A direita populista em três palavras: país, família e liberdade. Artigo de Giorgia Serughetti

Donald Trump no Phoenix Convention Center in Phoenix, Arizona (EUA). (Foto: Gage Skidmore | Flickr, creative commons)

27 Mai 2022

 

"Na narrativa da direita radical populista, um 'povo' entendido como ethnos, fundado na descendência ou na cultura e religião comuns, reivindica o direito de decidir quem pode entrar no território do Estado e em que condições, mas também aspira a afirmar a força da tradição contra as reivindicações do reformismo social que ameaçam a família como 'unidade fundamental' da nação", afirma Giorgia Serughetti, pesquisadora em Filosofia Política na Universidade de Milão-Bococca, em artigo publicado por Domani, 24-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

No discurso com o qual foi empossado como chefe do governo pelo quarto mandato consecutivo, Viktor Orbán vislumbrou para os povos da Europa “uma década de perigo, incerteza e guerra”. Mas nesse cenário, continuou ele, Bruxelas e o Ocidente parecem tomadas por uma "fraqueza espiritual" que leva ao "suicídio".

 

Entre os sinais mais clamorosos dessa tendência estão o programa de "grande substituição" dos povos, destinado a substituir as "crianças cristãs" que não nascem mais com os migrantes, a "loucura do gênero", que vê o indivíduo como criador de sua própria identidade sexual e o programa "liberal" que "afirma prescindir dos estados-nação e do cristianismo".

 

Trata-se de uma síntese efetiva de alguns temas e palavras-chave que compõem o aparato discursivo em uso na direita radical populista, oferecida por aquele que talvez seja o líder política e retoricamente mais refinado desse panorama: a pátria e a defesa das fronteiras soberanas, a família e os valores cristãos-tradicionais; e o conceito de liberdade, usado de forma semanticamente ambígua.

 

 

 

 

Pátria

 

As duas primeiras palavras, pátria e família, ocorrem muitas vezes como parte de um mesmo discurso, no centro do qual está o apelo a uma suposta ordem "natural" a ser defendida e restaurada. Uma ordem que tem um lado externo nas fronteiras sólidas que separam os Estados-nação e um lado interno nas hierarquias sociais, de gênero e sexuais.

 

"Patriotas" são, nas palavras de Giorgia Meloni, Marine Le Pen ou Donald Trump, não apenas aqueles que se preocupam com o destino da nação e defendem suas fronteiras, mas também os paladinos dos valores religiosos, comunitários e familiares.

 

Na narrativa da direita radical populista, um "povo" entendido como ethnos, fundado na descendência ou na cultura e religião comuns, reivindica o direito de decidir quem pode entrar no território do Estado e em que condições, mas também aspira a afirmar a força da tradição contra as reivindicações do reformismo social que ameaçam a família como "unidade fundamental" da nação.

 

Ambos os lados desse projeto político parecem essenciais na batalha travada em nome da "identidade". A ordem dos gêneros, a nacionalidade, os papéis familiares, a religião, são dimensões ameaçadas por forças "globalistas" e elites cosmopolitas que, além de favorecer a imigração em massa, corrompem a cultura tradicional da nação.

 

Daí também a acusação contra a União Europeia pelos chamados "soberanistas", críticos do processo de integração supranacional. A "Europa das nações" deveria basear-se "nas tradições, no respeito pela cultura e história dos Estados europeus, no respeito pela herança judaico-cristã da Europa e nos valores comuns", lê-se na declaração conjunta assinada em julho de 2021 pelos dirigentes de dezesseis partidos de ultradireita, entre os quais Le Pen, Orbán, Jarosław Kaczyński, Matteo Salvini, Meloni, Santiago Abascal.

 

É, portanto, principalmente em termos de cultura, tradição e valores que esses partidos explicitam o esforço de defesa da soberania. Trata-se basicamente de uma instância de proteção do modo de vida nacional e tradicional contra a ameaça dos fluxos migratórios globais e da sociedade aberta.

 

 

Diante do efetivo declínio da soberania dos Estados-nação, posta em crise tanto pelo papel crescente dos órgãos supranacionais quanto pela subordinação de fato do poder político aos poderes econômicos globais, a soberania não tem a possibilidade, nem talvez a ambição, de produzir mais do que um simulacro da soberania perdida: um simulacro construído sobre as bases de uma suposta identidade comum.

 

As fronteiras duras parecem funcionais sobretudo para recriar a “pátria” como imagem tranquilizadora do mundo, na qual seja possível reconhecer uma clara separação entre dentro e fora, entre “nós” e “eles”.

 

Família

 

Para soldar a retórica da pátria com os discursos em defesa da família aparece muitas vezes a figura mais capaz de suscitar investimentos emocionais em nível coletivo: a mãe ou, nos impulsos mais retóricos, a mamãe. “A pátria é a primeira das mães”, disse Giorgia Meloni em seu discurso de abertura na recente conferência programática dos Fratelli d’Italia. Mas "a mãe" também é - sempre - a mãe, e "defender a identidade de mulher e de mãe" é um dos pilares de seu programa conservador - como o de Marine Le Pen na França.

 

 

Um vínculo estreito une, assim, o discurso soberanista hostil à imigração, ao multiculturalismo e à integração política supranacional, e a agenda conservadora sobre as políticas familiares. A família tradicional deve ser defendida das reivindicações transformadoras do feminismo, do movimento LGBT+, do reformismo social, tanto por ser o lugar primordial de segurança e identidade, quanto por representar a principal forma de bem-estar substitutivo em tempos de redução dos investimentos públicos e, finalmente, por ser a unidade reprodutiva da nação, o baluarte da estirpe.

 

Este último tipo de argumentação torna-se particularmente explícito quando os discursos dizem respeito ao declínio da natalidade que aflige os países do Leste e do Sul da Europa, incluindo a Itália. O sonho nativista da direita parece ser o de um retorno a uma suposta idade de ouro em que os povos nacionais viviam sem mistura, homogêneos em seu interior em termos de cultura, língua, religião e traços somáticos: "queremos ser o que éramos mil e cem anos atrás, quando chegamos à Bacia dos Cárpatos”, afirmou, por exemplo, Orbán em determinada ocasião.

 

Nessa perspectiva, o propósito de unificar os povos implica a produção de um etnos homogêneo com traços de "branquitude", em cujo seio está a família como pilar de uma ordem de gênero, sexual, racial, que subjuga os direitos individuais - em particular sexual e reprodutiva - ao dever de garantir a sobrevivência da nação.

 

É por isso que o projeto da direita radical populista pode ser considerado como um projeto político em que a dimensão de gênero é central, tanto quando o discurso visa exaltar os papéis femininos tradicionais de esposa e mãe, tanto quando assume características abertamente sexistas e homofóbicas, lançando acusações de corrupção moral ou manifestando desprezo pelo feminismo e ativismo LGBT+. Aqui também deve ser situado aquele grande ativador de conflito e aglutinante simbólico para a direita política e religiosa que é o tema do "gênero", ou melhor, do "perigo", da "loucura", da "ditadura do gênero". A visão que distingue sexo biológico e gênero social, amplamente reconhecida em documentos internacionais sobre os direitos das mulheres, é descrita no discurso da direita como uma ameaça identitária, que fluidifica as pertenças, solapa a ordem "natural" da família e subverte a primazia da sexualidade heterossexual e reprodutiva.

 

Liberdade

 

Voltando ao discurso de Orbán do qual parti, é preciso notar, porém, outro aspecto, ou seja, o desejo de conciliar uma visão comunitária do povo, centrada na ordem e na tradição, com o chamamento à liberdade do indivíduo, no mercado e na sociedade: "Há um tempo para liberdade ilimitada, um tempo para voar alto", disse o primeiro-ministro, "e também um tempo para a disciplina hierárquica, para o dever".

 

De que liberdade falam os populistas da direita? E como se harmoniza com a visão hierárquica da sociedade? Pode surpreender, por exemplo, encontrar nas Notas para um programa conservador do partido de Giorgia Meloni cinco dos doze capítulos que contêm a palavra "liberdade" no título: liberdade de empresa, mas também de expressão, para fazer escolhas políticas, acreditar na justiça e emergir com base no mérito.

 

 

Assim, enquanto os líderes populistas de direita visam hoje aqueles que são apontados como produtos do liberalismo - direitos universais, liberdades das mulheres e das minorias sexuais, multiculturalismo - seria redutivo ver neles o sinal de uma revanche da tradição e da hierarquia contra a cultura do individualismo.

 

Esse é, entre outras coisas, um dos paradoxos diante do qual nos colocou a pandemia de Covid-19: a visão da direita ‘lei e da ordem’ que grita pela “ditadura sanitária”, dos campeões do comunitarismo que defendem um ideal anarco-individualista de liberdade.

 

As razões dessa aparente incongruência são em parte de ordem estratégica - o desejo de ocupar o espaço de oposição ao establishment, ou de buscar os consensos do mundo empresarial -, mas em parte dizem respeito à própria natureza dessa nova direita. Que não é nem anti-individualista nem antiliberal. Aliás, está imbuída daquela particular versão do individualismo moderno – exaltado nas últimas décadas pelo neoliberalismo – que proclama a soberania do Eu sobre si mesmo, ao mesmo tempo em que rompe o vínculo de responsabilidade que se baseia no respeito da igual dignidade de cada um.

 

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