Resposta a Enzo Bianchi sobre a crise da fé. Artigo de Gabriele Cossovich

(Foto: sspiehs3 | Pixabay, creative commons)

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31 Mai 2022

 

Diante de temas como a ressurreição e a vida além da morte, a questão hoje não é crer ou não crer, mas sim uma pergunta ainda mais radical: se for verdade, o que eu faço com isso?

 

O comentário é do teólogo leigo italiano Gabriele Cossovich, professor do Instituto Salesiano Santo Ambrósio, em Milão, na Itália. O artigo foi publicado por Vino Nuovo, 30-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

O artigo de Enzo Bianchi, publicado no último dia 23 de maio no jornal La Repubblica (disponível aqui em português), tem o mérito de trazer à tona, em poucas linhas, os elementos que realmente estão em jogo na crise que o cristianismo e a Igreja na Itália estão vivendo.

 

Diante da desorientação produzida pelas igrejas vazias, que caracterizam a (não) retomada da vida comunitária eclesial após a paralisação imposta pela pandemia, o irmão Enzo tem a coragem de reconhecer que as argumentações com as quais normalmente se explicava a queda da participação dos fiéis na vida da Igreja não se sustentam mais por si sós: “secularização, mudança de vida na sociedade do bem-estar, consumismo, relativismo moral” não são suficientes para explicar uma aceleração tão disruptiva no abandono da prática religiosa, especialmente na faixa juvenil e adulta.

 

Há em curso algo mais sério e profundo, que ele identifica em uma crise de fé dentro da Igreja, em particular no que diz respeito à ressurreição e à vida além da morte: “Se não se crê que Jesus Cristo está vivo, ressuscitou da morte e venceu a morte, que razão há para se professar cristão? Se não se crê que a morte é apenas um êxodo, que haverá um juízo sobre o agir humano e uma vida além da morte, por que alguém deveria se tornar cristão e perseverar nessa pertença?”, pergunta ele.

 

Pessoalmente, compartilho a intuição de Enzo Bianchi, mas acho que deve ser aprofundada. A falta de fé que ele denuncia, creio eu, esconde uma questão mais radical, que diz respeito à capacidade do cristianismo de se apresentar como uma opção credível e significativa para a humanidade de hoje, dentro e fora da Igreja.

 

A verdadeira questão não é a falta de fé na ressurreição e na vida além da morte, mas que dimensões próprias da fé, quais ressurreições e vidas além da morte não são mais percebidas por mulheres e homens de hoje como relevantes para contribuir para dar significado à vida.

 

Diante delas, a questão hoje não é crer ou não crer, mas uma pergunta ainda mais radical: se for verdade, o que eu devo fazer com isso?

 

O tema sério com o qual, a meu ver, a Igreja ainda não se confrontou de verdade é a constatação de como a mudança da época que estamos vivendo traz consigo uma mudança dos lugares existenciais em que homens e mulheres buscam e encontram o sentido para a própria vida. A busca de sentido não está adormecida – como Enzo Bianchi teme –, mas se expressa e se dirige para outros lugares em comparação com antes, fazendo com que as respostas de antigamente não sejam mais pertinentes.

 

Desse ponto de vista, a proposta da fé cristã, por exemplo no que diz respeito ao tema da ressurreição e da vida além da morte, é percebida, nas faixas juvenis e adultas, como resposta a uma pergunta que não existe, como oferta de um instrumento útil para algo que, no contexto da vida, ocupa hoje uma posição irrelevante.

 

Aí está a raiz da evidente esterilidade de tantos esforços, ainda que generosamente profusos – reconhecida claramente por Enzo Bianchi – e da redução do cristianismo a uma ética e a uma espiritualidade, sem passar pela fé, percebida como supérflua.

 

O ponto crítico, porém, não está na proposta cristã como tal: a fé nos dá a certeza de um Deus que não cessa jamais de dirigir às mulheres e aos homens de todos os tempos a sua Palavra que fecunda e vivifica. Se aquilo que propomos como Igreja é estéril e incompreensível, isso significa que somos nós, cristãos, que não conseguimos captar qual Palavra Deus está dirigindo à humanidade de hoje. Desse ponto de vista, é necessária uma mudança de perspectiva.

 

Estamos acostumados a pensar que ser cristão significa crer e compartilhar algo fixo e sempre igual ao longo do tempo. Se isso é verdade para os conteúdos fundamentais da fé, não é verdade para aquilo que diz respeito à contribuição específica – a Palavra particular – que a fé oferece aos homens e às mulheres em épocas diferentes. A mesma mensagem em contextos diferentes revela e assume diferentes especificidades e significados diferentes. A pergunta é: quais especificidades e significados novos o Evangelho de Jesus revela e assume no contexto da humanidade de hoje? Para a humanidade de hoje?

 

Para respondê-la, é preciso empreender uma reflexão que vá captar profundamente as direções para as quais se orienta a busca de sentido das mulheres e dos homens hoje; uma reflexão que evidentemente não pode ser conduzida de modo teórico, mas por meio da imersão no mundo e nas vivências das pessoas (como o Papa Francisco não deixa de pedir).

 

Qual Palavra essas experiências invocam? Quais horizontes novos? Quais esperanças? E que elementos da fé cristã conseguem se cruzar, interceptar tudo isso?

 

A última passagem desse caminho será o mais exigente: será necessário reformular a proposta cristã sem ambiguidades, colocando no centro a Palavra que Deus dirige à humanidade hoje; rever as práticas, levando em conta a realidade concreta da vida, indo além de toda ideia, mesmo que belíssima, que não seja mais praticável; reinventar tudo aquilo que, começando pela liturgia, pareça distante e incompreensível.

 

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