21 Setembro 2022
As assustadoras histórias de muitas mulheres nascem do cruzamento com homens que comprometeram seu papel de pais, maridos e companheiros. Essas histórias nascem em épocas diferentes e ocorrem em lugares e culturas diferentes, com variáveis ora semelhantes, ora diferentes. É o que analisam Antonio Autiero, professor emérito de Teologia Moral na Universidade de Münster, Alemanha, e o jesuíta estadunidense James F. Keenan, professor da cátedra Canisius, no Boston College, Estados Unidos.
O artigo, originalmente publicado por The Tablet, é reproduzido por Settimana News, 18-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Keenan, que trabalha 'a ética da vulnerabilidade', cita Judith Butler: “Você me chama, e eu respondo. Mas, se eu respondo, é só porque já era capaz de responder; isto é, essa suscetibilidade e vulnerabilidade me constituem no nível mais fundamental e estão presentes, poderíamos dizer, antes de qualquer decisão deliberada de responder ao seu chamado. Em outras palavras, é preciso já ser capaz de perceber o chamado antes de responder. Nesse sentido, a responsabilidade ética pressupõe a capacidade ética de responder”.
No dia 13 de agosto passado, enquanto visitávamos a Ilha de Torcello, ao norte de Veneza, percebemos o entrelaçamento de duas histórias desse tipo, à distância de 19 séculos, com uma assustadora coincidência.
Na igreja de Santa Fosca do século XI, construída em forma de cruz grega, um magnífico exemplo do estilo veneziano-bizantino, precisamente ao lado da gloriosa Catedral de Santa Maria dell’Assunta do século VII, em toda essa beleza, veneramos as relíquias e refletimos sobre a trágica história das santas Fosca e Maura.
No ano 250, Fosca, uma jovem filha de uma família pagã, conheceu o cristianismo, seguiu seu ensinamento e foi batizada. Maura, ama de leite de Fosca, seguiu seu exemplo.
O pai de Fosca tentou convencer a filha a voltar à fé pagã, mas, quando ambas se recusaram, ele as denunciou ao lendário Quinciano, prefeito romano sob o imperador Décio. Quinciano, famoso pela bárbara tortura e pelo martírio de Santa Ágata em fevereiro de 251, martirizou Fosca e Maura com a espada no mesmo ano.
De pé, considerando a história delas e venerando suas relíquias, Autiero observou que, apenas alguns dias antes, em Salerno, um pai havia esfaqueado a filha lésbica de 23 anos, Immacolata, e sua companheira de 39 anos. Ele não podia suportar que as duas mulheres tivessem decidido morar juntas. Para ele, era inconcebível, inaceitável.
Como não haviam dado ouvidos à advertência dele para ficarem longe uma da outra, ele tentou esfaquear as duas, gritando: “É melhor que eu passe 30 anos na prisão, assim vocês morrerão juntas”.
Immacolata e sua companheira, Francesca, escaparam apenas com ferimentos superficiais (cf. Corriere della Sera, disponível em italiano aqui).
Tanto Fosca quanto Immacolata estavam prestes a tomar decisões importantes para um Outro, para uma outra, sinal da sua maturidade nas escolhas de fé religiosa ou de relações afetivas.
Em vez de dar ouvidos aos pedidos dos pais, elas seguiram em frente em seu caminho. Porém, seus pais tentaram (e um conseguiram) destruir a vida de suas filhas, porque a sua vontade não havia sido atendida. Realizaram essas ações justamente como “pais”, um papel que achavam que lhes dava o direito de denunciar ou de destruir suas filhas. Essa sua concepção de paternidade, infelizmente, é muito generalizada.
Igreja de Saint-Jacques, França. (Foto: Manfred Heyde | Monumentum)
Em Torcello, vimos o longo arco do feminicídio e, em particular, como esse arco é moldado pela compreensão que os pais têm de seu próprio papel.
Autiero observou: “Para eles, não se trata de dar a vida, como genitor, mas de dominar a vida como chefe e déspota; de colocar a própria representação do modelo e da função acima da escolha das pessoas que são seus verdadeiros sujeitos responsáveis. É como colocar as mãos sobre a alma e a vida de alguém”.
Os pais de Fosca e Immacolata acreditavam que só eram alguém ou que só importavam como homens na medida em que podiam impor sua vontade às mulheres. A expressão dessa concepção doentia e perigosa de si vai da tendência cotidiana e latente de dominar a vida dos outros (filhas, esposas, amantes, companheiras de vida) ao condicionamento de suas escolhas e ainda ao cruel exercício da violência que até extingue a vida delas.
Dois dias depois da nossa visita a Torcello, o Ministério do Interior italiano publicou, como em todas as festas da Assunção, o dossiê anual sobre segurança, mencionando também o problema do feminicídio. Os dados deste ano (disponíveis aqui) relatam um aumento de 108 para 125 homicídios de mulheres pelo fato de serem mulheres, mortas no contexto “familiar ou afetivo”, isto é, por pais, tios, irmãos e, mais comumente, por companheiros ou ex-companheiros.
Nas últimas décadas, as ciências antropológicas e sociais, assim como os estudos de gênero, têm nos oferecido instrumentos de análise e caminhos de aprofundamento para reconhecer a gênese e o alcance desses fenômenos. E os mais recentes “estudos sobre a masculinidade” nos ensinam a libertar o masculino dos desejos tóxicos da dominação.
Aqui está em jogo a consciência de todo o peso cultural e as múltiplas incrustações que geraram uma visão distorcida da relação entre os gêneros e a consciência dos papéis baseados na dominação.
As religiões tiveram um papel decisivo e nem sempre libertador em tudo isso. Pelo contrário, elas contribuíram para legitimar a superioridade do homem, recorrendo inequivocamente a expressões masculinas e dominantes das imagens de Deus. A teologia moral, sacramental e sistemática deve reconhecer sua parte de responsabilidade em tudo isso. E os nossos bispos, em particular, devido à sua função de liderança na Igreja, devem ser muito mais sensíveis a essa perigosa realidade.
Nos últimos anos, Autiero e Keenan examinaram a ideia de pai na ética teológica católica.
Autiero, por exemplo, organizou, junto com Marinella Perroni, o livro “Maschilità in questione. Sguardi sulla figura di san Giuseppe” [Masculinidade em questão. Olhares sobre a figura de São José] (disponível aqui), em resposta à recente iniciativa do Papa Francisco que, em 19 de março de 2021, havia convocado o Ano de São José, propondo-o como modelo de masculinidade, além de marido e pai exemplar, que, aceitando ficar em segundo plano, conseguiu estabelecer relações saudáveis.
Em sua carta apostólica intitulada Patris corde (“Com coração de pai”, disponível em português aqui), Francisco escreveu que “não se nasce pai, torna-se tal”, acrescentando que um homem não se torna pai “apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele”. Em particular, ele promove José que “acolhe Maria, sem colocar condições prévias”, um gesto importante “neste mundo onde é patente a violência psicológica, verbal e física contra a mulher”.
Ainda em Torcello, olhando para as relíquias de Fosca e Maura, pensando em Immacolata e em sua companheira, e refletindo sobre o relatório do Ministério do Interior, Autiero relatou como Perroni abre a coletânea de ensaios que compõem o livro citado com o apelo a repensar a masculinidade de um modo mais concreto.
Observando que oito dos 12 estudiosos que contribuíram para o volume mencionado são mulheres, Autiero destacou que ternura, o reconhecimento recíproco e o cuidado responsável são as qualidades vulneráveis que emergiram a partir de suas investigações.
Keenan tinha acabado de finalizar as conferências de D’Arcy, em Oxford (Campion Hall), que serão publicadas no ano que vem pela Georgetown University Press (as conferências estão disponíveis em vídeo, em inglês, aqui). Lá, ele havia desenvolvido uma ética da vulnerabilidade, sob a influência de Judith Butler.
Keenan defende que a vulnerabilidade não é um estado de necessidade, mas sim a capacidade humana, ontológica, de responder ao outro. Na parábola do Bom Samaritano, ele vê o vulnerável não na vítima ferida à beira da estrada, mas no Samaritano que responde de maneira singular à indigência do desafortunado. E, na parábola do Filho Pródigo, ele evidencia o pai vulnerável que acolhe novamente o filho no caminho de volta.
Keenan gosta de citar a observação de Butler em 2012: “Você me chama, e eu respondo. Mas, se eu respondo, é só porque já era capaz de responder; isto é, essa suscetibilidade e vulnerabilidade me constituem no nível mais fundamental e estão presentes, poderíamos dizer, antes de qualquer decisão deliberada de responder ao seu chamado. Em outras palavras, é preciso já ser capaz de perceber o chamado antes de responder. Nesse sentido, a responsabilidade ética pressupõe a capacidade ética de responder”.
Keenan argumenta que a vulnerabilidade é a nossa capacidade de resposta, aquilo que nos permite e nos impulsiona a reconhecer, a responder, a comunicar, em uma palavra, a amar.
Assim como a renomada escritora italiana Giusi Quarenghi, que fecha o livro editado por Autiero e Perrone interrogando-se sobre como somos influenciados pelas imagens de Deus Pai, assim também Keenan estuda a imagem de Deus Pai no famoso motivo do Trono da Graça. Ele observa que, quando o trono foi representado pela primeira vez no século XII, o Pai, ao segurar o corpo crucificado do Filho, estava visivelmente entristecido.
Mas, com o passar do tempo, os líderes da Igreja, no temor de que tal representação pudesse minar a ideia da natureza imutável de Deus, obrigaram os artistas a representar o Pai em sua impassibilidade. Mas Keenan se pergunta: o Evangelho de João não sugere, talvez, várias vezes, que, se o Filho é vulnerável, o Pai também o é? Aquele que se submeteu vulneravelmente à cruz não teria sido acolhido vulneravelmente pelo Pai?
E, então, quando proclamamos a nossa fé em Deus Pai Todo-Poderoso, talvez devêssemos parar por um instante e nos perguntar se o nosso Pai não obtém “seu poder” da sua vulnerabilidade, e não de alguma imagem latente de dominação tóxica.
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Perguntas sobre o pai. Artigo de Antonio Autiero e James Keenan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU