Choro, silêncio e alegria. Os votos do papa Francisco para os cristãos

Foto: Vatican News

19 Abril 2022

 

"A declaração do Papa Francisco à jornalista Lorena Bianchetti na Sexta-Feira Santa expressa muito do que somos e com que espírito vivemos e celebramos o tríduo pascal e o resto do ano: 'Porque o mundo escolheu – é difícil dizê-lo – mas escolheu o esquema de Caim e a guerra é implementar o cainismo, ou seja, matar o irmão'. Embora o pontífice esteja se referindo diretamente à guerra e à matança que tem sido levada adiante, nas pequenas ações diárias é impossível não perceber a predileção humana por Caim".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

As celebrações e acontecimentos dos últimos dias foram vividos como ritos obrigatórios, para alguns, imposições eclesiásticas tediosas, para outros, ou ainda como repetições litúrgicas velhas sobre um acontecimento estranho e igualmente velho e que nada nos comunica nos dias de hoje. Talvez isso diga muito mais sobre nós mesmos, a nossa própria inserção dentro da Igreja e, de modo ainda mais profundo, sobre a nossa própria relação com Jesus, do que sobre os fatos e as celebrações em si.

 

Na vivência e celebração do tríduo pascal é possível ir muito além da prostração que acomete parte dos fiéis - que literalmente "desembarca" na Igreja em um desses três dias -, se há uma verdadeira disposição para viver cada um deles - e os demais - em intima união com o Senhor.

 

 

Em cada um dos dias do tríduo, através da celebração litúrgica, o Senhor repete seus ensinamentos a nós, morre por nós e ressuscita por nós. Entretanto, apesar de o tríduo pascal ser celebrado ano a ano, causa estranheza observar que, por vezes, ele parece não provocar absolutamente nada naqueles que o vivenciam: não há atenção e reflexão diante da cena do lava-pés, onde o Senhor nos ensina a amar e servir o próximo - que muitas vezes é mais próximo de nós do que imaginamos -; não há desejo por oração na vigília, quando o Senhor sai para orar em agonia; não há pesar, luto e tristeza pela morte do Senhor na Sexta-Feira Santa, tampouco compaixão e desejo de estar com sua mãe dolorosa, muito menos "silêncio respeitoso" diante da morte e ao longo do dia seguinte.

 

Há, como nos outros dias, bastante barulho, fofoca, comentários sobre o próximo, e um falatório interminável - porque é preciso avaliar, analisar e comentar tudo que se fez, como se fez e quem fez, além de quem esteve presente e quem não esteve e como cada qual participou porque não se vivência a morte e a ressurreição de Cristo, mas simplesmente ritos que nos agradam ou desagradam - sem falar na pressa para que se conclua cada rito porque há outras urgências a serem resolvidas. Nessas ocasiões, recordo de alguns filósofos que criticaram a cristandade e me pergunto quantos de nós não estaríamos em suas críticas se elas fossem feitas precisamente hoje.

 

 

Em entrevista concedida à jornalista Lorena Bianchetti na Sexta-Feira Santa, questionado sobre como o mundo deveria viver aquele dia, o Papa Francisco simplesmente calou: silêncio foi a resposta.

 

Mas, para nós, calar é tão difícil quanto sentir dor e chorar, como pontuou o pontífice ao explicar como a guerra e seus efeitos tocam o seu próprio coração:

 

"Uma dor. A dor é uma certeza, é um sentimento que tira tudo. Quando alguém, após uma cirurgia, sente dor física, a ferida que foi feita, pede uma anestesia, algo para ajudar a tolerá-la. Mas [para] dor humana, dor moral, não há anestesia. Apenas oração e pranto. Estou convencido de que hoje não choramos bem. Esquecemo-nos de chorar. Se posso dar um conselho, para mim e para as pessoas, é pedir o dom das lágrimas. E chorar, como Pedro chorou, depois de ter traído Jesus. Ele chorou, quando fugiu, quando o negou. Ele chorou. Um grito que não é um desabafo, não. É uma vergonha feita fisicamente e creio que nos falta vergonha. Estamos tantas vezes sem vergonha – é um insulto que se usa na minha terra natal: '[aquele] é sem vergonha' – mas a graça de chorar. Há uma bela oração, há uma missa para pedir o dom das lágrimas. Uma bela prece naquela missa é assim: 'Senhor, tu que da rocha fizeste sair água, faz sair lágrimas da rocha do meu coração'. O coração duro, o coração que não se comove, não sabe chorar. Pergunto-me: quantas pessoas, diante das imagens de guerras, quaisquer guerras, foram capazes de chorar? Alguns sim, tenho a certeza, mas muitos não. Começam a justificar ou a atacar. Não, isto (o Santo Padre aponta para o coração): é preciso curar isto. E Jesus toca aqui. Hoje, Sexta-feira Santa, em frente de Jesus Crucificado, deixa que ele toque o teu coração, deixa que Ele te fale com o seu silêncio e com a sua dor. Que Ele te fale através daquelas pessoas que sofrem no mundo: sofrem de fome, sofrem de guerra, sofrem de tanta exploração e de todas estas coisas. Deixa que Jesus te fale e por favor não fales tu. Silêncio. Deixa que seja Ele e pede a graça de chorar".

 

 

O que estas palavras dizem a nós hoje? - "E chorar, como Pedro chorou, depois de ter traído Jesus. Ele chorou, quando fugiu, quando o negou. Ele chorou".

 

Quantos de nós sentimos realmente como Pedro sentiu nas inúmeras circunstâncias diárias em que negamos a Cristo? Quantos de nós, com sinceridade, sente e lamenta pelo tão pouco que somos capazes de fazer pelo próximo diante de tudo que Cristo fez e faz por nós? Quantos de nós deseja viver radicalmente com Ele?

 

 

Na missa mais solene do ano, que deveria encher nossos corações da alegria evangélica porque o Cristo que professamos ressuscitou e é isto que estamos celebrando, a indisposição não é menor. Há quem consiga dormir em três horas de celebração. Outros, como não conhecem nem se interessam pela Palavra, não conseguem ouvir duas leituras e começam a contar os minutos para ir embora. Ainda há aqueles que literalmente não sabem onde estão nem o que estamos a celebrar: seus rostos não expressam a alegria do mistério do ressuscitado, tampouco a incredulidade, mas a estranheza de um morto-vivo que está a perambular.

 

Há, no domingo, claro, a alegria da Páscoa, mas, sem ter vivido - e não só repetido - os acontecimentos dos dois dias anteriores, é igualmente uma alegria efêmera, barulhenta, medida pela quantidade de coisas que se tem à mesa. Assim como é festejada, acaba logo depois do almoço, com inúmeras reclamações sobre a segunda que se avizinha.

 

 

A declaração do Papa Francisco à jornalista Lorena Bianchetti na Sexta-Feira Santa expressa muito do que somos e com que espírito vivemos e celebramos o tríduo pascal e o resto do ano: "Porque o mundo escolheu – é difícil dizê-lo – mas escolheu o esquema de Caim e a guerra é implementar o cainismo, ou seja, matar o irmão". Embora o pontífice esteja se referindo diretamente à guerra e à matança que tem sido levada adiante, nas pequenas ações diárias é impossível não perceber a predileção humana por Caim.

 

Diante da nossa incapacidade de viver o tríduo pascal, de calar diante da dor, de chorar, e de ter esperança e alegria com o mistério que professamos, os votos do Papa para a Páscoa não poderiam ser outros e mais oportunos: "Uma alegria interna. Há um salmo que diz: 'Quando o Senhor nos libertou da Babilónia, parecia-nos [estar] a sonhar'. O pranto de alegria. É alegria. Os meus votos são por que não se perca a esperança, a verdadeira esperança – que não desilude – é pedir a graça de chorar, mas o choro de alegria, o choro de consolação, o choro de esperança. Tenho a certeza, repito, temos de chorar mais. Esquecemo-nos de chorar. Vamos pedir a Pedro que nos ensine a chorar como ele chorou. E depois o silêncio da Sexta-feira Santa".

 

Que nos próximos dias também possamos desejar ser guiados pelo Espírito Santo e não mais por nós mesmos. Quem sabe haja choro, silêncio e alegria.

 

 

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