27 Julho 2022
Durante três décadas, a Somália oscilou entre a desordem e a anarquia. O governo controla apenas parte do país. O resto está nas mãos de jihadistas que são especialistas em se imolar em lugares com muita gente. Para muitos somalis a vida é pobre, brutal e curta. Eles vivem no quinto país mais pobre e no oitavo mais violento. Sua expectativa de vida é a sexta mais baixa do mundo.
A reportagem é publicada por The Economist e reproduzida por Infobae, 26-07-2022. A tradução é do Cepat.
As secas e as inundações aumentam sua miséria. Em 2011, a falta de chuva contribuiu para a pior fome do século XXI. Mais de 250.000 pessoas morreram, metade delas crianças. Uma década depois, a história pode se repetir. A seca mais longa em quatro décadas está devastando as plantações e matando o gado na Somália, Etiópia e Quênia. Mais de 18 milhões de pessoas na região lutam para encontrar o suficiente para comer; as crianças estão morrendo nos três países. Mas é na frágil Somália que a seca, que cai como um golpe sobre uma ferida, vai castigar com mais força. “Se não fizermos nada agora, estaremos falando de centenas de milhares de mortes”, diz Mohamed Abdi, do Conselho Norueguês para os Refugiados, uma instituição beneficente.
A disfunção política e a pobreza na Somália têm grande parte da culpa pela crise. Mas a responsabilidade também está além de suas fronteiras. Dado que a Somália emite apenas um pouco mais de dióxido de carbono do que Andorra, dificilmente pode ser responsabilizada pelas mudanças climáticas que parecem estar tornando as secas dessa magnitude mais comuns. E nem mesmo o mais fervoroso teórico da conspiração culparia a Somália pela invasão russa da Ucrânia, que causou uma crise alimentar global.
A Somália importa quase 80% dos seus alimentos. Em janeiro, o aumento dos custos de transporte fez com que os preços locais se aproximassem dos níveis vistos pela última vez durante a fome de 2011. A invasão da Rússia e o aumento dos preços dos combustíveis também alimentaram a inflação dos alimentos. Consequentemente, agora é muito mais caro para os somalis que vivem da terra comprar alimentos para complementar sua dieta e para os moradores da cidade encontrar uma ajuda.
Somália, país localizado no Chifre da África. (Foto: Reprodução | NetMaps)
O aumento dos preços dos cereais também aumentou o custo da ajuda. Desde o início da guerra na Ucrânia, os custos operacionais do Programa Mundial de Alimentos da ONU aumentaram 44%. Os doadores forneceram apenas 30% do US$ 1,5 bilhão que a ONU diz precisar para evitar o desastre na Somália. Recentemente, o Reino Unido suspendeu os pagamentos de ajuda “não essencial” para evitar gastos excessivos de um orçamento que foi afetado pelo custo da ajuda humanitária na Ucrânia. Tudo isso força os cooperadores a tomar decisões difíceis sobre quem ajudar e quem rejeitar.
Cerca de 7 milhões de pessoas, mais de 40% da população da Somália, lutam para conseguir comida. Os trabalhadores humanitários estimam que 1,4 milhão de crianças estão gravemente desnutridas. Centenas, talvez milhares, já morreram. No entanto, isso não desencadeou uma declaração formal de fome, termo técnico que só é usado quando uma série de limites relacionados à desnutrição, escassez de alimentos e taxas de mortalidade é ultrapassada. A Somália está próxima desses níveis em algumas áreas e os ultrapassou em outras. No entanto, uma vez que todos os critérios sejam atendidos, é quase certo que será tarde demais para evitar o desastre. Quando a fome foi declarada em 2011, um anúncio que liberou uma torrente de fundos de doadores, metade das eventuais mortes já tinha ocorrido.
As verdadeiras fomes são, felizmente, raras hoje em dia. A última “calamitosa”, ou seja, uma fome que causa pelo menos um milhão de mortes, ocorreu na Etiópia na década de 1980. As “grandes fomes”, aquelas que ceifam 100.000 ou mais vidas, também diminuíram devido aos mecanismos de alerta precoce melhorados e a intervenções humanitárias mais eficazes. Houve apenas três fomes desse tipo neste século, a mais recente e mais mortal das quais foi a da Somália em 2011.
A Somália tem sido durante muito tempo propensa a secas, mas elas estão se tornando cada vez mais frequentes, diz Christophe Hodder, enviado da ONU para o clima no país. Embora a seca atual não possa estar diretamente ligada ao aquecimento global, é a mais longa em 40 anos. As chuvas falharam três vezes antes da fome de 2011, mas desta vez falharam quatro vezes. As previsões sugerem que uma quinta falha é provável. Com a expectativa de que a temperatura média na Somália aumente de 3 a 4°C até 2080, essas secas provavelmente se tornarão mais comuns.
A seca sozinha raramente provoca fome. Em 1991, a Somália mergulhou na guerra civil e na insurgência jihadista após a queda de Siad Barre, seu ditador. As décadas de anarquia que se seguiram devastaram a agricultura. Um país que já se alimentava razoavelmente bem viu a produção de cereais cair 60% desde 1989 para atender apenas a um quinto das necessidades. Em vez disso, a Somália importa a maioria dos produtos básicos, como arroz, macarrão e óleo de cozinha. Mesmo aqueles que ganham a vida precariamente pastoreando gado ou cultivando dependem de algumas importações.
Décadas de combates também destruíram a infraestrutura, paralisaram a economia, forçaram milhões de pessoas a fugir de suas casas e deixaram o Estado em grande parte incapaz de fornecer serviços básicos, como saúde e educação. O novo presidente da Somália, Hassan Sheikh Mohamud, assumiu o cargo em junho. Ele espera reverter a deterioração da segurança que ocorreu sob seu antecessor, Mohamed Abdullahi Mohamed, que esteve perto de reacender a guerra civil quando tentou permanecer no cargo além de seu mandato. O governo e seus aliados controlam a capital, Mogadíscio, e suas principais cidades provinciais. Mas a Al Shabab, a filial mais rica e mortífera da Al Qaeda, controla a maior parte do campo.
Essas comunidades rurais são as mais afetadas pela crise. Guriel, no Estado de Galmudug, é o centro comercial da Somália central. Normalmente, seu mercado de gado fica cheio, chegando a ter normalmente 1.200 animais por dia que passam por seus currais. Atualmente, diz um corretor local, têm sorte de conseguir 150. Antes da seca, Hassan Abdullahi Ali, um frequentador assíduo do mercado, vendia cabras por US$ 40 cada, o suficiente para alimentar seus dez filhos durante um mês. Agora, os pastos que ele usava desapareceram, os poços de água secaram e a doença está se espalhando por seu rebanho enfraquecido.
Cerca de um terço do gado nas áreas mais afetadas do centro e sul da Somália pode ter morrido desde o início da seca em 2020, incluindo 250 das 300 ovelhas e cabras de Ali e 15 de seus 20 camelos. Tentar vender os animais sobreviventes doentes é complicado. "Hoje eu trouxe dois para o mercado", disse. “Eu vendi um, mas ninguém quer comprar o outro”. O aumento do custo dos grãos significa que a venda de uma cabra agora é suficiente para comprar comida para alimentar sua família por apenas dez dias.
Depois que o sorgo e o milho que cultivavam secaram no talo, o marido de Hawa Mustaf Hassan deixou a fazenda da família no sul da Somália para ir em busca de um trabalho. Os 5 dólares mensais que ele lhe mandava não eram suficientes. O mais novo de seus três filhos, Adan, de dois anos, adoeceu. Ela juntou dinheiro para levá-lo para obter ajuda médica a tempo de salvá-lo. Durante semanas esteve entre a vida e a morte. “Senti que não havia esperança de sua recuperação”, disse. "Mas depois de 14 dias eu o vi sorrir e sabia que ele ficaria bem”.
Outros têm menos sorte. "As crianças estão morrendo", diz Abdullahi Ahmed Ibrahim, médico do Hospital Geral de Baidoa. "As mães chegam tarde demais e enterram os filhos pelo caminho”. Depois que todo o seu gado morreu há oito meses, Isaac Nur Ibrahim levou a sua esposa e os dois filhos pequenos para um acampamento de ilegais nos arredores de Kismayo. Ele só conseguia ganhar um dólar por dia como diarista. Depois que as rações foram reduzidas para uma refeição por dia, seu filho de dois anos, Abdikaafi, adoeceu com anemia relacionada à desnutrição. O menino acabou morrendo no dia 8 de junho. Um mês depois, aconteceu o mesmo com o sobrinho de quatro anos de Ibrahim. No total, sete crianças morreram no acampamento desde o início de junho, segundo os moradores.
As penúrias se abatem de forma desigual sobre os habitantes. Quando as colheitas fracassam e os animais morrem, os membros dos clãs mais ricos ou mais poderosos podem obter ajuda de seus parentes. Esses clãs costumam ter mais pessoas morando no exterior ou nas cidades da Somália; durante as secas, pode-se contar com eles para enviar dinheiro para o campo ou para abrigar aqueles que se mudam para as cidades em busca de alimentos. Mas os membros dos clãs mais pobres geralmente não têm escolha a não ser se mudar para acampamentos miseráveis e cheios de doenças. Isso ocorre porque os trabalhadores humanitários raramente se aventuram no campo por medo de que o Al Shabab decepe suas cabeças. Cerca de 2.000 acampamentos cercam as cidades da Somália e abrigam a maioria dos 2,9 milhões de deslocados do país. Muitos deles são controlados por figurões de uma malevolência dickensiana, que se apropriam da pouca ajuda que chega aos acampamentos e desalojam os moradores quando não são mais úteis.
Ajudar a população da Somália não só exigirá mais dinheiro para alimentos, mas também maiores esforços para direcioná-los aos mais necessitados e às áreas do campo controladas pelo Al Shabab. Para salvar vidas, as agências de ajuda terão que correr mais riscos, diz Daniel Maxwell, da Tufts University de Boston. Esses riscos não afetam apenas seus trabalhadores, mas também sua reputação e sua capacidade de angariar fundos. Alguns temem ter de enfrentar acusações criminais nos Estados Unidos em virtude das leis antiterroristas se a ajuda cair nas mãos dos jihadistas.
No entanto, não fazer mais para ajudar também traz riscos para a segurança da Somália. As pessoas famintas que se sentem fracassadas por seu governo podem estar mais dispostas a apoiar os jihadistas. A seca pode exacerbar ainda mais o conflito, já que as comunidades lutam por recursos escassos. Já pode ser tarde demais para evitar a calamidade na Somália, assolada como está pela insurgência e pela seca. Mas quanto mais o mundo esperar para ajudar, maior será o sofrimento.
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A Somália está à beira da fome - Instituto Humanitas Unisinos - IHU