13 Junho 2022
Com uma comunidade cristã mutilada e não enraizada no hoje do século XXI, a crise da fé será apenas uma consequência.
O comentário é de Sergio Di Benedetto, colaborador de diversas realidades eclesiais italianas e doutor em Literatura Italiana pela Universidade da Suíça Italiana, em Lugano. O artigo foi publicado por Vino Nuovo, 07-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A intervenção de Enzo Bianchi sobre a atual crise de fé levantou uma série de questões, dando origem a um debate vivaz e saudável, ao qual Gabriele Cossovich respondeu por primeiro. Os temas são realmente muitos e profundos, decisivos ao menos para nos interrogarmos sobre a nossa fé, quase ecoando uma pergunta bastante dura de Jesus: “Mas, quando o Filho do homem vier, encontrará fé aqui na terra”. É uma pergunta – feita após a parábola da viúva insistente – que devemos levar a sério, em toda a sua lúcida e aberta possibilidade, porque não pressupõe uma resposta acomodatícia: de fato, existe a hipótese de a fé diminuir até se esgotar no tempo, porque é uma das eventualidades da liberdade humana.
Mas, em 2022, essa crise de fé de que falava Enzo Bianchi parece ter emergido com toda a evidência no pós-Covid, levando à maturação fenômenos que, no entanto, como sabemos, já eram evidentes há anos e sobre os quais, honestamente, muito já foi dito, em parte até feito. Mas com resultados escassos.
Acredito, porém, que é o ponto decisivo que em parte explica e em parte gera a crise de fé que atravessa o ser humano ocidental, o eixo sobre o qual gira quase todo o nosso trabalho, e diz respeito ao grande esforço que o cristão contemporâneo hoje atravessa em habitar o hic et nunc, em viver “aqui e agora” uma existência formada e inspirada pela palavra e pela vida de Jesus de Nazaré, verdadeiro homem e verdadeiro Deus.
Se tivermos a lealdade de observar a vida das nossas comunidades, veremos que, debaixo dos grandes esforços, debaixo da denúncia da ausência dos jovens, da crise das famílias, do eclipse da participação sacramental e litúrgica, da queda das vocações consagradas, do declínio da cultura católica, da confusão ética e social, está a desorientação de quem não consegue conjugar de forma positiva, eloquente e equilibrada a confiança em Jesus no momento em que vivemos.
Está o medo de quem intui que todas as categorias falharam (começando pela de “Deus” ou pela da “fé”, por exemplo).
Está a impossibilidade de admitir que talvez o ser humano ocidental não tem mais sequer as perguntas de sentido.
Está a superficialidade em continuar usando o “Deus tapa-buracos”, colocando-o assim à margem ou nas situações extremas da dor e da morte, impedindo (Bonhoeffer docet) que Ele esteja no centro da vida, também no valor performativo que a fé pode assumir, distante, porém, dos perfeccionismos, dos moralismos mofados.
E, ainda, está o terror de dizer que estruturas e devoções, ritos e atividades já não dizem nada sobre a fé, mas apenas para a religião de alguns poucos, e, ao fazer isso, demonstram que ela é supérflua.
Diante disso, se não cairmos na indiferença, deparamo-nos com o já conhecido, repropondo continuamente receitas velhas e tranquilizadoras, repetindo slogans, iniciativas, até mesmo grades hermenêuticas de meados do século XX, em uma eterna dialética que não capta, não entende, não aprofunda o momento presente e gera desorientação, em um esforço destinado à frustração.
A partir disso, desse esforço de estar no hoje, nos seus milhares de fragmentos e nas suas muitas contradições, amplificadas pela rede, pelos debates vazios, pelos ativismos exaustivos (pensemos na condição de burnout de muitos padres), pelos clericalismos e pelos narcisismos complacentes e competitivos – que nos fazem acreditar, por exemplo, que para estar online basta postar algumas fotos, algumas mensagens, para dizer que “nós também estamos aí” –, deriva a comunicação (em sentido lato) menos evangélica que existe, ou seja, aquela que anuncia que o Evangelho não é um caminho plenamente humano, que algo autenticamente humano deve ser deixado de lado para sermos verdadeiros discípulos de Cristo.
É nessa mutilação do humano, no tempo em que se realizam e se abrigam, até mesmo de modo questionável, as suas múltiplas possibilidades e até as suas superações (pós-humanismo) que ocorre a atual crise de fé, que é também antropológica e, portanto, comunitária e eclesial.
Só a partir desta base, do fato de querer verdadeira e plenamente ser filhos do nosso tempo, sem simplificações nem irenismos, a partir da escuta inteligente da humanidade do século XXI, na humildade de quem sabe que o bem também pode vir “de fora”, porque “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8), é que poderemos então amadurecer uma direção existencial fundamental que pode incluir a fé em Jesus morto e ressuscitado.
Só a partir dessa convicção plenamente humana que se tornou vida é que poderemos ter a coragem de cortar aquilo que acreditamos ser eterno e, pelo contrário, é historicamente gerado (quanta ignorância disseminada entre os fiéis que não conhecem as categorias da história e da história da Igreja), abandonar anacronismos conceituais, para manter e conservar o coração querigmático do cristianismo.
Caso contrário, falar de fé será apenas um convencimento a nós mesmos de que ela responde a necessidades e desejos humanos nunca esclarecidos, aos quais só Deus poderia satisfazer (um platonismo envernizado de cristianismo instrumental e fadado ao fracasso, porque, depois, se outra coisa satisfaz mais facilmente o desejo, Deus se torna inútil).
Talvez devêssemos sentir como urgente outra pergunta de Jesus: “Como é que vocês não sabem julgar este tempo?” e amadurecer coragem, confiança e profecia, outra grande ausente em muitos dos nossos discursos. Sob essa ótica, o declínio da fé também pode ser, na verdade, o declínio de uma forma histórica de fé e, portanto, pode se configurar como uma ação do Espírito, caso contrário seremos os primeiros a negar que o Espírito está presente e operante na história para nos guiar para além do tempo.
Se olharmos para os séculos que nos precederam, descobriremos que todas as comunidades fundadas pelo apóstolo Paulo de fato desapareceram. No entanto, a fé em Cristo não morreu. Talvez a fé desaparecerá no Ocidente, que se aproximou de outras formas de culto (o consumismo, por exemplo); talvez surgirá, sobre as lágrimas, os esforços e a desorientação de muitos, uma nova forma histórica de fé.
Certamente, é doloroso perder a nossa forma histórica, à qual somos gratos e da qual reconhecemos pontos fortes e defeitos; é um ato de despojamento, de verdadeira cruz. Mas é a dinâmica quenótica, que é essencial para a fé cristã.
Talvez, hoje, devamos viver a Sexta-Feira Santa da fé, experimentar o silêncio do Sábado Santo – que durará o quanto Deus quiser –, ter paciência para com Deus (Halík), especular sobre a paciência de Deus para conosco, para depois viver reinícios de fé cristã.
Talvez será preciso uma avaliação honesta das décadas que nos antecederam, como parte também de um movimento quenótico que exige humilhação e confiança. “De que adianta dizer aquilo que é verdade, se os homens do nosso tempo não nos entendem?” (Paulo VI): essa é uma pergunta que deveria ser preliminar a todo raciocínio sobre a fé, porque muitas vezes não somos entendidos.
Talvez devêssemos parar com o sensacionalismo, as mensagens apologéticas, as pinceladas de bons sentimentos que não resistem à urgência da realidade e não dizem mais a fé – se é que alguma vez a disseram. E só então, talvez, poderemos nos deparar – talvez não nós, talvez daqui a muito tempo – com a realização da profecia de Simone Weil: “O Cristo quer que se prefira a verdade, porque, antes de ser o Cristo, Ele é a verdade. Se nos afastamos dele para nos voltarmos para a verdade, não iremos muito longe sem cair nos seus braços”.
E lá, na verdade, encontraremos, encontrarão o Cristo.
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A crise de fé e a dificuldade de viver no nosso tempo. Artigo de Sergio Di Benedetto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU