04 Outubro 2022
O Papa Francisco voltou a falar do conflito sangrento da Ucrânia, dedicando à questão, de maneira não usual, todo o Angelus de ontem na Praça São Pedro. Francisco, dirigindo-se a ambos os líderes dos dois lados, Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, delineou uma espécie de plano de paz possível, ou pelo menos alguns pontos fixos a partir dos quais começar a abrir uma negociação.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada por Domani, 03-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O apelo do pontífice decorre, por um lado, da crescente preocupação de que a guerra em curso possa levar a uma escalada nuclear de consequências incalculáveis e, ao mesmo tempo, da urgência de acabar com o sofrimento da população civil ucraniana, também porque, disse ele, "certas ações nunca podem ser justificadas".
"Em nome de Deus e em nome do sentido de humanidade que habita em cada coração", afirmou o Papa na sua mensagem, "renovo o meu apelo para que se chegue imediatamente a um cessar-fogo. Calem-se as armas e se busquem as condições para iniciar negociações capazes de levar a soluções não impostas com a força, mas acordadas, justas e estáveis". E tais serão, prosseguiu, "se fundadas no respeito ao sacrossanto valor da vida humana, bem como da soberania e da integridade territorial de cada país, bem como os direitos das minorias e das legítimas preocupações".
De fato, Francisco criticou a legitimidade das anexações de territórios implementadas nos últimos dias por Moscou por meio dos chamados referendos nas zonas ocupadas militarmente pelos russos, por isso pediu que minorias de qualquer tipo, falantes de russo ou ucranianos, não sejam perseguidas, um apelo que vale tanto para o Kremlin quanto para Kiev.
Com as palavras sobre o respeito à integridade territorial, a Santa Sé alinha-se com a posição da comunidade internacional que desmentiu a validade dos referendos convocados por Putin (a própria China se absteve, junto com Brasil e Índia, na votação no Conselho de Segurança da ONU sobre a resolução condenando as anexações, o veto havia sido colocado apenas pela Rússia).
Por outro lado, Francisco pede ao presidente Zelensky que esteja aberto a possíveis negociações. "O meu apelo", afirmou o Papa ao Angelus, "dirige-se sobretudo ao Presidente da Federação Russa, suplicando-o que pare, também por amor ao seu povo, essa espiral de violência e morte. Por outro lado, aflito pelo imenso sofrimento da população ucraniana em consequência à agressão sofrida, dirijo um apelo igualmente confiante ao Presidente da Ucrânia para que esteja aberto a sérias propostas de paz".
A da Santa Sé é, até agora, a voz mais autorizada que se pronunciou a favor da paz, estabelecendo uma base mínima para o início de uma possível negociação. O risco, além de derivar para uma escalada nuclear "catastrófica", é – segundo o Vaticano – aquele anunciado em um tuite do padre Antonio Spadaro: "Se não for encontrada uma solução viável, corre-se o risco – se tudo correr bem – de uma ‘coreiazação’ da guerra russa na Ucrânia”.
Na prática, a cronicização de um conflito ao longo de uma fronteira não reconhecida internacionalmente com a persistência de fortes tensões destinadas a perdurar no tempo. Deve-se enfatizar que o próprio Francisco, falando com os jesuítas da região russa, havia explicado como ele se envolveu pessoalmente para realizar uma troca de prisioneiros entre duas partes. Na conversa, relatada pela La Civiltà Cattolica, Bergoglio contou como atuou para transmitir aos canais diplomáticos russos o pedido do lado ucraniano de libertação de mais de 300 prisioneiros. "Eles me pediram para fazer algo para realizar uma troca", disse o papa, "imediatamente liguei para o embaixador russo para ver se algo poderia ser feito, se uma troca de prisioneiros poderia ser acelerada".
Em geral, se o Vaticano e o próprio pontífice sempre confirmaram uma posição de condenação da invasão e de grave preocupação com os civis envolvidos no conflito, é também verdade que a Santa Sé tenha constantemente procurado não tomar partido abertamente com uma das partes envolvidas, deixando sempre uma brecha aberta – caso surgissem as condições – para exercer um papel de mediação em primeira pessoa. Por outro lado, Bergoglio fez do não alinhamento da Igreja com a política externa ocidental uma pedra angular de seu magistério justamente para se tornar um interlocutor crível com mundos e realidades mesmo distantes do catolicismo.
Sem falar, é claro, das inúmeras intervenções para denunciar a Terceira Guerra Mundial que já estaria em curso, e da qual o conflito ucraniano seria o momento mais dramático. No entanto, se essa continua sendo a doutrina de fundo, nas últimas semanas apareceram dois sinais de que a sensibilidade sobre o tema no Vaticano se expandiu para outros aspectos.
Ao retornar de sua viagem ao Cazaquistão, Francisco, conversando com jornalistas, falou explicitamente do direito de “se defender” que “não é apenas lícito, mas também uma expressão de amor à Pátria. Quem não se defende, quem não defende algo, não ama, enquanto quem defende, ama”. Mas, talvez ainda mais, teve impacto nas considerações de Francisco o que lhe foi referido pelo cardeal Konrad Krajewski, enviado do Papa à Ucrânia.
Krajewski testemunhou, e ficou chocado, a exumação de valas comuns na localidade de Izyum – que permaneceu sob ocupação russa por vários meses – que ocorreu após a libertação pelas tropas ucranianas. O cardeal, disse Francisco, falando de improviso no final de uma audiência geral, "falou-me sobre a dor desse povo, a maldade, as monstruosidades, os cadáveres torturados que encontram. Vamos nos unir a esse povo tão nobre e mártir".
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Anexações ilegítimas e respeito pelas minorias. O plano de paz de Bergoglio para a Ucrânia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU