03 Mai 2022
Com quase 40% do orçamento militar mundial, os Estados Unidos ultrapassam o que os próximos onze países juntos gastam nessa rubrica. O orçamento militar para 2022 foi de 778 bilhões de dólares, e para 2023 sobe para 813 bilhões. Por outro lado, de 1975 a 2018, a participação na renda dos 90% dos americanos caiu de 67% para 50%, enquanto a do 1% mais rico subiu de 9% para 22%.
A reportagem é de Andrés Ferrari Haines, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS) e do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre os Estados Unidos (GEPEUA-UFRGS), e publicada por Página/12, 30-04-2022. A tradução é do Cepat.
Em 1965, o presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson, descreveu seu projeto de "Grande Sociedade", que se baseava na “abundância e liberdade para todos”, pedindo assim “o fim da pobreza e da injustiça racial”. Pouco depois, Johnson acrescentaria: “Penso que podemos continuar com a ‘Grande Sociedade’ enquanto lutamos no Vietnã”.
A "Grande Sociedade" constituía “o mais ambicioso programa de reforma interna desde o New Deal”, buscando aprofundar os direitos civis, combater a pobreza, melhorar a educação, estabelecer cobertura médica e limpar o meio ambiente, entre outras coisas. Esse projeto social avançaria com uma escalada bélica. Johnson aumentou as tropas do seu país no Vietnã de 16.000 para 537.000 combatentes durante o seu governo entre 1963 e 1968.
Os recursos destinados à guerra no Vietnã excederam em muito os recursos que Johnson conseguiu junto ao Congresso para financiar seu projeto social. Os Estados Unidos gastaram 300.000 dólares para cada inimigo assassinado no Vietnã, enquanto alocavam 88 dólares por pessoa para os programas de alívio da pobreza. Entre 1965 e 1973, 15,5 bilhões de dólares foram gastos no programa Grande Sociedade e 120 bilhões de dólares na Guerra do Vietnã.
Francis M. Bator, conselheiro de segurança nacional durante 1965-1967, sustenta que Johnson acreditava que, se abandonasse a guerra no Vietnã, sua presidência seria destruída e, por conseguinte, a Grande Sociedade também, porque os projetos sociais chegariam mortos ao Congresso. Anos depois, Johnson admitiria que não lhe foi possível ter “a mulher que ele realmente amava, a Grande Sociedade”, e também “essa cadela de guerra do outro lado do mundo”.
Em toda a Guerra do Vietnã, entre 1961 e 1975, os Estados Unidos gastaram mais de 141 bilhões de dólares. Somando outras despesas militares relacionadas ao conflito, o valor chega a 168 bilhões (um trilhão em dólares correntes). Uma sequela da guerra é que as pensões para os veteranos do Vietnã e suas famílias ainda custam 22 bilhões de dólares por ano: entre 1970-2021, custaram 270 bilhões de dólares.
Para Martin Luther King, a Grande Sociedade foi “abatida no campo de batalha do Vietnã”. King condenava o expansionismo norte-americano, declarando que se baseava no “racismo, no materialismo e no militarismo”, caracterizado pelo “socialismo para os ricos” e “individualismo para os pobres”, pois os recursos para o setor militar eram obtidos através da redução das leis sociais progressistas.
King afirmou que via a Grande Sociedade como um “programa quebrado e estripado, como se fosse um brinquedo político ocioso de uma sociedade enlouquecida pela guerra, e eu sabia que os Estados Unidos nunca investiriam os fundos ou energias necessárias na reabilitação de seus pobres enquanto aventuras como o Vietnã continuaram”. King concluiria que os Estados Unidos estavam enfrentando “duas guerras ao mesmo tempo, a guerra no Vietnã e a guerra contra a pobreza, e estavam perdendo ambas”.
Com a chegada de Richard Nixon à presidência para substituir Johnson em 1968, os Estados Unidos acabariam perdendo não apenas a Guerra do Vietnã; mas o projeto da Grande Sociedade seria varrido pelo projeto neoliberal. O pacto social que havia permitido a "era de ouro do capitalismo", com o Estado atuando para mitigar as desigualdades, foi rompido. A partir de então, os indiscutíveis beneficiários dessas políticas passaram a ser os donos do capital, sendo uma das principais provas a redução da participação dos salários no PIB.
A política econômica que ficou conhecida como “choque de Nixon”, explica Jude Folly, congelou preços e salários por 90 dias. Mas, enquanto os preços recuperaram sua trajetória ascendente, o mesmo não aconteceu com os salários, que sofreram com o aumento do custo de vida. A partir daí, diz, “o empresariado incorporou a supressão dos salários” como a nova forma de funcionamento da economia.
Um relatório de 2019 da Câmara dos Deputados reconhece a falta de poder de barganha dos trabalhadores de baixa renda e admite a responsabilidade porque nos últimos 40 anos “o Congresso não conseguiu aumentar o salário mínimo nacional o suficiente para manter o nível de vida”.
A Câmara aprovou um projeto de lei para aumentar, pela primeira vez desde 2007, o salário mínimo para 15 dólares por hora até 2024 e indexá-lo ao crescimento salarial médio, que mais que dobraria seu nível anterior de 7,25 dólares. Folly aponta que desde a aprovação da lei do salário mínimo em 1938 até 1968, o Congresso havia aprovado constantemente aumentos de paridade com os ganhos de produtividade. Se isso tivesse continuado até os dias atuais, o salário mínimo hoje seria de 24 dólares.
Em vez disso, de 1975 a 2018, a participação da renda de 90% dos americanos caiu de 67% para 50%, enquanto a do 1% mais rico aumentou de 9% para 22%.
Assim, enquanto o PIB per capita cresceu 118% no período, o da base cresceu cerca de 20% e o do 1% mais rico cresceu mais de 300%. Em particular, o salário (ajustado pela inflação) dos principais executivos aumentou 1.322% entre 1978 e 2020, o equivalente a 351 vezes mais do que o salário de um trabalhador médio em 2020.
Como consequência, a partir de 1975, diferentemente do que aconteceu desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a renda dos 90% mais pobres da população cresceu mais lentamente do que a economia em seu conjunto, enquanto a renda dos 10% mais ricos cresceu mais rápido. Em 2018, significou uma transferência de 2,5 trilhões e entre 1975-2018, uma transferência acumulada de 47 trilhões. Consequentemente, a riqueza nos Estados Unidos no final de 2021 é a mais alta desde a Segunda Guerra Mundial.
Em 1961, ao deixar a presidência, Dwight D. Eisenhower alertou que, devido à Guerra Fria, o país estava desenvolvendo “um imenso estabelecimento militar e uma grande indústria bélica” cuja influência se fazia sentir em todos os aspectos da vida do país. Embora reconhecesse “a necessidade imperiosa desse desenvolvimento”, não deixava de “compreender suas graves implicações”.
Em particular, alertou que é preciso precaver-se “de uma influência injustificada” daquele “complexo militar-industrial” dentro do governo. Eisenhower afirmou que “cada arma fabricada, cada navio de guerra lançado, cada foguete disparado significa, em última análise, um roubo daqueles que estão famintos e não alimentados, daqueles que estão com frio e não têm roupas para se agasalhar”.
Tendo atingido 13% do PIB em 1952, os gastos militares caíram para cerca de 6% no final da Guerra Fria. Com o fim da União Soviética, especulava-se que os americanos não teriam mais motivos para altos gastos militares. Na década de 1990, Bush (pai) e Clinton tentaram reduzi-los, mas depois Bush (filho) e Obama aumentaram-nos entre 3% e 6% do PIB. Desde 1991, apenas em 1997 e 2000 os Estados Unidos não estiveram envolvidos em um confronto militar. Neste período, envolveram-se em cerca de 15 guerras, sem contar outras intervenções. Assim, mantiveram a tendência que revela que, em apenas 17 anos, desde que declararam a sua independência em 1776, não estavam em guerra.
Uma visão do impacto dos gastos militares nos Estados Unidos neste século é a referência dos 93,26 milhões de dólares por hora que custa a guerra contra o terrorismo, segundo a contagem do site National Priorities, levando o valor total acumulado desde 2001 a mais de 7,6 trilhões de dólares.
O orçamento militar para 2022 foi de 778 bilhões de dólares e para 2023 foram solicitados 813 bilhões. Com quase 40% do orçamento militar mundial, os Estados Unidos ultrapassam o que os próximos onze países juntos gastam nessa rubrica.
O Departamento de Defesa, com 715 bilhões no orçamento de 2022, é o segundo maior item de gastos fiscais depois da Previdência Social. Outras agências também estão vinculadas ao esforço militar: os Departamentos de Assuntos de Veteranos e Segurança Nacional, e o FBI. Além disso, Operações de Contingências Estrangeiras, com um orçamento de 69 bilhões de dólares, aparece o custo das guerras passadas. Assim, o gasto militar total em 2021 acabou sendo quase 934 bilhões de dólares.
Analisando o tamanho dos gastos militares, Kori Schake cita o ex-secretário de Estado dos EUA Colin Powell: “Mostre-me seu orçamento e eu lhe direi sua estratégia”, para concluir que os Estados Unidos devem expandir seu orçamento em 50% para cumprir as metas expressas por seus líderes.
Schake argumenta que “as atuais forças armadas dos EUA são dimensionadas para lutar uma única guerra” de cada vez, abaixo do que se pretende. Matthew Kroenig, do Atlantic Council, postulou que os Estados Unidos deveriam se preparar para vencer guerras simultâneas contra a Rússia e a China, pelo que considera que o Congresso poderia até “dobrar os gastos com a defesa”.
Sharon Zhang está chocada com o orçamento militar porque o Senado não aprovou 350 bilhões de dólares por ano para gastos sociais cruciais para salvar muitos americanos de baixa e média renda da ruína financeira por considerá-lo excessivo.
Biden já enviou 2,4 bilhões de dólares em ajuda militar à Ucrânia desde fevereiro. Enquanto isso, a expectativa de vida nos Estados Unidos caiu de 78,86 anos em 2019 para 76,60 anos em 2021. Nesse contexto, Yifat Susskind, diretor executivo da organização Madre, disse, parafraseando Eisenhower, que “eles estão roubando recursos” das nossas comunidades “para alimentar a insaciável fome do complexo militar-industrial”.
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Estados Unidos: uma economia de guerra contra a sociedade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU