Bolsonaro: fraco e perigoso

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26 Julho 2022

 

"Até a eleição, Bolsonaro é virtualmente intocável – e ele sabe disso. Graças a essa liberdade pessoal sem responsabilidade, Bolsonaro está usando suas palavras e comportamento para evitar sua destituição do cargo em caso de derrota nas eleições de outubro", escreve Diego Werneck Arguelhes, professor associado de Direito no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), em artigo originalmente publicado na página de direito constitucional Verfassungsblog e reproduzido por Settimana News, 25-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Quem acompanha a política brasileira sabe que o presidente Jair Bolsonaro está atrás nas pesquisas em sua corrida pela reeleição nas próximas eleições de outubro; e também sabe que desde 2021 sempre ameaçou não aceitar uma derrota nas urnas.

 

Em meados de julho, Bolsonaro chegou a convocar uma reunião com dezenas de representantes diplomáticos de países estrangeiros para tentar convencê-los de que o sistema eleitoral brasileiro atualmente não é transparente ou confiável e que, em caso de derrota, o resultado não seria legítimo. Ele repropôs as falsas histórias de fraude que vêm reapresentando há anos entre seus seguidores, mesmo depois de serem desmentidas várias vezes por juízes e outras autoridades públicas, pela mídia e pelas organizações da sociedade civil.

 

Após o encontro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) emitiu uma declaração oficial que mais uma vez verifica e desmente todas as alegações de Bolsonaro. Segundo Bolsonaro, porém, os próprios juízes eleitorais são cúmplices das fraudes. Ele sugeriu aos diplomatas que as autoridades judiciárias-eleitorais estariam trabalhando para favorecer Lula, que lidera as pesquisas (algo que o presidente não acredita).

 

Na realidade, Bolsonaro acredita que o sistema eleitoral, os juízes eleitorais, a imprensa e as pesquisas de opinião conspiram para “roubar” sua eleição.

 

Um filme já visto

 

Bolsonaro vem repetindo esse roteiro semanalmente há mais de um ano. Além disso, em seus discursos, o presidente vinculou a desconfiança no sistema eleitoral à resistência armada por parte de seus apoiadores (a ampliação do acesso a armas foi uma das principais políticas do governo). Trata-se de um esquema familiar.

 

Nas eleições estadunidenses de 2020, Donald Trump usou as denúncias de fraude para encorajar seus apoiadores a resolver o problema com as próprias mãos. Para os brasileiros, a encenação de Bolsonaro do roteiro de Trump parece ser um filme que já foi visto. Mas desta vez o assistimos em câmera lenta e o final poderia ser bem pior, considerando o papel dos militares na nossa história nacional e no governo Bolsonaro.

 

A sociedade civil não ficou desamparada. Muitos pressionaram instituições nacionais e organizações internacionais a agir. Por exemplo, um grupo de cientistas políticos e jurídicos brasileiros ("Demos", do qual sou membro) apresentou uma petição ao Representante Especial da ONU pela Independência de Juízes e Advogados e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, denunciando a desinformação, o incentivo à violência política e a intimidação direta de Bolsonaro contra os juízes eleitorais.

 

Existem muitos outros exemplos de reações desse tipo o perigo iminente é bastante visível no Brasil e está se tornando cada vez mais claro para os observadores internacionais.

 

Ainda assim, Bolsonaro redobra suas ameaças. Como é possível que esse comportamento permaneça sem controle? Uma ordenação constitucional não deveria ter mecanismos eficazes para lidar com as ameaças presidenciais explícitas à característica mais básica da democracia eleitoral - a alternância pacífica de poder? Como pode um presidente anunciar repetidamente e publicamente tais intenções, incitando seus seguidores a se unirem a ele nesse ataque pré-ordenado aos resultados das eleições, e sair impune?

 

O paradoxo Bolsonaro

 

Essa questão nos confronta com um paradoxo. Por um lado, Bolsonaro é um presidente fraco. O problema não é o do "hiperpresidencialismo" ou da "democracia delegada", dois conceitos desenvolvidos por observadores das políticas latino-americanas em que o chefe do Executivo não está sujeito a nenhum controle sobre seu poder de governar entre uma eleição e outra. Em termos políticos, a distância entre o que ele gostaria de fazer e o que realiza é enorme e, durante seu mandato, a própria presidência perdeu importantes poderes orçamentários.

 

Por outro lado, Bolsonaro é uma ameaça à democracia. Já a prejudicou em muitos níveis e semeou incertezas sobre a possibilidade de as eleições promoverem mudanças pacíficas de poder. Como um presidente tão fraco pode ser tão perigoso?

 

Acredito que exista um problema de responsabilização presidencial horizontal “desequilibrada”, que poderia, por sua vez, comprometer a responsabilização presidencial vertical (eleitoral) nas eleições de outubro. As medidas formais de Bolsonaro foram significativamente controladas. No entanto, nunca foi - e provavelmente não o será até depois das eleições - chamado para responder pessoalmente por eventuais irregularidades.

 

Nenhum impeachment, nenhum processo penal, nenhuma sanção eleitoral que imponha consequências ou custos pessoais relevantes por suas ações (como a destituição do cargo ou a declaração de inelegibilidade para cargos públicos). Por enquanto, Bolsonaro é livre para agir e falar para mobilizar o apoio contra tudo o que ele quiser, mesmo que seu poder de promulgar políticas e leis seja fortemente limitado.

 

Estudiosos tentaram mapear os mecanismos pelos quais um presidente sem uma coalizão legislativa válida ainda pode impactar algumas áreas políticas. O desastre que está passando pela política ambiental no Brasil nos dias de hoje, por exemplo, corresponde perfeitamente às ideias de Bolsonaro sobre o assunto. Eu não poderei render justiça aqui aos tantos projetos importantes em andamento nesse sentido. O que chamo de responsabilidade horizontal desequilibrada é apenas parte do quebra-cabeça.

 

De fato, as medidas de Bolsonaro têm sido constantemente monitoradas pelas instituições, principalmente desde o início da pandemia. Nenhum outro presidente desde a democratização sofreu tantas derrotas nas mãos dos juízes.

 

Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu vários de seus decretos que ampliam o acesso a armas de fogo pela população, e o presidente foi derrotado em praticamente todos os casos em que defendeu uma posição explícita sobre a pandemia de COVID-19. O STF e o TSE sancionaram vários apoiadores de Bolsonaro (entre os quais membros do Congresso), que atacaram ou ameaçaram juízes nas redes sociais, defenderam a volta dos militares ao poder ou divulgaram desinformações sobre o sistema de votação eletrônica.

 

Em setembro de 2021, o Congresso rejeitou uma proposta de emenda constitucional para implementar um "recibo" individual, impresso para cada voto emitido - uma proposta impraticável e simplista vinda direto do campo de Bolsonaro e que o presidente apresentou como condição sine qua não para que o país pudesse ter as eleições de 2022.

 

Além disso, o Congresso não apoiou as tentativas de Bolsonaro de impeachment de ministros do STF, nem aprovou as medidas de contenção judicial propostas pelos aliados políticos do presidente, nem usou suas prerrogativas constitucionais para proteger legisladores bolsonaristas que haviam atacado diretamente os juízes da própria Suprema Corte.

 

Controlado, mas não responsável?

 

No entanto, os juízes podem fazer muito (como fizeram) e pode não ser suficiente. O próprio Bolsonaro está fora do alcance judicial. Os tribunais podem anular suas medidas legais, mas o Congresso detém as chaves para desbloquear a responsabilidade pessoal do presidente.

 

Tanto um processo de impeachment (que é decidido pelo Senado) quanto um processo penal regular (que é decidido pelo Supremo Tribunal Federal) deveriam ser autorizados por uma maioria de 2/3 da Câmara, e Bolsonaro claramente tem votos suficientes para evitá-los.

 

Além disso, para começar, as acusações penais contra o presidente só podem ser apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PG). O atual PG, Augusto Aras, foi nomeado por Bolsonaro em 2019 para um mandato de dois anos. Bolsonaro indicou várias vezes que Aras estava em sua lista de possíveis candidatos à Suprema Corte. Desde sua nomeação, Aras foi visto como indulgente e passivo em relação ao comportamento de Bolsonaro (incluindo sua gestão criminal da pandemia) que até mesmo um juiz do STF, geralmente discreto, o criticou, em uma decisão, como o "Espectador geral da República".

 

No entanto, quando Aras se apresentou ao Senado em 2021 para ser reconfirmado como PG, apenas 10 dos 81 senadores votaram contra ele. A maioria dos senadores da oposição votou por sua confirmação por mais 2 anos. O apoio de Aras ao Congresso, inclusive entre a oposição, deve-se em grande parte às suas posições críticas sobre o escândalo de corrupção "Lava Jato" e subsequentes investigações criminais contra políticos, que têm sido altamente controversas no Brasil. Independentemente dos motivos dos senadores, no entanto, era óbvio que a confirmação de Aras garantiu a Bolsonaro que não enfrentaria um processo criminal enquanto estivesse no cargo.

 

Por razões diversas e contrastantes, uma grande maioria no Congresso parece satisfeita com o fato de que nenhuma medida esteja sendo tomada para remover Bolsonaro de seu cargo. O núcleo de sua coalizão defensiva é uma massa amorfa de políticos de centro-direita que o protegem do impeachment em troca do controle do orçamento e de vários setores do governo.

 

O clientelismo faz parte da política, mas esses políticos estão colocando em risco a democracia para tirar proveito da exploração de um presidente fraco, que precisava desesperadamente de seu apoio para permanecer no cargo e ter chance de reeleição. Não é exagero dizer que o poder central decisório no Brasil hoje não é de Bolsonaro, mas do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

 

Lira, assim como Aras, não considerou a mobilização de resistência de Bolsonaro em caso de derrota eleitoral como algo que exigisse medidas institucionais. Eles contribuem para dirigir o trem para o precipício com olhos bem abertos e ambição descontrolada.

 

A oposição se dividiu sobre a responsabilidade pessoal imediata de Bolsonaro por diferentes razões. O candidato do PT, ex-presidente Lula, lidera as pesquisas. Derrotar Bolsonaro na votação seria o ideal não só para o PT, mas provavelmente também para o próprio país – o mesmo povo que o elegeu em 2018 agora diz que deveria sair. No entanto, quanto mais a oposição aposta na vitória eleitoral de Lula, mais Bolsonaro responde desafiando o sistema eleitoral e os tribunais eleitorais que o fazem funcionar.

 

A estratégia da oposição pressupõe que haverá eleições em outubro, que não serão influenciadas pela violência política, que seu resultado será respeitado e que o poder mudará de mãos pacificamente em janeiro de 2023. No momento em que escrevo, essas coisas poderiam ser ainda mais prováveis do que improváveis - mas, na era Bolsonaro, estão longe de ser certas.

 

Cálculos políticos diferentes (e até opostos) em todo o espectro político tornaram improvável a responsabilidade presidencial: há quem queira a eleição de Lula, quem queira a responsabilidade eleitoral pelo voto e quem queira esse presidente fraco e que caiu em desgraça como fornecedor infinito de carne de porco e poder. Embora as duas primeiras posições sejam legítimas, todas as três fazem parte do cenário em que Bolsonaro pode continuar cruzando todas as linhas.

 

Até a eleição, Bolsonaro é virtualmente intocável – e ele sabe disso. Graças a essa liberdade pessoal sem responsabilidade, Bolsonaro está usando suas palavras e comportamento para evitar sua destituição do cargo em caso de derrota nas eleições de outubro.

 

Continuará a mobilizar o povo contra o sistema eleitoral, não aceitará a derrota e procurará uma forma de se manter no cargo independentemente das eleições – ou até mesmo sem elas. Concentrar-se apenas na responsabilidade eleitoral torna improvável a responsabilidade horizontal (pessoal); por sua vez, a falta de responsabilização pessoal ameaça a possibilidade de responsabilização eleitoral.

 

O Papel dos Militares

 

Os planos e intenções de Bolsonaro são tão claros quanto suas palavras. Mas ele tem os meios para realizá-los? Suas ameaças são plausíveis? Nos Estados Unidos, a tentativa de golpe de Trump fracassou. Será que Bolsonaro se limitará a argumentar que as eleições foram roubadas, mas depois voltará para casa lamber as feridas?

 

Nesse caso, o Brasil difere marcadamente dos Estados Unidos. Trump não pode contar com o exército como questão geral. Mas os militares brasileiros têm sido parte integrante do governo de Bolsonaro desde o primeiro dia (seu vice-presidente, por exemplo, é um general reformado do exército) – e eles são cada vez mais. O número de militares que ocupam cargos de gabinete ou cargos burocráticos atingiu níveis sem precedentes. Esse fato, por si só, já seria preocupante em uma democracia, mas em 2022 a situação piorou.

 

Os oficiais militares do governo Bolsonaro apoiaram a campanha contra as instituições eleitorais. O TSE convidou o exército a participar de uma comissão pela transparência e aprimoramento do sistema de votação. Mas, em seu empenho com a comissão, o exército essencialmente assumiu os desafios presidenciais ao sistema de voto. Para citar apenas um desses episódios, o ministro da Defesa, general do Exército, compareceu no Senado algumas semanas atrás, replicando essencialmente as opiniões de Bolsonaro sobre o sistema de votação eletrônica. Muitos altos oficiais do exército legitimaram publicamente os ataques de Bolsonaro ao sistema de votação.

 

Segundo um jornalista de um importante jornal, o encontro de Bolsonaro com diplomatas estrangeiros desagradou alguns generais da ativa, que queriam se dissociar de seu discurso golpista. No entanto, o Exército imediatamente emitiu um comunicado de imprensa negando isso. O que quer que esteja acontecendo dentro das Forças Armadas, a democracia brasileira não pode permitir-se ambiguidade nessa questão.

 

Os militares devem parar de apoiar qualquer ataque presidencial ao sistema eleitoral, mesmo que isso signifique se afastar do próprio governo. Bolsonaro deve sentir, e a opinião pública deve saber com certeza, que os militares nunca apoiarão nem permitirão qualquer tentativa de ignorar os resultados eleitorais.

 

Bolsonaro está atualmente fraco, mas livre para mobilizar abertamente apoio contra a aceitação de uma derrota eleitoral. Como parece ser tarde demais para os políticos mudarem a atenção das eleições para a responsabilidade presidencial, só podemos esperar tornar pouco credíveis as ameaças de Bolsonaro.

 

Considerando o deliberado envolvimento das forças armadas com Bolsonaro, bem como o papel dos militares em vários golpes na história brasileira, precisamos mais do que algumas citações anônimas de oficiais militares supostamente "legalistas".

 

Enquanto isso, as ameaças de Bolsonaro devem ser levadas a sério. 

 

 

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