02 Novembro 2007
“A sagração do dinheiro no neopentecostalismo - Religião e interesse à luz do sistema da dádiva” é o título da tese de doutorado de Drance Elias da Silva. Através desse trabalho, Drance reflete sobre o dinheiro como elemento de mediação na relação com o sagrado, na experiência religiosa nas igrejas neopentecostais. O uso que se faz do dinheiro no espaço do culto, indica, segundo Drance, uma produção social ou uma espécie de reinvenção do social comunitário. É esse aspecto sociológico dá norte à sua análise.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Drance fala dessa reinvenção do social comunitário por parte desse símbolo dentro das igrejas e do sagrado que ele representa no neopentecostalismo. Além disso, ele nos revela as dádivas que apresentou na tese e sua opinião sobre o neopentecostalismo.
Drance Elias da Silva é formado em Teologia, pelo Instituto de Teologia de Recife, e em Filosofia, pela Universidade Católica de Pernambuco. Realizou mestrado e doutorado em Sociologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, atua como professor nessa universidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Você afirma que o dinheiro dentro das igrejas neopentecostais é uma reinvenção do social comunitário. Como é que esse símbolo se apresenta no imaginário de quem participa dos cultos dessas igrejas?
Drance Elias da Silva – Quando eu disse que o dinheiro era uma reinvenção do social comunitário, foi para lembrar que ele é um elemento de ligação entre as pessoas no espaço de culto. É um símbolo entre outros tantos símbolos que participam dessa relação dentro do espaço. Isso cria, de alguma maneira, uma relação entre eles. Comunitário, nesse sentido, é um encontro a partir de uma série de símbolos que eles levam para ofertar. O social comunitário, nesse sentido, é o processo permanente de produção de encontros a partir de uma diversidade de coisas que são, evidentemente, levadas para serem doadas no altar. Então, o dinheiro tem uma dimensão de vínculo nessa praxe religiosa que nós identificamos no neopentecostalismo. Pelo menos, isso é um pressuposto que está colocado dentro da experiência neopentecostal.
IHU On-Line – O que existe de sagrado no dinheiro para o neopentecostalismo?
Drance Elias da Silva – De sagrado no dinheiro existe a possibilidade de ele ser transformado em uma coisa que ele não é. Por exemplo, nas igrejas neopentecostais, como a Igreja Internacional da Graça de Deus ou a Igreja Universal do Reino de Deus, ele se transforma numa ferramenta de Deus. Existem várias interpretações que são dadas a esse elemento, que é simbólico, como a atribuição de um valor de sacralidade. Na medida em que ele é ofertado em altar, ao mesmo tempo é ressignificado enquanto coisa. Então, passa a ser uma oferta, uma ferramenta de Deus, um propósito, trazendo uma série de significados. Por isso, pelo fato de estar sendo oferecido a Deus, o dinheiro é ressignificado. Nesse sentido, existe uma idéia de sacralidade desse objeto no espaço do religioso.
IHU On-Line – Com todos esses escândalos envolvendo o dinheiro utilizado como dízimo por algumas igrejas neopentecostais, o senhor acredita que esse símbolo pode perder a valorização que tem dentro desse espaço religioso?
Drance Elias da Silva – Ele não perde a valorização. Porque é claro que depois do culto o dinheiro continua sendo dinheiro e será, de alguma maneira, investido na própria igreja. Antes mesmo de ele continuar sendo o que ele é no dia-a-dia, como sendo um equivalente geral, uma coisa que nós podemos trocar por outra, naquele espaço do momento em que ele está sendo ofertado, o que está de fato valendo não é, simplesmente, a dimensão monetária, não é um cifrão em termos de valor nele contido. O dinheiro ganha, nesse momento, essa conotação. Claro que depois do culto ele continua sendo dinheiro, porque, quer queira quer não, o pastor deixa claro que ao você doá-lo como oferenda no culto, no espaço religioso, ele será investido na igreja. Mas, antes disso, o significado que é atribuído a ele é outra coisa. É nesse momento que percebemos que o dinheiro está como se suspenso em sua realidade meramente material. Depois, é claro, os fiéis têm clareza de que esse dinheiro será investido na igreja e no crescimento da própria obra da igreja.
IHU On-Line – Dentro das igrejas neopentecostais, qual é a relação que se faz entre religião, cultura e dinheiro?
Drance Elias da Silva – Na relação entre a cultura, a religião e o dinheiro, eu posso dizer que este é um elemento constitutivo com mediação de troca nas relações, pois nós vivemos numa sociedade. Não há religião que possa, por exemplo, prescindir de dinheiro. Inclusive, para sua própria subsistência. Só que, de alguma maneira, o dinheiro não pode ser entendido, reduzido a meramente uma realidade material. Ele é de fato ressignificado e, como eu disse, simbolizado. Isso abrange a dimensão de fato da cultura, especificamente, na cultura religiosa. Então, é uma relação que, nós poderíamos dizer, de pertencimento a todo esse processo de construção da realidade social. Se no passado o dinheiro foi, por exemplo, um outro significado, sal ou chocolate, hoje ele é uma outra realidade material que se apresenta à sociedade. No entanto, a sua dimensão simbólica continua, seja no espaço religioso, seja em outro espaço cultural em que ele possa ganhar um outro significado para além de si mesmo.
IHU On-Line – Quais são as modalidades das dádivas religiosas, que o senhor apresenta em sua tese?
Drance Elias da Silva – As modalidades de dádivas religiosas são, por exemplo, a dádiva como sacrifício, como propósito, a dádiva da atribuição, a dádiva do desafio. São expressões de dádivas dentro de uma perspectiva, dentro de uma análise hierárquica, que diz respeito à ressignificação do dinheiro nesse espaço. O dinheiro como desafio, por exemplo, de fato instiga a pessoa a ir em busca desse bem mais precioso. E ele toma isso como um desafio para si. O que ele vai trazer no dia seguinte não é meramente o dinheiro, mas o desafio que ele tomou para si e que o incitou de fato a essa perspectiva de oferenda, embora tomando como pressuposto de que vai receber em dobro. São várias concepções que identificamos dentro desse espaço de dádivas que vão sendo, aos poucos, construídos no espaço neopentecostal.
IHU On-Line – O dinheiro é apresentado como uma mediação da prosperidade?
Drance Elias da Silva – Eu poderia dizer que a prosperidade é mais larga do que meramente o dinheiro, mas este é uma espécie de mediador na medida em que ao ser ressignificado e, ao mesmo tempo, ser doado, há uma idéia de que isso possa possibilitar da parte de Deus a liberação das suas dádivas, daquilo que ele retém e só através do sacrifício uma vez feito a pessoa possa de fato receber essas bênçãos que vêm diretamente de Deus. Tudo isso dentro da lógica de compreensão de um fiel dentro de um espaço neopentecostal. Então, dar o dinheiro, por exemplo, com a perspectiva de prosperidade, é significativo, porque esse elemento está escrito dentro da possibilidade, da idéia do sacrifício. Porque qual é o sacrifício maior que nós podemos hoje em dia fazer para poder, por exemplo, oferecer a Deus o dinheiro como sendo um símbolo dessa natureza? Então, sacrificando esse objeto em altar como símbolo ressignificado, é claro que, na compreensão de um fiel, isso é um pressuposto para sua prosperidade, ou seja, ele vai receber em dobro o que está doando a Deus. É como se o dinheiro fosse não somente desamarrar aquilo que está prendendo a prosperidade, mas liberar de Deus as suas dádivas, também porque ele está inserido dentro dessa idéia de sacrifício. O dinheiro que está sendo doado é, de fato, o sacrifício que o fiel está fazendo como símbolo de maior sacrifício, numa sociedade como a nossa, em que o dinheiro é símbolo de grande importância.
IHU On-Line – A liberação total do sistema financeiro ameaça as instituições democráticas e fortalece as igrejas neopentecostais?
Drance Elias da Silva – Eu acho que o que fortalece as igrejas neopentecostais não é simplesmente a liberação total do dinheiro, em termos de capitalismo internacional. O que as fortalece é a capacidade que elas têm de reinventar seus próprios símbolos para poder se manter do ponto de vista subjetivo e do ponto de vista material. Então, nesse sentido, elas desenvolvem uma ética na qual poderíamos encontrar alguns traços da própria ética protestante do Weber, mas não fazendo uma relação direta, mecânica, porque não é o caso. Eu acho que a ética pentecostal leva a pessoa a um trato com relação a esse símbolo que faz com que ele se torne uma prioridade na expressão de sua fé. Não há, por exemplo, como retirarmos o dinheiro das igrejas neopentecostais como um elemento significativo de importância. Elas não subsistiriam como uma certa facilidade. Então, o dinheiro se tornou um elemento bastante significativo de comunicação, de relação, de encontro, e isso independe da abertura meramente do mercado a nível internacional. Eu acho que é uma lógica muito própria, ou, pelo menos, muito bem estabelecida dentro do pensamento religioso neopentecostal, no qual o dinheiro se ancora de uma forma diferente, como de fato está ancorado numa estratégia bem maior de sociedade mercantil como a nossa.
IHU On-Line – O liberalismo pode ser confundido com o neopentecostalismo?
Drance Elias da Silva – Veja, o neopentecostalismo não é uma realidade separada dessa realidade em que estamos vivendo em sociedade. É evidente que, por dentro dele, evidentemente perpassa essa visão mercantilista neoliberal. Quanto a isso, não há dúvidas. As estratégias neopentecostais para adquirir dinheiro de fato são agressivas e de fato são empresariais. Eles têm evidentemente todo um know how em termos de perspectivas empresarial, que perpassa, por exemplo, a condução dos seus cultos. Temos consciência, quando pesquisamos, de que há um comportamento evidentemente nessa perspectiva. Eu diria que o neopentecostalismo, de alguma maneira, colabora, fortalece a perspectiva liberal à medida que não incomoda na sua crítica mais fundamental. As igrejas neopentecostais, como todas as outras igrejas ou religiões no Ocidente em que nós estamos vivendo de sociedade neoliberal, estão passando por essa realidade. Então, não existe uma realidade neopentecostal separada ou suspensa dessa realidade mais ampla do ponto de vista político e econômico que estamos vivendo hoje. Há, portanto, uma excelência no comportamento religioso. Podemos, com facilidade, identificar como as igrejas neopentecostais sabem utilizar os meios de comunicação, o quanto elas têm uma dimensão empresarial e uma estratégia muito clara. É claro que eu estou falando todas essas coisas porque o meu ponto de vista é o do fiel, não meramente da instituição. A crítica que muitos fazem em relação ao uso do dinheiro pelas igrejas neopentecostais é uma crítica que parte do pressuposto em termos das instituições. Mas como é que fica a questão do fiel? Como é que ele está vendo isso a partir de seu pertencimento religioso? Há um processo de continuidade e descontinuidade das igrejas neopentecostais dentro dessa conjuntura.
IHU On-Line – E qual é a sua visão pessoal sobre a forma de agir das igrejas neopentecostais?
Drance Elias da Silva – Primeiro, eu não tenho uma visão ingênua do neopentecostalismo enquanto realidade institucional. O trabalho, embora lidando com a questão da dádiva e do que a ela hoje pode ser agregado para uma melhor compreensão, não anula a crítica que fazemos às igrejas neopentecostais. Não anula a idéia do comportamento que identificamos em relação à sua colaboração, por exemplo, a essa sociedade mercantilista que nós estamos vivendo. Sobre ela, recai uma crítica que muitos já fizeram, com a qual concordo. A grande questão é como se dá a relação do fiel com a sua igreja no cotidiano. As estratégias são as mais criativas, agressivas, mas também são aquelas a que de fato o fiel encontra uma certa significação a outras experiências de pertencimento. Eu tenho uma visão, até certo ponto, positiva das religiões neopentecostais, à medida que a crítica que já foi feita, mais reducionista, não salvaguardava uma outra visão que parte do fiel. É preciso que, de alguma maneira, ele possa aprofundar essa sua experiência de pertencimento, inclusive também fazer as suas críticas. Eu não acho que os fiéis estejam como cordeirinhos, totalmente alienados, dominados, imersos num processo de não consciência da opção que ele está fazendo. Há uma reserva de liberdade muito grande que nós temos que contar com ela da parte dos fiéis. Eles também se decepcionam no âmbito da insistência por parte dos pastores, por exemplo, de pedir dinheiro, em monopolizar muito dos momentos desse espaço de pertencimento. Há muitos fiéis que migram hoje de uma igreja para outra porque se decepcionaram, mas nem por isso o neopentecostalismo deixou de crescer. Então, há alguma coisa aí de fato realmente religiosa, que está além das estratégias de convencimento por parte das religiões. Há algo muito mais forte e que está nas mãos dos próprios fiéis.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O dinheiro e as dádivas no neopentecostalismo. Entrevista especial com Drance Elias da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU