20 Outubro 2022
De acordo com o site Important Stories, jornal independente russo especializado em jornalismo investigativo, seriam 90.000, entre mortos e feridos, as pessoas que até agora a Rússia sacrificou pela guerra. E de acordo com o cálculo que a ONG Ovd-Info mantém desde 24 de fevereiro, 19.935 pessoas foram presas na Rússia por iniciativas de protesto contra a guerra. A repressão não para, enquanto a dissidência também denuncia muitos casos de delação.
A mobilização parcial dos 300.000 chegou a 220.000. Vladimir Putin disse que será completada em duas semanas. Mas as famílias já estão recebendo notificações das mortes daqueles que foram enviados às pressas para o front: são reconhecidos como "heróis" pelo regime. "Nossa experiência mostra que a democracia e a liberdade de expressão são realmente importantes porque pode acontecer que um país caia na mesma situação em que a Rússia está hoje e é realmente terrível": disse ao SIR o diretor da Novaya Gazeta Europa Kirill Martynov, no fim de uma conversa sobre a situação na Rússia.
A entrevista é de Sarah Numico, publicada por AgenSIR, 19-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Que análise você faz da Rússia hoje?
É uma situação muito frágil porque as autoridades e o próprio Putin destruíram o contrato social que existia há décadas. Muitos fatos oferecem um quadro muito sombrio. Por exemplo, há apenas alguns dias, uma das universidades russas mais famosas, a escola superior de economia de Perm, encerrou seu programa de mestrado em Humanidades Digitais devido à posição contra a guerra que sua responsável Dinara Gagarina expressou nas mídias sociais.
Dezenas e dezenas de fatos semelhantes nos mostram como a sociedade está sendo destruída junto com a ciência, instrução, instituições educacionais, ONGs, associações de direitos humanos e assim por diante. E no momento é praticamente impossível estabilizar a situação porque há um nível de violência muito alto, começando pela violência doméstica.
E vai ficar cada vez pior porque, à medida que as pessoas regressarem da guerra, a violência aumentará ainda mais. Também temos um alto nível de ações ilegais por parte das autoridades que basicamente fazem o que querem, e um alto nível de corrupção. Não sei se há razões para pensar que o regime de Putin entrará em colapso em breve, mas ao mesmo tempo é difícil entender como as pessoas podem continuar a viver vidas normais nesta situação.
Perspectivas?
Vejo duas possibilidades: que sejam impostas regras estáveis para a sociedade, de modo que nas próximas décadas a Rússia se torne um Irã na fronteira da União Europeia; ou que as novas regras gerem uma crise política. E se comece a procurar pessoas que sejam pelo menos um pouco mais capazes de desempenhar o papel de Putin. Talvez em alguns meses veremos tentativas de um novo início.
Até que ponto são fortes os opositores da guerra ou de Putin? Terão chance de sucesso?
Putin vem preparando esse cenário há décadas e não há mais instituições formais ou informais que funcionem. Sobraram apenas pequenos grupos de pessoas que, apesar do medo, tentam imaginar dia a dia o que podem fazer: se podem se opor à guerra permanecendo no país ou se devem tentar deixá-lo. Não há projetos políticos comuns, pois a mídia e a oposição política foram destruídas antes mesmo da guerra ou nos primeiros meses após o ataque. Eu ainda continuo a acreditar que seja possível encontrar pessoas ao redor de Putin que estejam descontentes com a situação. E existe apenas uma possibilidade de mudar a situação por dentro: uma união de pessoas de baixo, junto com as personalidades que não querem mais Putin.
Você escreveu há alguns dias que Putin está perdendo a guerra: as pessoas na Rússia pensam como você?
As pessoas normais, aqueles que não foram convocadas continuam pensando que tudo está mais ou menos bem e que ainda há chance de vitória. Mas as pessoas que estiveram na guerra, ou viram o que acontece nos campos de batalha ou no contexto da mobilização militar ou aquelas que vivem nas fronteiras, como em Belgorod, essas pessoas têm muitas dúvidas. Os mortos no território da Federação Russa levantam cada vez mais perguntas. E ninguém acredita que haverá um final feliz para a Federação Russa. Mas tudo depende das conexões que as pessoas têm com a guerra. Segundo os observadores internacionais, o moral das tropas russas é muito baixo e acredito que depende do fato de que ninguém pode imaginar como seria possível vencer.
Em tudo isso, a que poderia servir a notícia do Prêmio Nobel à ONG Memorial?
O prêmio para a Memorial significa ainda ter a possibilidade de resistir e trabalhar, permite continuar recebendo apoio de pessoas na Rússia, bem como de organizações internacionais e das mídias de outros países. É muito reconfortante. Acho que foi difícil decidir dar o prêmio a organizações russas, ucranianas e bielorrussas ao mesmo tempo, mas acredito que foi muito correto. Congratulo-me com o fato de os colegas ucranianos em suas declarações tenham se referido aos outros dois vencedores como preciosos amigos e colegas. Isso é mais importante que nossos passaportes: existem valores comuns.
A Europa e o mundo estão fazendo o suficiente nesta situação?
O presidente Putin e o exército russo criaram uma situação que não deixa outra possibilidade a não ser defender as pessoas na Ucrânia. Acho que a Europa está se saindo muito melhor nessa situação do que poderíamos imaginar. Talvez seja hora de nos perguntarmos se ainda há espaço para tolerância para com aqueles que começaram a guerra e quais políticos ainda apoiam Putin da Europa. É hora de investigar o caminho que o dinheiro russo faz em direção à Europa, parar de fazer fortuna com o dinheiro das ditaduras.
O apoio à dissidência é suficiente?
Recebemos muita solidariedade de colegas jornalistas, ONGs e até governos europeus, mas também entendemos que a Europa não estava preparada para tal conflito. A decisão simplista de considerar qualquer pessoa com passaporte russo um perigo e uma ameaça é absolutamente compreensível, porque obviamente se houvesse milhões de turistas russos na Europa seria um perigo, especialmente para os países menores. Ao mesmo tempo, acho que precisaríamos de regras especiais para esse momento extraordinário e avaliar as pessoas não apenas com base no passaporte. Estou preocupado com os estudantes russos, por exemplo, porque estrategicamente acho que seria melhor se eles recebessem sua educação em um país europeu. Deveria ser discutido e chegar a acordos políticos em benefício das pessoas que são vítimas desta guerra na Rússia.
Se o regime de Putin acabar um dia, o que você fará?
Voltarei para a Rússia no mesmo dia.
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“Os mortos levantam cada vez mais perguntas. E ninguém acredita que haverá um final feliz”. Entrevista com Kirill Martynov (Novaya Gazeta Europa) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU