15 Julho 2022
"O cristianismo de Bergoglio fez com que Scalfari mudasse de ideia não sobre sua rejeição à fé religiosa, mas sobre o cristianismo daqueles que têm uma fé e a mantêm como um dom e não a usam como um bastão. Em várias ocasiões, Scalfari contou a história de um relacionamento nascido por iniciativa de Bergoglio: suprema astúcia do padre jesuíta? Não: discernimento do bispo de Roma", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado em La Repubblica, 14-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Conversas com Ruini e Martini. Depois o encontro fulminante com Bergoglio: "Meus amigos me dizem que tenho que ter cuidado", confidenciou-lhe. "Porque conversando com o senhor vou acabar me convertendo."
A história da cultura italiana está cheia de "padralhada" em busca de almas famosas enviadas por seus registros de nascimentos à soleira do eterno: caçadores de sermões, mais que pescadores de homens, que aplicavam um princípio de apologética intransigente. O que dava justamente a uma capitulação in articulo mortis um valor apologético, quase uma demonstração de poder. Comparado a eles, Eugenio Scalfari era uma "presa" inatingível.
Scalfari o "leigo" (em italiano, laico) como diz nossa linguagem corriqueira, conscientizado por uma alta meditação filosófica. Scalfari o "não-crente", como ele mesmo dizia, que usava aquele não com uma consciência e uma seriedade que muitas vezes faltam em quem se diz "crente" sem ter aquele pudor que é próprio de quem sabe do que está falando. Scalfari, porém, que "questionava" a fé e se deixava questionar, buscando por toda a sua vida um interlocutor, afinal, com pouco sucesso.
De fato, dois grandes cardeais tiveram com ele um diálogo de diferente intensidade: Carlo Maria Martini e Camillo Ruini. O diálogo com eles não abalou uma convicção, que às vezes se tornava estereótipo: ou seja, pelo menos, que tudo o que fosse cristão e católico, devia, só poderia ser obtuso, porque se baseava numa convicção "absoluta" e na adesão a uma verdade revelada, imóvel, surda ao chamado da modernidade.
Martini não conseguia demovê-la. O cardeal de Milão, erroneamente considerado semelhante a Bergoglio, colocava os não crentes na cátedra. Mas para um propósito nobremente "instrumental": fazer ressoar seu acorde para fazer vibrar aquela que na experiência da fé transforma a monodia agnóstica na polifonia do espiritual. Sua intensidade principesca na escuta os tocava e seduzia: rompia uma parte do clichê que via nos cristãos apologistas da cristandade. Mas no final o valorizava por que apresentava aquela sua forma de se posicionar como uma raridade não replicável, uma exceção que confirmava a regra.
Nem mesmo Ruini conseguia abalá-la. O cardeal, que durante vinte anos expressou e dominou a Igreja italiana, procurava também em Scalfari um interlocutor "teológico": deixava-se interrogar de bom grado sobre os dogmas da fé e podia, pelo menos com ele, exibir seus estudos tomistas. Mas no final ficava claro que a distância intransponível entre aquelas abstrações doutrinárias e a politique d'abord que marcava sua vida cotidiana em uma Itália que estava escorregando na anomia de Berlusconi, não questionava praticamente nada.
E no final chegou Bergoglio: as nove páginas de resposta a um de seus artigos, o diálogo face a face em Santa Marta e a descoberta de algo que um grande nonagenário italiano, que havia perscrutado a Itália do convés do navio almirante da informação, numa relação próxima com tantas figuras e tantas notícias, podia dizer ter visto pela primeira vez: o cristianismo.
O cristianismo de Bergoglio fez com que Scalfari mudasse de ideia não sobre sua rejeição à fé religiosa, mas sobre o cristianismo daqueles que têm uma fé e a mantêm como um dom e não a usam como um bastão.
Em várias ocasiões, Scalfari contou a história de um relacionamento nascido por iniciativa de Bergoglio: suprema astúcia do padre jesuíta? Não: discernimento do bispo de Roma. Que escolheu um interlocutor não crente que lhe desse garantias suficientes de não capitular e com quem falar àqueles a quem não fala a caritas in veritate, mas apenas a veritas in caritate. Um encontro em que Scalfari agiu como de costume: publicando uma entrevista na qual não havia tudo o que Francisco lhe dissera e havia coisas que Francisco não lhe havia dito, mas que lhe pareciam refletir seu pensamento.
Pela primeira vez em sua vida, por escrúpulo, enviara o texto ao Papa para que o lesse: algo que o Papa teve o cuidado de não fazer. Convicto de que, justamente, houvesse algo forçado sobre seu pensamento, algum equívoco sobre a questão do juízo subjetivo da consciência, pouco importava. De fato, o que importava não era fazer magistério a partir das colunas do Repubblica - o Papa faz seu magistério como, onde e o quanto quer. O ponto era que essa antena sensível da cultura italiana deixasse claro para quem não escuta, com todo o direito, a pregação do Evangelho de Francisco, que a verdade cristã não é um monólito kubrickiano, mas uma relação viva e vital com Jesus.
A descoberta que a única maneira de elevar os olhos ao todo poderoso é deixar que o crucifixo te leve a elevar o olhar arrogante ao zênite do demônio que tira a sombra em volta do poder sagrado; não na linha do horizonte trêmulo do crepúsculo da razão à espera de algo, mas naquela altura da cruz, em cuja humilhação passa a revelação do mistério de Deus também para as pessoas.
Scalfari aceitou esse diálogo e descobriu uma relação em que não havia a exigência de surpreendê-lo ou usá-lo, mas o desejo efetivo e real de ouvir gratuitamente um homem que pensa. Essa descoberta mudou a linguagem de Scalfari, que nunca havia dito de algum papa “Sua santidade” com uma intensidade não protocolar. Mudou os ritmos de escrita de Scalfari que dedicou a Francisco muitas reflexões, fazendo de seu leigo sermão dominical um instrumento para continuar à distância uma amizade digna desse nome. E modificou a convicção que eu citava no início: porque o Papa lhe disse - recordou-o algumas noites atrás numa conversa no Eliseu com o secretário-geral da CEI, D. Nunzio Galantino - que a sua convicção não absolutista, mas consciente e convicta do relativismo na verdade, era a mesma convicção com que um cristão sente de forma consciente e convicta a verdade como relação.
"Disseram-me para ter cuidado, porque falando com o senhor acabará me convertendo": assim Eugenio Scalfari contava ter confidenciado a Francisco. O Papa lhe respondeu para ficar tranquilo que não era possível convertê-lo, também porque ele precisava de um ateu para conversar. E se ele tivesse se convertido, onde encontraria outro assim? O juízo papal foi verdadeiro em ambos os lados.
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Eugênio Scalfari. Encontros no Vaticano, um não crente que queria entender. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU