15 Dezembro 2022
Em seu livro La reconquista autoritaria, o sociólogo Ariel Goldstein desvenda a trama do poder político tecida pela direita radical da Europa e suas implicações na América Latina, com representantes como Jair Bolsonaro, no Brasil, José Antonio Kast, no Chile, Keiko Fujimori, no Peru, e Javier Milei, na Argentina. Trata-se de um fenômeno facilitado pelas novas tecnologias, segundo o pesquisador, que alerta sobre o papel desses grupos e a ameaça que representam para as democracias do Cone Sul.
O ensaísta faz um detalhado e muito interessante rastreamento das origens dessa ideologia, tanto na Europa quanto na América Latina, e aponta seus atuais representantes. Também analisa o papel do partido espanhol Vox na unificação das narrativas desses grupos que, com discursos violentos, favorecem o crescimento de processos autoritários e antidemocráticos e de líderes que representam os interesses das classes dominantes.
“A direita sempre surge com a crise, com a crise social, econômica, política, de segurança. A pandemia também significou uma forma de crise da saúde, do estado, da economia, o que acelera muitas tendências destrutivas que estavam presentes na sociedade”, afirma Goldstein, que entrevistou mais de 40 representantes desses partidos para escrever esta obra, publicada por Marea, onde também publicou os títulos Bolsonaro e Poder evangélico.
“Olhando em perspectiva, o panorama é um pouco assustador”, avalia o sociólogo e pesquisador adjunto do Conicet que, em conversa com a Télam, afirma que “para poder preservar a democracia de tais forças de direita radical, que são perigosas, é preciso conhecê-las”.
A entrevista é de Claudia Lorenzón, publicada por Télam, 08-12-2022. A tradução é do Cepat.
Como caracterizaria esses grupos políticos de direita que você define como uma família global?
Família global é um conceito do historiador italiano Steven Forti, que fala sobre como, a partir da tecnologia, as direitas radicais começam a se vincular de outra forma, em uma espécie de globalização da direita radical.
Essa ideia de direita radical é um conceito do cientista político holandês Cass Mude, que aborda como esses grupos colocam a democracia liberal em crise questionando as instituições e a divisão de poderes e a justiça, mas, ao mesmo tempo, entram no jogo da democracia, pois participam das eleições.
Não estão dizendo que vão destruir o sistema, mas que querem atuar e ser eleitos por meio de eleições. Essa é um pouco a novidade dessa quarta onda da direita radical.
Quais são os interesses que representam?
Representam os interesses das igrejas, de alguns setores empresariais, dos chamados think tanks, que são instituições muito influentes da sociedade civil, pois esse fenômeno também tem a ver com a batalha cultural mencionada pela direita radical, que eu chamo de unificação das narrativas desses grupos, com ideias centradas em “Deus, pátria, família e liberdade”. É um lema que surgiu com Giorgia Meloni, na Itália, mas também é usado por Bolsonaro, no Brasil, por grupos conservadores do Peru, como os fujimoristas, e também se ouve no México.
Portanto, há uma unificação dessas narrativas em curso, e é isso que habilita essa ideia de família global. É algo interessante de analisar já que, há 10 ou 15 anos, não existia essa narrativa comum para a direita radical, porque não existiam esses candidatos e nem esses partidos com a projeção que possuem agora.
Qual foi o papel do Vox para o surgimento dessas novas direitas?
O Vox é importante na unificação das narrativas desses grupos, porque é um ponto de interseção entre os dois modelos mais importantes de referência das direitas europeias: a direita radical da Hungria e a da Polônia que influenciaram na América Latina.
Quais são as ideias centrais que alimentam essas direitas?
Há três conceitos, que o partido espanhol Vox resgata, que são a hispanidade, a reconquista e o narcocomunismo. A hispanidade é esta ideia de uma Espanha católica unida à colonização e à Reconquista, que se deu em torno de 1490, e levou à unificação da Espanha sob a Igreja Católica, a partir da expulsão dos árabes do território.
A reconquista é a ideia que define Hermann Tertsch, que é um jornalista e eurodeputado de família nazista. O pai de Tertsch era o braço direito do principal propagandista do nazismo na Espanha, na época de Franco. O que me surpreendeu é que o filho repete um pouco o legado do pai, esta conexão internacional, o jornalismo, a diplomacia de extrema direita. Foi correspondente do jornal El País, na época da queda do socialismo real na Europa do Leste, ou seja, conhece muito a Hungria e a Polônia, por isso digo que é um elo muito importante e por isso decidi dedicar um trecho a ele.
Em torno dessas questões, unificam-se conceitos como amor à pátria, concebido como uma forma organicista, indivisível, antipluralista. A pátria é quem somos de determinada forma, os outros são a antipátria, por isso, nesses grupos, observa-se o ataque às minorias sexuais, aos negros, aos feminismos, a qualquer dissidência em relação a uma norma, e a aliança com as igrejas.
A Reconquista é essa ideia de que determinados espaços da sociedade civil, como as universidades e os meios de comunicação, foram tirados dos conservadores e agora precisam recuperá-los, como recuperar um legado, porque apelam, sobretudo, a uma tradição que está muito ligada ao passado, a esta ideia de batalha cultural, chamada reconquista, e o título do livro tem a ver com isso.
A exacerbação da violência como método de fazer política é mais uma de suas características...
Essa violência está ligada ao narcocomunismo. É a ideia de que a esquerda está associada ao narcotráfico, portanto, são criminosos e é preciso combatê-los em uma guerra. Isto concebe o outro como um inimigo que deve ser combatido. É um discurso que claramente mina as bases da democracia, porque a democracia se baseia no reconhecimento do outro como um adversário legítimo.
Esse é o perigo desses discursos que é ainda pior quando está imbuído de uma questão religiosa, como aconteceu no Brasil, durante a campanha, em que Michelle Bolsonaro, a esposa do presidente do Brasil, disse: “isto é uma guerra espiritual entre o bem e o mal”, e levou ao surgimento de grupos fascistas que foram às ruas e bloquearam carros pedindo um golpe militar, que é tudo o que se vê agora.
Isso é alimentado por uma retórica religiosa que aponta o outro como um inimigo a ser destruído, o que é muito perigoso. Nos últimos 15 anos, Milei é o primeiro que utiliza isto na Argentina.
Por que o discurso de Milei impacta tanto?
A crise econômica é um fato que explica a ascensão da extrema direita em todo o mundo, e do nazismo. A direita sempre surge com a crise, com a crise social, econômica, política, de segurança. A pandemia também significou uma forma de crise da saúde, do Estado, da economia, o que acelera muitas tendências destrutivas que estavam presentes na sociedade, como o isolamento e a socialização por meio da tecnologia.
Não estou dizendo que esse aspecto seja algo puramente negativo, mas que a exacerbação dessas tendências tem consequências negativas. Por outro lado, o caso de Milei responde aos conflitos internos do governo que levam à falta de direção unificada.
Além disso, o fato de Milei ser economista e aparecer diante da crise com soluções milagrosas e simples para o povo conquista adeptos, como no tema da segurança em que propõe uma política repressiva. É o que explica a aliança de Milei com setores militares, como Victoria Villarruel, que é o principal vínculo que o partido de Milei possui com o Vox.
Quais são as consequências para os sistemas democráticos?
Para poder preservar a democracia de tais forças de direita radical, que são perigosas, é preciso conhecê-las. É necessário entender quem são e por que pensam o que pensam. Deve-se estabelecer consensos democráticos de preservação do sistema democrático com forças de direita mais moderadas que não sejam contra valores democráticos básicos como o reconhecimento do outro como um adversário legítimo.
É necessário encontrar uma forma de desradicalizar a comunicação online. Este é um fenômeno dos jovens. No Brasil, por exemplo, nos últimos dias, houve atentados em escolas em que adolescentes morreram nas mãos de jovens simpatizantes de neonazistas, ao estilo do atentado contra Cristina Kirchner, aqui, na Argentina.
Qual é o papel dos meios de comunicação, diante da ascensão dessas novas direitas?
Quando se olha o New York Times, dos Estados Unidos, ou a Folha, de São Paulo, observa-se que estão muito preocupados com a ascensão da extrema direita e permanentemente chamam a extrema direita de extrema direita, consultam especialistas e analisam a adesão dos jovens, porque há um foco muito forte desses grupos em seus países. Agem assim porque houve governos que fizeram com que esses meios de comunicação tivessem que tomar consciência do perigo que isso significa.
Contudo, aqui, na Argentina, não vejo essa preocupação nos meios de comunicação, pelo menos nos termos esperados. La Nación +, por exemplo, entrevista Eduardo Bolsonaro como se fosse um diplomata estrangeiro, sem lhe fazer qualquer pergunta sobre a sua ligação com todas estas redes internacionais da direita. Um político de extrema direita deve ser considerado como tal, não como um político tradicional e é preciso entrevistá-lo de um jeito diferente da forma como se entrevista outros políticos.
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“Para preservar a democracia das forças de direita radical, é preciso conhecê-las”. Entrevista com Ariel Goldstein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU