19 Mai 2022
"Hoje não só a velha guerra é reproposta como inerente ao homem e como instrumento para remodelar toda a ordem mundial, mas é abertamente reivindicada e legitimada a guerra preventiva; ou seja, acaba-se com os velhos disfarces da 'guerra justa', defensiva ou 'humanitária', enquanto sua legitimidade é engrandecida com base em avaliações totalmente questionáveis", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di tutti, Chiesa dei poveri, 18-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A guerra na Ucrânia não dá sinais de terminar e está causando um retrocesso da situação mundial e da cultura política sob a apologia da guerra e da luta pela dominação.
Hoje não só a velha guerra é reproposta como inerente ao homem e como instrumento para remodelar toda a ordem mundial, mas é abertamente reivindicada e legitimada a guerra preventiva; ou seja, acaba-se com os velhos disfarces da "guerra justa", defensiva ou "humanitária", enquanto sua legitimidade é engrandecida com base em avaliações totalmente questionáveis.
Na Praça Vermelha, em 9 de maio, Putin, para justificar sua guerra à Ucrânia, disse que "a Rússia reagiu preventivamente contra a agressão": ele estava se referindo a um ataque da OTAN "para uma invasão de nossas terras históricas, incluindo a Crimeia; uma ameaça absolutamente inaceitável para nós, criada sistematicamente, diretamente nas nossas fronteiras... O perigo cresceu a cada dia; o nosso - acrescentou - foi um ato preventivo, uma decisão necessária e absolutamente justa, a decisão de um país soberano, forte, independente”, enquanto os Estados Unidos ameaçavam exclusão e humilhação.
Essa "prevenção" foi um crime de direito internacional (não só a guerra, mas também a ameaça do uso da força é proibida pela Carta das Nações Unidas) e foi também um erro gravíssimo de Putin porque dessa forma adotou e legitimou a doutrina de guerra preventiva enunciada pelo seu principal adversário, os Estados Unidos da América. Na verdade, foram os Estados Unidos que a teorizaram na "Estratégia de Segurança Nacional" de setembro de 2002, um ano após a tragédia das Torres Gêmeas de 11 de setembro. Naquele documento se afirmava que "a melhor defesa é um bom ataque".
Uma vez concebido o mundo como composto de estados bons e "estados vilões" e ameaçado pelo terrorismo, a consequência era esta: "não podemos deixar nossos inimigos atirarem primeiro". Isso poderia funcionar durante a Guerra Fria, quando "a dissuasão era uma defesa efetiva", enquanto hoje, alegava-se, "a dissuasão baseada apenas na espera de uma resposta não funcionaria". Por outro lado, “os Estados Unidos sempre mantiveram a opção da ação preventiva para enfrentar uma ameaça efetiva à segurança nacional. Quanto maior a ameaça... mais urgente a necessidade de empreender uma ação antecipatória em defesa de nós mesmos, mesmo na incerteza do local e da hora do ataque do inimigo”.
Tampouco se tratava apenas de defesa nacional: a segurança nacional dos Estados Unidos consistia essencialmente na dominação mundial para a qual se preconizava um único modelo de sociedade válido para todos: "liberdade, democracia e livre iniciativa". "Vamos manter forças suficientes para defender a liberdade", prometia o documento, e para dissuadir qualquer adversário da esperança não apenas de superar, mas também de "igualar o poder dos Estados Unidos". Esta foi também a razão de disseminar "bases e instalações dentro e fora da Europa Ocidental e Norte da Ásia", ou seja, em todo o mundo.
Além disso, essa projeção militar mundial não dizia respeito apenas aos Estados Unidos, mas se estendia aos aliados e amigos no Canadá e na Europa; a OTAN, por sua vez, deveria "ser capaz de agir onde quer que os interesses estadunidenses ("nossos interesses") fossem ameaçados", criando coalizões sob o comando da própria OTAN, além de contribuir para coalizões com base em missões específicas".
De fato, a OTAN, agindo como um poder soberano, há poucos anos havia travado uma guerra preventiva contra a Iugoslávia pela separação do Kosovo. E se tudo isso era estabelecido quando, com a dissolução da União Soviética os Estados Unidos haviam passado "de uma situação de oposição a um regime de cooperação com a Rússia", tanto mais teria que valer quando a Rússia voltara novamente a ser percebida como um inimigo e, junto com a China, era incluída entre as "potências revisionistas" destinadas a mudar a seu favor os equilíbrios internacionais; a estratégia de segurança nacional publicada em 2018, sob a administração Trump, contemplava até mesmo “forças armadas mais letais” e declarava que os Estados Unidos enfrentariam os desafios de sua própria segurança “ao lado, com e por meio dos seus aliados e da União Europeia”.
É neste contexto que se coloca a extensão da OTAN a leste, e a anunciada aquisição da Ucrânia primeiro, da Finlândia e da Suécia agora, em função daquilo que a revista "Limes" chama de "semifinal" para "se livrar de Putin - talvez até da Rússia” -, para depois passar para o “jogo do século contra a China”. Criou-se, assim, uma reciprocidade de guerras preventivas a que, felizmente, a China não participa hoje e que, segundo Hu Chunchun, professor da Universidade de Xangai que escreve sobre isso na "Limes", afirma "o primado da paz e da harmonia " e deplora "a necessidade toda europeia" (mas ele poderia dizer estadunidense) "de estabelecer um vencedor único e definitivo", enquanto justamente a Europa "neste exato momento" deveria assumir para si a responsabilidade histórica pela paz no mundo".
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Guerras preventivas. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU