02 Novembro 2022
Seis mil é o número simbólico que, em certo sentido, marca toda a dificuldade de remeter o caso ucraniano a uma análise racional. Afastando-o daquela que parece ser uma corrida cega rumo à escalada militar – incluindo um incidente nuclear – para direcioná-lo a um cessar-fogo, como o Papa Francisco pede. E como as 400 organizações e associações leigas e católicas se preparam para pedir com a manifestação nacional, que será realizada em Roma no dia 5 de novembro.
O comentário é de Marco Politi, publicado em Il Fatto Quotidiano, 11-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Seis mil é um número arredondado. Porque, no dia 11 de setembro passado, uma agência da ONU (que monitora a situação na Ucrânia) certificou que, desde o início do conflito, 5.827 pessoas foram mortas e 8.199 ficaram feridas, dados evidentemente baseados em informações provenientes de Kiev e dos territórios ocupados pelos russos.
É quase certo que as perdas foram maiores. Quantas? Mil, duas mil a mais? Mesmo que fossem oito mil, seria uma tragédia, mas não aquele “genocídio” que a guerra psicológica vai propagando.
Não há dúvida de que as tropas russas se mancharam de crimes, pelos quais terão que responder. Mas é igualmente indubitável que, desde o início do conflito, desenvolveu-se paralelamente uma guerra psicológica com o objetivo de marcar a Rússia como um “mal absoluto”. A partir do momento em que Bucha foi registrada como um horror, cada vala comum é automaticamente apresentada como um sepulcro de torturados.
Um caso marcante foi a descoberta na região de Pisky-Radkivski de uma “caixa cheia de coroas dentárias de ouro”. Quem escreveu a respeito disso, dentre outros, foi o Huffington Post, publicando fotos e palavras diretamente de um tuíte do Ministério da Defesa ucraniano. “Um mini Auschwitz. Quantas outras serão encontradas na Ucrânia ocupada?”, foi o comentário institucional ucraniano.
O apelo é evidente: os russos são como os nazistas, que, nos campos de concentração, arrancavam os dentes de ouro dos judeus levados para as câmaras de gás.
Quarenta e oito horas depois, o correspondente do alemão Bild Zeitung descobriu o dentista da localidade: ele testemunha que os dentes são simplesmente de seus pacientes e absolutamente não são de ouro. Mas, enquanto isso, a notícia falsa deu a volta no mundo, e a notícia verdadeira se perdeu pelo caminho.
No Avvenire, o jornal dos bispos, o presidente da Comunidade de Santo Egidio, Marco Impagliazzo, escrevia há algum tempo que a “militarização das consciências e a linguagem belicista [estão arrastando todos] para o turbilhão do bipolarismo do ódio, no qual o que importa não é entender e planejar o depois, mas tomar partido ou até mesmo torcer”.
É por esse motivo que o Papa Bergoglio se recusa a “abençoar” uma das partes do conflito e não deixa de convidar Zelensky a levar em consideração sérias propostas de negociação. O pontífice, assim como Henry Kissinger e Angela Merkel, considera que também será preciso pensar no momento de reinserir a Rússia em um contexto europeu.
Essa não é exatamente a linha do governo de Kiev, pois o conselheiro presidencial Mykhailo Podolyak indica como objetivo da guerra “desmilitarizar e desnuclearizar” a Federação Russa.
O presidente ucraniano também está participando ativamente da guerra psicológica. De maneira obsessiva, em todos esses meses, Zelensky apareceu praticamente todos os dias em todos os meios de comunicação e (remotamente) em todas as ocasiões de cúpulas internacionais e em todos os parlamentos ocidentais e em todos os eventos imagináveis, incluindo os festivais de cinema de Veneza e Cannes – dizendo o que é preciso fazer ou não, batendo e batendo de novo em uma única narrativa: colocar a Rússia de joelhos e aumentar a chegada de armas cada vez mais poderosas para garantir a “vitória”.
Aqueles que argumentam de forma diferente são pró-putinianos ou estão jogando estupidamente o jogo de Putin ou enfraquecendo o Ocidente. Quando uma guerra é santa, não há nada para discutir, nada para analisar, nada para propor. É preciso apenas destruir o infiel, o Inimigo absoluto.
Nesse turbilhão de irracionalidade, o Papa Bergoglio nada contra a corrente, e a União Europeia se deixa levar passivamente para uma escalada cada vez mais perigosa, sem que ninguém ponha sobre a mesa os objetivos de uma paz possível e os custos e benefícios de uma continuação da guerra.
A guerra santa exige que não se discuta o fato – denunciado pelo presidente francês, Macron – de que os Estados Unidos vendem gás líquido à Europa a um preço quatro vezes superior ao que é vendido no mercado estadunidense.
A guerra santa exige que não se reflita sobre as palavras do presidente estadunidense, Biden, que definiu Putin como uma pessoa “racional”, mas que cometeu um grande erro de cálculo ao desencadear a guerra (mas, se Putin é racional, então por que não chegar a um cessar-fogo e tentar chegar a uma solução racional do conflito?).
Por fim, a guerra santa exige que a Otan não queira levar em conta aquelas que o secretário de Estado vaticano, cardeal Parolin, definiu como as “legítimas preocupações” de todas as partes.
Há uma distorção de fundo na narrativa desse conflito, narrativa segundo a qual apenas os ucranianos podem decidir qual é o momento para fazer a paz. Mas é uma contradição. Existe uma cobeligerância entre o Ocidente e a Ucrânia, na qual Kiev paga muito em termos de perdas humanas e materiais in loco, e a Europa paga muito em termos econômicos. Sem essa aliança, Kiev não poderia dar um passo. E então decidimos juntos. E juntos aproveitamos a oportunidade de uma trégua para avaliar conjuntamente as melhores escolhas a serem feitas.
Entrar no mérito dos problemas (Crimeia, Donbass) – afirma o Avvenire em editorial – não significa abandonar Zelensky, “mas fazê-lo entender que não pode interpretar o apoio do Ocidente como aval a qualquer intransigência e à recusa de encerrar a guerra”.
Na Europa, abre caminho a interrogação sobre se a estratégia da escalada armamentista e do fomento a cada vez mais ódio é a correta. Na Itália, as pessoas são muito sensíveis sobre o assunto. E, nos Estados Unidos, surge a questão sobre se o conflito russo-ucraniano pode consistir em um “cheque em branco” dado a Kiev.
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Papa Francisco e a recusa de “abençoar” uma das partes: a Ucrânia não pode decidir a paz sozinha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU