12 Dezembro 2022
"Quem deterá o ímpeto e o furor destrutivo de ser humano que já construiu os meios de sua própria autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares?", questiona Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Se reduzirmos os 13,7 bilhões de anos da existência do universo a apenas um ano, o ser humano atual, sapiens sapiens, surgiu no processo da evolução no dia 31 de dezembro, às 23 horas, 58 minutos e 10 segundos, segundo cálculos de vários cosmologistas. Portanto, aparecemos em menos de um minuto do fim do ano cósmico. Qual o sentido de termos chegado tão tarde no processo cosmogênico? Para coroar tal processo ou para destruí-lo? Essa é uma questão em aberto. O que podemos constatar é a nossa crescente destrutividade do meio no qual vivemos, da natureza e da nossa Casa Comum. Vejamos algumas etapas de nossa agressividade. Ela nos deixa interrogações inquietantes.
No início, nossos ancestrais, que se perdem na penumbra dos tempos imemoriais, tinham uma relação harmoniosa com a natureza. Entretinham uma interação não destrutiva: tomavam o que a natureza fartamente lhes oferecia. Esse tempo durou alguns milênios, começando na África, onde surgiu o ser humano há 8 ou 9 milhões de anos. Por isso, somos todos, de alguma forma, africanos. Lá se formaram nossas estruturas corporais, psíquicas, intelectuais e espirituais que se fazem presentes no inconsciente de todos os humanos até a atualidade.
Há mais de dois milhões de anos, irrompeu, no processo da antropogênese (a gênese do ser humano na evolução), o homem hábil (homo habilis). Aqui ocorreu uma primeira virada. Iniciou-se aquilo que culminou de forma extrema nos dias atuais.
O homem hábil inventou instrumentos com os quais operava uma intervenção na natureza: um pau pontiagudo, uma pedra afiada e outros recursos semelhantes. Não bastava o que a natureza lhe oferecia espontaneamente. Com a intervenção, ele podia ferir e matar um animal com a ponta aguçada de um pau ou podia cortar plantas com instrumentos afiados de pedra.
Essa intervenção durou milênios. Mas, com a introdução da agricultura e da irrigação, se desenvolveu muito mais intensamente. Isso ocorreu por volta de 10 a 12 mil anos atrás (diferente nas várias regiões), na era chamada de neolítico. Desviavam-se águas dos rios, como o Tigre e o Eufrates no Oriente Médio, o Nilo no Egito, o Indo e o Ganges na Índia e o Amarelo na China. Melhoravam colheitas, criavam animais e aves para serem abatidos, especialmente galinhas, porcos, bois e ovelhas. Cresceu rapidamente a população humana. É o tempo em que os humanos deixaram de ser nômades e se fizeram sedentários. Criaram vilas e cidades, geralmente junto aos rios ou ao redor do imenso lago interno, o Amazonas que há milhares de anos, desaguava no Pacífico.
Da intervenção passou-se à agressão da natureza. Ocorreu quando se usaram instrumentos de metal, lanças, machados e armas para matar animais e pessoas. A agressão foi se especializando até culminar na era industrial do século XVIII na Europa, começando na Inglaterra. Inventou-se um vasto maquinário que permitia extrair enormes riquezas da natureza. Passo decisivo na agressão foi dado nos tempos modernos, quando surgiu a tecnociência com imensa capacidade de exploração da natureza em todos os níveis e frentes.
Partia-se da premissa de que o ser humano sentia-se “senhor e dono” da natureza e não parte dela, A ideia-força que o orientou foi a vontade de poder, entendido como a capacidade de dominar tudo: outras pessoas, classes sociais, povos, continentes, a natureza, a matéria, a vida e a própria Terra como um todo.
O inglês Francis Bacon expressou este propósito dizendo: ”Deve-se torturar a natureza como o torturador tortura a sua vítima, até ela entregar todos os seus segredos.” Aqui a agressão ganhou estatuto oficial. Foi e continua sendo aplicada até hoje.
Partia-se do pressuposto (falso) de que os bens naturais seriam ilimitados. Isso permitia forjar um projeto de desenvolvimento também ilimitado. Hoje, sabemos que a Terra é limitada e finita e que não suporta um projeto de crescimento ilimitado. Mas essa crença ainda é dominante.
Nos últimos decênios, de modo especial depois da Segunda Guerra (1939-1945), a sistemática agressão ganhou dimensões de verdadeira destruição de ecossistemas e da biodiversidade. A própria Mãe Terra começou a ser agredida em todas as suas frentes. Para atender o atual consumo humano, precisamos de uma Terra e meia, o que produz a Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot day) que neste ano ocorreu no dia 22 de julho.
Segundo notáveis cientistas, inauguramos uma nova era geológica, o antropoceno, no qual o ser humano emerge como a maior ameaça à natureza e à vida. Chegou-se ao ponto de o nosso processo industrialista e o estilo consumista de vida dizimarem, anualmente, cerca de 100 mil organismos vivos. A partir desta verdadeira tragédia biológica, fala-se do necroceno, quer dizer, a era da morte (necro) em massa de vidas da natureza e também de vidas humanas. Ecossistemas inteiros estão sendo afetados também o amazônico. Por fim, alguns já se referem ao piroceno (pyros em grego é fogo). A mudança do regime climático e o aquecimento irrefreável ressecam os solos e aquecem as pedras de tal forma que gravetos e folhas secas pegam fogo que se difunde, gerando grandes incêndios já vividos em toda a Europa, na Austrália, na Amazônia e em outros lugares.
Quem deterá o ímpeto e o furor destrutivo de ser humano que já construiu os meios de sua própria autodestruição com armas químicas, biológicas e nucleares? Só mesmo uma intervenção divina? Deus, segundo as Escrituras, é o Senhor da vida e o “amante apaixonado da vida”. Intervirá? As interrogações seguem em aberto.
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Etapas da agressividade ecológica do ser humano contra a Terra. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU