07 Dezembro 2021
Quem faz experiência do paterno arrogante não sabe mais empregar a analogia do vínculo familiar para se aproximar de Deus e chamá-lo de Pai.
A opinião é do filósofo e teólogo Antonio Autiero, professor emérito de Teologia Moral da Universidade de Münster, na Alemanha. O artigo foi publicado no caderno Donne Chiesa Mondo, do jornal L’Osservatore Romano, de dezembro de 2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Dentro e fora do contexto da oração, a fórmula “Em nome do Pai” é tão familiar para nós que nem sempre somos levados a nos perguntar totalmente o porquê daquilo que dizemos. Assumimos como evidente que nos voltarmos para Deus e chamá-lo de Pai é algo natural e óbvio. E, em grande parte, também o é.
Mas vale a pena se deter por um momento sobre o porte e as implicações dessas palavras, talvez arregalando os olhos e fazendo algumas perguntas.
Na prerrogativa do Pai atribuída a Deus, duas trajetórias se cruzam. Em primeiro lugar, há a de Jesus que revela o rosto do seu Pai celeste, com o qual ele é “um” (Jo 10,30): é o anúncio sobre o qual se baseia a salvação, boa nova, cuja promessa o próprio Deus havia feito no primeiro pacto, nunca revogado, de aliança, assegurando que é “um pai para Israel” (Jr 31,9).
Depois, há a trajetória do fiel que acolhe o anúncio e na fé reconhece o Deus que salva. Mas, querendo dar plasticidade e substância a esse Deus, funde ao mesmo tempo a revelação de Deus em Jesus Cristo e o sentido do vínculo familiar mais próximo a ele e o estende por semelhança e analogia a Deus. Há, portanto, um entrelaçamento entre revelação e atribuição, dois movimentos convergentes, mas não iguais.
Um se inspira na vontade do próprio Deus de se revelar Pai, o outro é confiado de forma confidencial à possibilidade expressiva da analogia, embora sempre exposta à fragilidade da sua capacidade, ligada à experiência do vínculo familiar. Na simbólica desse entrelaçamento, leem-se nas entrelinhas significados e tarefas que nos afetam muito de perto.
O andamento da relação pai-filho pode ter direções diferentes. Aqui colocamos mais ênfase naquela que vai do filho ao pai. Entender a paternidade – também e sobretudo a de Deus – a partir de se reconhecer como filho significa acima de tudo saber que não estamos sozinhos no mundo.
A perspectiva da filiação desenvolve em nós a consciência de um pertencimento revelador, do fato de se encontrar na fila da generatividade, aquela que nos insere na história e nos permite fazer parte dela.
A perspectiva da generatividade afasta o pai da exclusividade da relação com o filho; em certo sentido, amplia a malha dessa relação, incluindo a polaridade da dimensão materna em um circuito unitário de relação genitorial. Talvez seja justamente essa a raiz mais profunda pela qual, e não a partir de hoje, se atribui a Deus também a prerrogativa de mãe.
É famosa a referência da mística medieval Juliana de Norwich (1342-1416), contida no capítulo 59 do seu “Livro das Revelações”, ao qual corresponderam expressões de sinal semelhante em tempos mais recentes, até por parte de pontífices como João Paulo I e João Paulo II.
Certamente, a extensão à esfera materna é muitas vezes revestida de significados relativos a funções e papéis, atitudes e virtudes que só devido a um condicionamento cultural distorcido são considerados prerrogativas exclusivamente femininas, como se só assim se pudesse falar de Deus que é amoroso no cuidado e sensível às fragilidades dos seus filhos.
O fato de Deus ser ao mesmo tempo pai e mãe, nessa ótica de generatividade ampliada e inclusiva, leva a cabo o desígnio de relação de Deus com o mundo e com os homens e mulheres, e expressa com a máxima potência que o destino da história humana e do mundo está no coração de Deus que gera a vida.
O pertencimento, inscrito no perímetro da paternidade generativa e inclusiva, tem duplo valor e está sob a ameaça de um duplo risco. Na perspectiva do filho, o pertencimento pode degenerar em inércia, passividade, esvaziando a partir de dentro a assunção de responsabilidade por parte deste de se construir como sujeito maduro, capaz de caminhar com as próprias pernas, autônomo e relacional para estar bem no mundo e construir comunidade.
Na perspectiva do pai, o pertencimento pode incentivar a ânsia de posse da vida do filho, o suposto direito de dispor dele por meio da dominação e do controle. A história nos apresenta uma galeria de modelos do paterno que muitas vezes transbordam na atitude de patrão. A figura da mãe é mais evocada não mais como inclusiva na ideia de generatividade, mas como compensação pela arrogância do pai que expressa a mesma ânsia de controle sobre ela e sobre os filhos.
Somente processos delicados e complicados de emancipação desses modelos do paterno dominante conseguem restaurar a dignidade pessoal às mulheres e às mães e a possibilidade de desenvolvimento para filhas e filhos. Quem faz experiência do paterno arrogante não sabe mais empregar a analogia do vínculo familiar para se aproximar de Deus e chamá-lo de Pai.
Tornar existencialmente impossível para esses sujeitos desfavorecidos o reconhecimento do rosto paterno de Deus é uma trágica consequência das relações pai-filho desmedidas.
Por trás de tudo isso, existe uma falsa ideia de masculinidade, considerada normativa no modo de desempenhar o próprio papel de homem e na vontade de exercer controle e dominação para governar o mundo.
Na realidade, ela nada mais é do que masculinidade tóxica, cujas expressões não são raras e todas são tristemente coloridas com tons escuros, muitas vezes maculadas pela violência, marcadas pelo sangue e pela morte. Esses modelos de paternidade não se prestam à mediação para entrar na analogia com a paternidade de Deus, que, ao invés disso, fala a linguagem do acudimento, do respeito pela alteridade do outro, do reconhecimento do direito de se tornar si mesmo, mediante a construção de um desígnio de vida próprio.
O caminho de libertação da paternidade das armadilhas da masculinidade tóxica é longo e fatigante, e quem se dispõe a fazê-lo deve saber que não só cria condições mais humanas de vida para cada filha e cada filho, nem só enriquece a própria humanidade e redime a própria masculinidade, mas também devolve a Deus a luminosidade reconhecível do seu verdadeiro rosto de Pai.
E se Jesus de Nazaré adverte: “Não chamem a ninguém de ‘pai’ na terra” (Mt 23,9), ele certamente não o faz para minar os vínculos familiares, mas talvez apenas para nos dizer que só podemos ser pai e mãe tornando transparente e contagioso o modo de ser de Deus. Por isso, podemos e devemos ainda ousar chamá-lo de Pai.
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Em nome de que pai? Artigo de Antonio Autiero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU