"Diante do abismo civilizatório, alguns fantasiam a redenção via tecnologia: o novo 'homo deus', futuro transumano, ocupar outros planetas… Parecem saídas mais confortáveis que mudar o sistema-mundo capitalista – e resgatar nossa infância matrística".
O artigo é de Antônio Sales Rios Neto, servidor público federal, estudioso da cultura patriarcal (entendida como principal elemento constitutivo do processo civilizatório e propulsor do antropoceno) e das novas abordagens da Complexidade (um dos meios de superação do patriarcado). Coordenador, representando o Brasil, do projeto "La Emergencia de los Enfoques de la Complejidad en América Latina", iniciativa da Comunidad de Pensamento Complejo (CPC), sediada na Argentina. O texto foi publicado por OutrasPalavras, 24-06-2022.
Este artigo, cujo título original é A agonia da regressão global e o esgotamento do patriarcado, é o sexto de uma série que se propõe a investigar as raízes das dificuldades enfrentadas pelas tentativas de governança democrática pela humanidade até hoje e, ao mesmo tempo, buscar uma compreensão ampliada acerca do acelerado e preocupante declínio dos regimes democráticos na contemporaneidade e dos possíveis desdobramentos da onda autoritária num futuro próximo.
Leia o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto artigo da série.
“Por todo lugar se aceleram e se amplificam a crise da democracia, a crise da biosfera, a crise do pensamento, o sonambulismo político, e também os delírios xenófobos, racistas e belicistas.” (Edgar Morin)
“Após a violência do dinheiro, virá, como já está ocorrendo, a violência das armas.” (Jacques Attali)
No atual estágio de agudo individualismo e narcisismo em que a humanidade se encontra, alimentado pelas subjetividades e imaginários induzidos pela fé no “deus mercado” – a principal religião da civilização contemporânea, que está desorientando todas as dimensões da experiência humana –, é um truísmo afirmar que não há a mais remota possibilidade da democracia ser resgatada e se constituir como modo de vida neomatrístico, que seja inclusivo, cooperativo, compreensivo, amparado no respeito mútuo e, sobretudo, numa relação parcimoniosa entre o homem e o sistema Terra.
O fluxo dos acontecimentos nos diz que, no curto e médio prazo, o contrário é bem mais provável. A tendência é a de que a civilização poderá se afastar ainda mais da democracia, uma vez que as poucas expressões de modos de vida democráticos que ainda existem, representados pelos remanescentes de povos originários e de culturas ancestrais em diversas comunidades espalhadas pelo mundo, estão sendo desagregadas e sistematicamente destruídas com a globalização do padrão de comportamento patriarcal da lógica tecnoeconomicista.
Aliás, a democracia está se esvaindo não só como forma de governo e como forma de convivência, mas também como valor social. No atual padrão de sociabilidade hegemônico só há espaço para os valores do mercado: consumo, espetáculo, acumulação, individualismo e visibilidade narcísica. É como se estivesse ocorrendo uma espécie de apagamento total da nossa “infância matrística”, aquilo que deu origem a democracia nas ágoras da Grécia antiga, segundo Maturana. O que ainda sobra de alteridade são breves momentos de solidariedade diante das recorrentes tragédias causadas pelas mudanças ambientais e pelos conflitos bélicos.
Esse apagamento pode ser observado, por exemplo, por meio do fenômeno da comunicação por lives, desencadeado na pandemia da covid-19. No dia 26 de junho de 2020, quando o Brasil estava sendo acometido pelo primeiro pico de mortes provocadas pela nossa sindemia, o movimento Direitos Já! – Fórum pela Democracia, coordenado pelo sociólogo Fernando Guimarães, promoveu a live “defesa da democracia, da vida e proteção social”, reunindo as mais expressivas personalidades da política, do jornalismo, da economia e da nossa cultura. Num momento crítico em que vivia o país, no qual se espera um maior clamor público pela valorização da democracia, os acessos on-line nessa live só chegaram ao apático teto de 650 internautas.
Enquanto no dia 8 de abril de 2020, pouco mais de dois meses antes da live pela democracia, quando já estávamos na aflição da pandemia, uma live da cantora Marília Mendonça seduzia 3,3 milhões de internautas, ao vivo. Outras lives do mesmo tipo realizadas nesse período, aqui no Brasil e no resto do mundo, alcançavam patamares de audiência semelhantes. As novas subjetividades afloradas no capitalismo cibernético globalizado potencializaram as carências humanas por distração e sufocaram os afetos vinculados à alteridade e à democracia.
O fato é que na dinâmica patriarcal milenar, a sociabilidade democrática sempre foi uma exceção, e a sociabilidade imperialista a regra. Assim, a história da humanidade ficou suscetível e vivenciou muitos momentos de barbárie e de profunda regressão civilizatória. A mais recente foi vivenciada durante quase todo o século XX, com duas guerras mundiais avassaladoras e regimes totalitários, que dizimaram milhões de vidas humanas, deixaram sobre escombros as infraestruturas dos países beligerantes, destroçaram ricas tradições culturais e infligiram o flagelo da fome e da inanição a milhões pessoas.
O palco dessa tragédia civilizatória degradou principalmente Europa, antiga União Soviética, China e Japão. A situação parecia tão insolúvel que, para sair dos seis anos de aguda conflagração geopolítica durante a segunda guerra mundial (1939-1945), foi necessário uma nova e ainda mais destrutiva demonstração de força patriarcal, as bombas nucleares americanas sobre Hiroshima e Nagasaki, ceifando a vida de mais de 220 mil pessoas, metade delas logo no primeiro dia do ataque.
Mesmo sob o domínio de um imperialismo de mercado, a democracia foi restabelecida, pois sem ela o modo de viver dos humanos, que é amparado na cultura de dominação patriarcal desde tempos imemoriais, não se sustentaria. Houve um retorno da democracia, porém desta vez apropriada pelo liberalismo e sob a promessa de realização material do chamado “capitalismo democrático”, agora capitaneado pela força criativa dos Estados Unidos, especialmente no campo da informação, da comunicação e da produção de imaginários. No âmago dessas novas conformações que marcaram a segunda metade do século passado, o que realmente estava ocorrendo era a manutenção do modo de viver patriarcal milenar, com seus impulsos destrutivos temporariamente mitigados.
Contidos os ânimos beligerantes, estabeleceu-se um grande pacto para restauração da democracia de mercado e retomada do curso da civilização, o que foi proporcionado por meio dos acordos celebrados em Bretton Woods – a redefinição das regras monetárias e financeiras internacionais a partir de fundamentos keynesianos, adotada em julho de 1944 –, até que o mercado pudesse novamente assumir as rédeas e o fez a partir de 1973, quando as nações mais ricas do globo ratificaram, sob forte pressão dos mercados, o fim dos consensos de Bretton Woods, antes rompido unilateralmente pelos EUA em 1971 com o chamado “choque de Nixon”.
No fundo, o que estava ocorrendo naquele momento, como em muitos outros da história, era o início de uma nova onda antidemocrática para restabelecimento da manutenção da ordem imperial milenar, agora sob o influxo do capital desregulamentado e com trânsito internacional livre, facilitado pelos algoritmos. Como bem disse o filósofo político britânico John Gray, “a social-democracia foi substituída por uma oligarquia de ricos, como parte do preço da paz.” O Estado-nação não foi capaz de se regenerar diante da destruição neoliberal promovida ao longo de mais de 40 anos. Ao contrário, ele foi se degradando rapidamente pela voracidade do mercado.
Neste início do novo milênio, as instabilidades geopolíticas guardam muitas equivalências com o imponderável que se sucedeu à Belle Époque europeia (1871-1914). O grande diferencial entre esses dois momentos históricos é que, no cenário atual, dois aspectos alimentam dramaticamente as instabilidades na geopolítica. De um lado, o Estado-nação não tem mais o mesmo vigor de outrora para servir de contrapeso à violência do capital, tendo mergulhado num irrefreável declínio em razão da sua captura pelas forças do mercado. De outro lado, a escassez de recursos naturais devido à exacerbação da relação predatória do homem com a Terra, decorrente da hegemonia capitalista globalizada, vem, a partir dos anos 1970, acirrando as guerras pelas matrizes energéticas, e ainda pode levar todo o ecossistema Terra a uma situação de colapso irreversível num curtíssimo prazo.
O fato é que após o fracasso do “capitalismo democrático” estadunidense, o capitalismo de vigilância emanado do Vale do Silício, que já se espraiou pelo mundo, tem sido usado como principal instrumento de persuasão e sustentação de governos antidemocráticos e de novas tiranias, tanto do lado ocidental quanto do oriental. As novas guerras híbridas (uso combinado de armas convencionais, comerciais, jurídicas, culturais, políticas, midiáticas, cibernéticas, dentre outras), a maior delas travadas entre EUA x China e Rússia (os principais protagonistas do novo capitalismo de vigilância), mas que também inclui as tensões entre Irã x Israel, Paquistão x Índia, Coreia do Norte x Japão, dentre tantas outras, constituem a expressão contemporânea dos conflitos patriarcais no âmbito geopolítico.
De agora em diante, a humanidade conviverá assombrada com o medo constante de que os conflitos futuros escapem para uma conflagração atômica como ameaçou ocorrer em 1962 – quando a antiga URSS tentou fazer em Cuba a mesma movimentação geopolítica expansiva que os EUA fazem hoje, por meio da OTAN, na Ucrânia, como já o fez em quase todo o leste europeu –, com potencial de nos arrastar para um longo inverno nuclear cujos efeitos destrutivos sobre a vida na Terra são inimagináveis.
Só nos restar, daqui para frente, acreditar que um conflito com desfecho nuclear sistêmico descontrolado seja impensável. Se ocorrer, provavelmente será por motivo acidental, haja vista os muitos protocolos de segurança e controles estabelecidos para evitar a temida Mutual Assured Destruction (MAD), pois o homem sabe, desde Hiroshima, Nagasaki e Chernobyl, as consequências catastróficas e irreversíveis desse tipo de evento e não suportaria experimentar tal realidade numa escala global. Portanto, nesse novo contexto patriarcal do capitalismo de vigilância, a possibilidade de uma paz kantiana minimamente duradoura é uma quimera. Por isso, essa fase sombria tem tudo para ser muito breve e representar o último suspiro de um patriarcado milenar.
Diante do horizonte apocalíptico aqui desenhado, não há como imaginar que ainda haja espaço para uma outra forma de controle e dominação patriarcal na experiência humana, mesmo dentro da lógica de mercado. Qualquer tentativa de prospectar o futuro, com uma leitura da realidade a partir das novas ciências da complexidade, o atual contexto de crise planetária indica que esbarramos nos limites lógicos e materiais de sustentação da cultura patriarcal que moldou todo o processo civilizatório.
Nessa perspectiva, a Vigilância, enquanto substituta do Estado, que aparenta estar apenas no início de sua hegemonia, pode se revelar a última expressão do patriarcado. Dentro da atual dinâmica de mercado fica difícil imaginar o capitalismo (ou outra narrativa de mercado) assumindo uma nova modalidade de controle sobre a realidade. Também é impensável, diante do arsenal nuclear hoje existente, a possibilidade de uma nova ordem mundial retomar o curso da história sob a força das armas ou da religião, como ocorreu no passado.
Mas a longa história milenar do patriarcado é também repleta de ambivalências e paradoxos. A criação do mercado e do Estado-nação, apesar de sua essência patriarcal, não deixam de representar dois mecanismos revolucionários de distribuição do poder e das riquezas, antes concentrado nas mãos dos príncipes e padres que dominavam reinos e impérios, até por volta do século XV. Com a nova classe dos comerciantes que despontou a partir do século XVI, o poder ficou bem mais aquinhoado, assim como a revolução tecnológica, que surgiu a partir dos anos 1980, permitiu um empoderamento a um número ainda maior de indivíduos.
No entanto, a história tem mostrado que as desigualdades, conflitos, massacres e destruições crescem na mesma proporção das ferramentas criadas pelo homem. Na lógica da cultura patriarcal na qual estamos imersos há milênios, não há uma seta que aponte para uma emancipação ou um aprimoramento humano. Ao contrário, ela constitui uma regressão progressiva rumo à autodestruição.
Ainda assim, aqueles mais irremediavelmente condicionados à lógica patriarcal, que não veem outra perspectiva fora da fantasia da universalização do liberalismo econômico, certamente haverão de pensar que se trata de um devaneio imaginar que o animal humano irá algum dia abrir mão do seu desejo de moldar o mundo à sua imagem. Neste caso, o questionamento sobre qual rumo a civilização poderá escolher após experimentar mais uma profunda regressão seria: uma vez esgotados os limites lógicos de prevalência das ordens militar, religiosa e comercial, em escala global, ainda haverá margem para o surgimento de uma nova ordem de manutenção do impulso patriarcal, diante do grau de esgotamento dos recursos naturais, das mudanças climáticas e da ausência de instrumentos democráticos e de mediações políticas de alta intensidade?
Há uma corrente de pensamento que entende que os algoritmos podem de algum modo contornar todos os nossos problemas globais e forjar uma nova ordem mundial high tech duradoura. Parece ser o caso de nomes como o do professor israelense de História, Yuval Noah Harari, autor de uma trilogia de ensaios best-sellers (Sapiens – Uma breve história da humanidade, Homo Deus – Uma breve história do amanhã e 21 lições para o Século 21), que encantam o Ocidente e foram muito celebrados por personalidades influentes como Bill Gates, Mark Zuckerberg e Barack Obama. Harari cogita a possibilidade de estarmos a caminho de um grande salto civilizatório que ele atribui ao surgimento de um novo “Homo deus”, promovido pelas artimanhas da revolução tecnológica.
No entanto, se considerarmos os resultados proporcionados pelo desenvolvimento da tecnologia até este momento, não há indicativos de que as plataformas, sob o comando de uma inteligência artificial, serão capazes de nos tornar pós-humanos, superando as nossas supostas limitações biológicas, conforme defende o movimento transumanista. Ao contrário, parece bem mais razoável acreditar que, se alcançarmos um mundo reconhecível, após a regressão que se avizinha, será pela superação dos condicionamentos da cultura patriarcal e não continuando sob o domínio das ferramentas criadas pelo impulso patriarcal do animal humano. A aposta na tecnologia é mais uma ilusão humana de moldar a realidade segundo a sua imagem.
Algumas tentativas de exploração e dominação patriarcal são mais fantasiosas ainda. Esse nosso profundo condicionamento mental, associado ao sentimento de esgotamento dos ecossistemas da Terra, talvez explique o desejo humano recorrente de descobrir e habitar outros planetas com condições similares às do nosso. Tal projeto é irrealizável, pois se há uma característica que define o Universo são as suas singularidades. Se a vida é um “imperativo cósmico”, como defende Christian de Duve, Nobel de Fisiologia (1974), certamente ela existe em abundância no Universo. Entretanto, se o homem algum dia encontrar vida em algum outro planeta, será em condições físico-químicas bem peculiares. Nosso “acoplamento estrutural” com Gaia, lembrando os ensinamentos de Maturana, é único no Universo. E mesmo que se tente desenvolver um aparato tecnológico para viabilizar este acoplamento seria muito custoso e inútil.
Aceitemos ou não, o fato é que as fronteiras do patriarcado têm um limite imposto pela dinâmica do sistema Terra, à qual estamos umbilicalmente ligados. Não há muitas opções disponíveis para a continuidade da nossa civilização: ou superamos a cultura patriarcal milenar e nos reconciliamos com a nossa condição natural, ou destruímos as condições que asseguram nossa permanência no planeta, se é que não já ultrapassamos os limites da intervenção humana nos ecossistemas da Terra.
A grande indagação do nosso tempo é como a humanidade vai lidar com esses impasses entre a voracidade da predação capitalista e o crescente esgotamento dos ecossistemas. Se realmente ainda tivermos tempo, considerando que o insondável grau de afetação do metabolismo da Terra, causado pela nossa conduta rapinante, não já desencadeou um movimento inercial que levará a Terra para outro patamar físico que inviabilize a nossa permanência no planeta, teremos duas opções:
1) a adaptação planejada, que requer uma grande e urgente regeneração do Estado-nação e do nosso sistema produtivo;
2) ou a adaptação forçada, a aposta incerta na metamorfose da atual condição humana rapinante pela via da barbárie, que se apresenta como cenário mais provável.
Diante dessa realidade distópica que nos reserva o capitalismo de vigilância, qual percurso poderia nos desviar do colapso? Com muito esforço de otimismo, se buscarmos algum aprendizado das regressões do passado, um novo modo de viver certamente seria algo que aceitasse a nossa limitada e contraditória condição natural e tentasse superar a cultura patriarcal. Não resta à civilização outra saída que não seja abandonar a visão tecnomercadológica de mundo e assumir uma visão relacional de mundo, que considere o entrelaçamento de todas as dimensões da condição humana.
As mudanças climáticas, a escassez de recursos naturais, a superpopulação de quase 8 bilhões e a beligerância do capitalismo cibernético nos convocam a reorientar radicalmente o que entendemos por processo civilizatório.
Primeiro, precisamos de uma instância de governança global que alcançasse os consensos necessários entre os países mais desenvolvidos, com o propósito de mudar o sistema-mundo capitalista. Segundo, é urgente a adoção de uma política de civilização para repensar os fundamentos da convivência humana, que contemple pelo menos as seguintes abordagens:
1) a implementação de estratégias de redução gradual da sobrecarga populacional sobre a Terra, para mitigar os efeitos devastadores das mudanças climáticas já em curso;
2) a articulação de uma democracia global, que tolere o pluralismo de modos de vida;
3) o resgate do sentido de comunidade e de preservação dos bens comuns, que foram destruídos pelas relações narcisistas, excludentes e predatórias do mercado;
4) a formulação de uma nova economia relacional, que recupere o seu sentido original que é dar centralidade à vida e ao cuidado da nossa Casa Comum, e não à acumulação e ao consumo.
Um futuro reconhecível necessariamente passa por este caminho. Sabemos, no entanto, que tais abordagens são irrealizáveis diante dos acontecimentos em curso. Sabemos também que o imprevisto é um dado da realidade e que provoca rupturas e desfechos inesperados. Se o patriarcado surgiu de uma bifurcação cultural no neolítico, é razoável imaginar que esse padrão cultural possa se reverter. Quem sabe, uma democracia neomatrística, como sugere Maturana, poderá emergir nessa transição de época histórica, de modo a nos livrar da perspectiva de uma autodestruição patriarcal. No próximo e último texto desta coletânea, vamos tentar vislumbrar tal possibilidade.