05 Dezembro 2022
Nesta entrevista, o pesquisador Boris Cyrulnik fala da psicoecologia, que pensa nas interdependências entre os humanos e seu ambiente. E convida nossa espécie a não mais “criar as condições para sua morte”.
A entrevista é de Catherine Marin, publicada por Reporterre, 02-12-2022. A tradução é do Cepat.
Boris Cyrulnik é neuropsiquiatria e diretor de ensino na Universidade de Toulon. Ensaísta prolífico, ele é famoso por sua reflexão sobre a noção de “resiliência” – a capacidade de se transformar para sobreviver às adversidades. Em Des âmes et des saisons: psycho-écologie (Almas e estações: psicoecologia, em tradução livre), obra de popularização da “psicoecologia” publicada em 2021, pela Odile Jacob, ele mostra como o ser humano é “esculpido” pelos diversos ambientes pelos quais passa ao longo da vida – fetal, depois familiar, ambiental, social e cultural.
Na abertura da COP27 no Egito, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse o seguinte: “A humanidade tem uma escolha: cooperar ou perecer. Ou é um pacto de solidariedade climática ou um pacto de suicídio coletivo.” O que pensa desta fala?
Concordo com ele: ou fazemos rapidamente as reformas que ainda são possíveis, ou desaparecemos do planeta com a deterioração gradual das condições de vida: solos não resilientes, secas, inundações, aumento de doenças (pensemos na peste de 1348 que, em dois anos, matou um de cada dois europeus), poluição do ar, dos alimentos... a espécie humana está em perigo.
No entanto, a expressão “suicídio coletivo” não é apropriada porque designa a intenção de se matar. Ora, as pessoas não querem se matar, mas serão levadas à morte pela manutenção de políticas ambientais nocivas. Essas políticas vão matar muitos de nós.
Em “Des âmes et des saisons”, você discorre sobre a “psicoecologia”, uma forma de reflexão que pensa nas interdependências entre os seres humanos e seus ambientes. Quando nasceu esta disciplina?
Esse novo campo de reflexão foi proposto há cerca de trinta anos, na Alemanha e na França, pelo psiquiatra austríaco Bronfenbrenner, e algumas décadas antes pelo psicólogo americano Abraham Maslow, que fiz ser traduzido na França. Mas suas teorias permaneceram marginais, porque nossa cultura permanece presa a um postulado epistêmico: o inato e o adquirido [sendo o inato a parte ligada aos genes que uma pessoa herda ao nascer, e o adquirido, os caracteres pós-nascimento que dependem do ambiente].
No entanto, agora sabemos que, em nível filosófico e biológico, esse postulado é um absurdo. As descobertas da neurociência mostram que o inato e o adquirido são inseparáveis, que o cérebro de um ser humano é inteiramente esculpido pelo seu ambiente: fetal, depois familiar, social, ambiental e cultural – o mundo das narrativas, das imaginações que herdamos também nos molda. Adotei essa perspectiva quando presidi a comissão dos “Primeiros 1.000 dias”, que relatava ao governo como as crianças se desenvolviam durante a infância pré-verbal.
O estresse produz efeitos surpreendentes no corpo. Você menciona, por exemplo, esses jovens trabalhadores que entraram aos 10 anos na fábrica, no século XIX, cujo crescimento foi prejudicado por essas condições de trabalho.
Pude observar a mesma coisa na China não faz muito tempo. Após a morte de Mao, a mudança de cultura forjada com a ocidentalização do país, o desenvolvimento do setor terciário em particular, moldou corpos surpreendentemente diferentes: enquanto seus pais eram pequenos, com pernas arqueadas – porque suas cartilagens de conjugação se comprimiram em decorrência do trabalho, muito cedo, desde os 7, 8 anos, nos arrozais ou na fábrica –, os jovens chineses são altos. Eu vi meninas chinesas com mais de 1,80 de altura! Mas também poderíamos falar da influência do clima, que é mais importante do que pensamos no desenvolvimento dos indivíduos e na estruturação de uma cultura.
Então não haveria separação entre natureza e cultura?
A separação entre natureza e cultura veio de todas as religiões do Livro, que representam o corpo como uma podridão biológica e a alma como uma tentativa elevada de transcendência para se tornar imortal. A medicina desenvolveu-se com esta divisão: de um lado, o corpo biológico; de outro, a alma, da qual não se podia fazer um estudo científico porque não tinha substância e nem medida, como dizia Descartes.
Hoje, porém, muitas publicações comprovam que os seres vivos, animais e humanos, têm seu metabolismo corporal fortemente modificado pelo ambiente natural, especialmente o clima e a altitude – assim como sua psique. Quanto mais alto um grupo humano sobe, mais prolongadas são as menstruações das mulheres, menores elas são e dão à luz a bebês pequenos. E mais, no nível cultural, os rituais são duros, severos – porque a menor falha nas altas montanhas pode provocar a morte de um animal que alimenta as crianças, ou a morte de uma criança ou de um ser humano negligente.
Quando o mesmo grupo humano desce para o vale, à medida que as condições climáticas se tornam mais amenas, as mulheres atrasam a menstruação, o tamanho dos bebês aumenta e os rituais tornam-se menos repressivos. Assim, vemos que, biológica e psicossocialmente, nosso modo de vida é regido pela estrutura ambiental do clima.
E aí a Covid vem para mostrar que não podemos mais nos considerar acima da natureza. Hoje, 60% a 70% dos patógenos que causam doenças humanas são zoonoses, ou seja, doenças transmitidas por animais. Mas esses animais, fomos nós que os adoecemos, pela criação industrial, que modificou sua ecologia, com alimentos produzidos industrialmente, antibióticos, uma grande promiscuidade...
Você explica que o ser humano também vive sob a influência de narrativas culturais que constroem sua representação de mundo. No Ocidente, entre essas grandes narrativas, existe o relato da superioridade do homem sobre a natureza. Devemos retomá-la?
A Bíblia reconhece a violência do homem, que deve dominar a natureza, dominar os animais, dominar as mulheres. Aliás, entre parênteses, supõe-se que tenham saído da costela de Adão, ao passo que, biologicamente, sabemos que é o contrário: éramos todos fêmeas até o décimo quarto dia da vida fetal, e os machos se formam apenas por ínfimas diferenças de secreção de testosterona.
E por milênios, especialmente durante as eras glaciais, a violência contra a natureza teve valor de sobrevivência. Faltava comida vegetal, e a sobrevivência da humanidade foi assegurada graças à inteligência que nos permitiu fazer armas, com sílex e ossos, e em parte graças à violência física dos homens, capazes de matar animais de grande porte. As mulheres também participavam da caça, rastreando os animais ou abatendo-os, e participavam mais do que os homens na produção de alimentos, pois colhiam plantas e frutas. Mas a capacidade de matar um animal grande, algo mais espetacular, ofuscou essa função nutridora das mulheres e transformou os homens em heróis.
Foi violência adaptativa, você escreve.
Isso mesmo, foi uma violência adaptativa, provocada pelas variações do clima. Essa violência continuou ao longo da história, especialmente em tempos de seca. A muralha da China foi construída pelos chineses (1368-1644) para se protegerem das invasões dos povos do Norte, os mongóis, entre outros, que estavam morrendo de fome e de sede.
Hoje, porém, o domínio sobre a natureza produz efeitos deletérios. Quando os solos já não produzem plantas, não é só porque há seca, mas porque estão poluídos por substâncias tóxicas, ou porque, para fins de benefício econômico, não respeitamos o pousio, a variação das culturas... O processo se inverteu, e agora é a espécie humana que está pondo em risco sua própria sobrevivência ao intensificar o aquecimento global através da tecnologia industrial, das mudanças nos transportes, da pecuária, etc. Agora é cooperando com os ambientes e com os outros que poderemos continuar a viver.
Se os humanos e o ambiente natural são interdependentes, a concepção liberal do individualismo (o indivíduo é livre e inteiramente responsável por si mesmo) não é um delírio?
Pessoalmente, não uso o termo “individualismo”, porque penso que o individualismo é uma ilusão: somos esculpidos pelo ambiente em que vivemos. Claro que mantemos alguma liberdade, e podemos agir sobre o ambiente que nos molda: por exemplo, nos próximos meses, podemos nos deslocar menos, comer menos carne para reduzir a nossa pegada energética e, consequentemente, a degradação do ambiente.
Mas não fazemos tudo isso sozinhos, como gostaria a concepção neoliberal. De acordo com esta visão, um homem é Rockefeller, o quê! É um pobre coitado que chega em Nova York e encontra um alfinete no chão. Ele vê que o alfinete é um alfinete de gravata de diamante. Ele o pega e fica incrivelmente rico porque é um “batalhador”. O que está subentendido é que um indivíduo suficientemente forte não precisa de um ambiente favorável para se desenvolver.
No entanto, isso é falso. Porque a estrutura do ambiente, social, ambiental, facilita ou dificulta o desenvolvimento de um cérebro saudável. Quando a seca se torna crônica, por exemplo, como na Somália ou na região de Darfur, também há impactos psicológicos: as crianças não adquirem o apego de confiança nos seus entes queridos necessário à vida porque estão sempre em alerta para não morrerem...
Essa é a percepção ecossistêmica da psicoecologia. Se uma criança não se desenvolve, pode ser porque está sob o efeito de um grande estresse, favorecido pelas dificuldades econômicas de seus pais, eles mesmos sujeitos a políticas agrícolas inadequadas... e não porque está “doente”, como se pensou durante muito tempo.
Então, voltando à proposta do Sr. Guterres, ir na direção da “solidariedade climática” significaria entender essas inter-relações?
Seria necessário, por exemplo, reduzir as enormes fazendas de carne, para evitar a propagação de epidemias virais e reduzir os gases de efeito estufa... Mas é preciso vontade política!
Hoje, no entanto, muitas pessoas estão angustiadas com o fato de terem que escolher. Diga-me onde está a verdade? Diga-me no que acreditar? E elas têm a tendência de votar não em governantes determinados a transformar as coisas, mas em governantes autoritários – eu diria totalitários –, que as tranquilizem. Erdogan, por exemplo, eleito e reeleito democraticamente, ou Bolsonaro, derrotado por pouco nas últimas eleições brasileiras.
Temos, portanto, um grau de liberdade, como nos lembra António Guterres, que podemos usar para agir favoravelmente sobre o ambiente que age sobre nós. A espécie humana poderá então sobreviver, mas em diferentes condições técnicas, emocionais e sociais. Ou então, negligenciamos isso e criamos as condições da nossa morte deixando-nos levar pelos velhos sistemas, políticos, econômicos.
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“Os seres humanos são esculpidos pelo ambiente em que vivem”. Entrevista com Boris Cyrulnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU