincrética por excelência quando se afirma contrária ao sincretismo e até ao ecumenismo (diálogo com outras igrejas cristãs) não é uma contradição com o discurso da própria Iurd?
Vagner Gonçalves da Silva – De fato, ela é uma igreja cristã, só que refém dessa população de exus e pombagiras e de todos esses sincretismos, e não pode abrir mão disso exatamente porque abriria mão do que é a sua força. Outras igrejas neopentecostais estão adotando esse modelo e acirrando o seu discurso. A Igreja Internacional da Graça, de R. R. Soares [5], é um bom exemplo. Mas há também igrejas cristãs, inclusive pentecostais, que condenam a Iurd por ser sincrética e dizendo que o que ela faz não tem sustentação teológica ou doutrinária.
Paulo Hebmüller – Até que ponto se pode dizer que os transes nessas religiões são experiências reais ou não? A pesquisa acadêmica se ocupa dessa questão?
Vagner Gonçalves da Silva – Não costumamos nos perguntar sobre essa realidade no sentido mais objetivo. O transe é uma experiência muito particular do sujeito dentro do sistema religioso, e as pessoas do sistema é que vão julgar. No candomblé há uma categoria chamada de ekê, que é o transe de mentira. O grupo diz que existem os transes verdadeiros e os falsos. Nós, da antropologia, nos baseamos no que eles dizem. No caso do neopentecostalismo, as pessoas que incorporam usam a atitude de transe típica dessas entidades quando estão incorporadas nos terreiros. Do ponto de vista da aparência e da postura, são iguais aos que ocorrem no terreiro de umbanda com exu e pombagira. A questão é: essas entidades vêm no templo da igreja por quê? Porque elas são chamadas a comparecer. Aquelas pessoas foram membros de terreiros e, portanto conviveram com aquelas entidades. O fluxo e o acesso a elas estão dados em outro sistema. Por isso, o pastor consegue chamar essas entidades na cabeça das pessoas e de fato elas vêm. Agora: uma pessoa que nunca frequentou terreiro receberia essas entidades na igreja? Sim, porque ela está vendo aqueles outros transes e sendo socializada naquela experiência. Todo transe é uma socialização. Quando uma pessoa vê o transe em outra, deve imaginar que, se um dia receber aquela entidade, muito provavelmente ela vai se comportar daquela maneira. É o que o Almeida diz quando afirma que a Iurd produz os seus próprios exus e pombagiras. Mesmo a pessoa que nunca foi num terreiro, se incorporar um exu ou uma pombagira, provavelmente vai fazê-lo naqueles termos, porque está vendo como essas entidades se portam, como falam, que expressões usam etc. É uma questão complicada porque não é um processo consciente: envolve uma expressão inconsciente que vai aflorar dessa maneira. Porém, não é muito comum haver transe de orixás do candomblé na igreja neopentecostal. Podem ser vistos exus e pombagiras, mas eu nunca vi um orixá ser incorporado numa igreja. O sistema também tem as suas próprias preferências em relação ao que incorpora ou não.
Paulo Hebmüller – O neopentecostalismo e as religiões afro-brasileiras se aproximam também na dimensão do corpo?
Vagner Gonçalves da Silva – O neopentecostalismo, de forma interessante, reintroduz a experiência do transe e do corpo na religião cristã. Sobretudo depois da Reforma e da Contra-Reforma, o cristianismo tem sido, em graus diferentes, uma religião de conversão racional. Ou seja, a pessoa ouve a Palavra, medita sobre ela e age em função de uma atitude da razão. No neopentecostalismo, se reintroduz a mediação do sagrado pelo corpo, o que o próprio pentecostalismo de certa forma já fazia. Quem tinha essa experiência era muito mais o campo afro-brasileiro, porque as entidades baixavam. Mesmo que a gente não pense no transe dos exus e pombagiras, mas pense no Espírito Santo, é a própria terceira pessoa da Trindade que está “baixando” num corpo humano. Isso não é pouca coisa. Se no imaginário cristão Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo estão lá em cima e uma das pessoas da Trindade vem ao corpo humano (o batismo no Espírito Santo), essa é uma experiência fundamental. Porém, para o neopentecostalismo há o transe positivo, da grande divindade, e o transe negativo, das demoníacas.
Notas:
[1] José Oscar Beozzo é padre e teólogo, com mestrado em Sociologia da Religião, pela Université Catholique de Louvain (Bélgica) e doutorado em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP). Faz parte do Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil), filiado à Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e no Caribe (CEHILA). Também é sócio fundador da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina (Adital).
[2] Ari Pedro Oro é mestre em Filosofia pela PUS-RS e doutor em Estudos da América Latina pela Universite de Paris III. Atualmente é membro da Université de Quebec à Montreal, colaborador da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, diretor da Associação Brasileira de Antropologia e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
[3] Edir Macedo é um empresário e religioso brasileiro, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e proprietário da Rede Record de Televisão. Promotora e defensora da Teologia da Prosperidade, a IURD cresceu e tornou-se a quarta maior corrente religiosa do país, segundo o Censo de 2000. Numa família católica praticante, cultivou esta fé e, posteriormente, frequentou terreiros de umbanda antes de se tornar evangélico. No início dos anos 1960, era membro da Igreja de Nova Vida. Iniciou seu trabalho evangelístico como pastor em 1974. Em 1977, fundou a Igreja Universal do Reino de Deus e em 1989 comprou a Rede Record. Atualmente, também é proprietário da Rede Família, Record News, Line Records, Rede Aleluia. Autor de vários livros de caráter religioso, e do polêmico best-seller "Orixás, Caboclos e Guias, Deuses ou Demônios", detém também doutoramentos em Teologia e em Filosofia Cristã, e Honoris Causa em Divindade.
[4] Ronaldo Romulo Machado de Almeida é Mestre em Antropologia social pela Universidade Estadual de Campinas e doctor em Ciência social pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Atualmente, é professor da Unicamp e pesquisador no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
[5] Romildo Ribeiro Soares, conhecido como Missionário R.R. Soares, é um tele-evangelista brasileiro, fundou, em 1980, a Igreja Internacional da Graça de Deus. Apresenta o programa Show da Fé pelas redes Bandeirantes e CNT no período da noite. Embora casado com a irmã do atual dono da Rede Record, Magdalena, há 28 anos, a relação com Edir Macedo é anterior. Tendo se conhecido em 1968 na Nova Vida, os dois fundaram A Cruzada do Caminho Eterno sete anos apóse. Em 1977, criaram a Igreja Universal do Reino de Deus. Em 2006, lançou uma operadora evangélica de TV paga, que pretende atingir cem mil assinantes.
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Neopentencostais e religiões afro-brasileiras. Uma guerra instituída? Entrevista especial com Vagner Gonçalves da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU