À primeira vista pode parecer estranho o interesse de um diretor ateu em produzir um filme sobre Jesus a partir da narrativa do Evangelho. Entretanto, a iniciativa do diretor italiano Pier Paolo Pasolini, que culminou em O Evangelho Segundo São Mateus, expressa, segundo o teólogo Massimo Pampaloni, a "sinceridade de sua busca pelo homem, seu verdadeiro amor pela humanidade, pelos pobres e simples de sua terra". A busca profunda por tudo que diz respeito à dimensão humana, afirma, "não poderia impedi-lo de encontrar-se, mais cedo ou mais tarde, com o Transcendente estritamente dito. Ele o encontrou? Talvez sim, no nível inicial. A trágica morte interrompeu um caminho do qual não podemos saber o resultado".
Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 2017, o teólogo citou as palavras do único sacerdote presente no funeral de Pasolini, o padre servita David Maria Turoldo (1916-1992), para quem o diretor era "uma alma religiosa sem religião; um crente sem fé; uma alma inquieta porque não encontrava ponto absolutamente brilhante e totalmente convincente de todas as coisas que procurava. Na verdade, foi a imagem da inquietação universal: sempre oprimido pela carga moralista. Independentemente do que se possa dizer, talvez até mesmo em seu pecar cotidiano, foi um dos mais inocentes, um dos mais puros. Ninguém sofreu mais do que ele a sua condição, e ninguém pagou como ele para ser ele mesmo”.
A produção artística de Pasolini, acrescenta Turoldo, foi vivida por ele próprio como uma missão. "Ele era um missionário, se sentia em uma missão; Ele tinha a tarefa de denunciar o mal. (...) O senso do mal nele é trágico. Ele sempre sonhou com uma igreja que o salvasse, apesar de ter desistido de qualquer igreja. Na verdade, no final das contas, ele desiste inclusive da igreja marxista”.
Neste ano em que o mundo da arte celebra o centenário de Pasolini, diversas são as interpretações acerca de sua obra. Embora seja difícil precisar o sentido exato de suas próprias palavras, ele mesmo deu pistas sobre a motivação que o conduziu à filmagem de O Evangelho Segundo São Mateus:
“Eu quero fazer uma obra de poesia. Não é uma obra religiosa no sentido usual do termo, nem uma obra de alguma forma ideológica. Em palavras muito pobres e simples: eu não acredito que Cristo é o filho de Deus, porque eu não sou um crente — pelo menos na consciência. Mas eu acredito que Cristo é divino: eu penso, isto é, que nele a humanidade é tão elevada, rigorosa, um ideal para ir além dos termos comuns da humanidade. Por isso eu digo 'poesia': um instrumento irracional para expressar os meus sentimentos irracionais em relação a Cristo.”
Para comemorar o centenário de Pier Paolo Pasolini, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu nesta segunda-feira, 11-04-2022, o evento virtual intitulado “Centenário de Pasolini: debate sobre o filme O Evangelho segundo Mateus”, com a participação dos professores Faustino Teixeira e Rodrigo Petronio. O evento integra a programação da 19ª Páscoa IHU. Incertezas e esperanças do tempo presente.
Na avaliação do teólogo Faustino Teixeira, professor convidado da Universidade Federal de Juiz de Fora, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, a escolha de Pasolini pelo Evangelho de Mateus está diretamente associada ao “realismo desse texto evangélico” e "à construção hebraica que conjugava dureza e leveza". Esse Evangelho, comenta, "é marcado pela iracunda sagrada naquele episódio da expulsão do templo e outros, como a fala de Jesus ‘Não vim para trazer a paz; vim trazer a espada’. O propósito do diretor era resgatar o realismo do Evangelho e a humanidade de Jesus, do Jesus radicado no seu povo - e ele o fez com extrema fidelidade ao relato do Evangelho".
Rodrigo Petronio, professor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP, destaca que a filmagem de O Evangelho Segundo São Mateus é uma proposta de "entender a constituição da vida de Jesus in loco, ou seja, despida de todas as hermenêuticas teológicas para resgatar a fé primitiva e o sentido original primeiro da mensagem de Jesus, que é a mensagem do amor".
Segundo Teixeira, este é um dos filmes mais bonitos sobre o Evangelho de Mateus. "Embalado pelos lindos coros da Paixão Segundo São Mateus de Bach e com trechos impressionantes da missa Luba, executada em latim por indígenas da África Central, trata-se de uma das mais clássicas obras do cinema italiano, produzido em 1964 e filmado na Itália. É uma das obras que mais me toca, de comovente simplicidade".
Entre os episódios mais simbólicos da obra, o teólogo destaca a passagem dos ramos. "Pasolini dedica um lugar bonito no filme para aquela passagem de Jesus no burrinho, com a população e as crianças saudando Jesus. É uma cena muito simbólica. O Jesus de Pasolini é um ser humano, um profeta, um revolucionário". O diretor italiano, pondera, assim como os teólogos da Teologia da Libertação, "se preocupou com o Jesus narrado; não um Jesus divino. Jesus não se considerou a revelação última das profecias, mas alguém que prometeu enviar o Espírito sem fechar a revelação. O Jesus histórico anuncia a vinda do Espírito".
A fotografia e as tomadas do filme, acrescenta, também indicam que "no filme há uma pujança da relação com a terra, a aridez, a beleza das colinas despojadas. Mesmo sendo anticlerical, Pasolini reconhece a força poderosa do patrimônio cristão e a sobrevivência de um religioso que contamina. Quer dizer, quem tem contato com Jesus se contamina. Não há quem tome contato com Jesus que não se inspire, mesmo sem ser religioso. Não precisa ser religioso para ser tocado pela dinâmica de Jesus".
Petronio acentuou a complexidade da poética e do pensamento de Pasolini – que pode ser aferida a partir da sua obra cinematográfica, mas também nos diversos poemas e textos polêmicos publicados na impressa à época – e sua particularidade e liberdade em relação aos intelectuais, artistas e ativistas políticos de seu tempo. Ao se desvincular das instituições e grupos políticos à esquerda e à direita, sublinha, "Pasolini começou a desenvolver uma linguagem e uma ideologia que estava mais ligada a um sentido comunal do que comunista. Para expressar essa estética comunal, ou seja, da experiência das comunas e do comum, dos pequenos vilarejos, povos e grupos, ele se vale de uma estrutura que passa pelo realismo, mas reativa chaves míticas. Ele está pensando em estruturas arcaicas de convívio e de organização social. Essas estruturas estão presentes no cinema dele como uma perspectiva cinematográfica, poética, estética, política e ideológica também, promovendo uma grande liberdade em relação a outra esfera que talvez não tenha sido muito contemplada pela linha mais ortodoxa do marxismo e do comunismo, que é a questão do desejo, da sexualidade e da subjetividade".
O sentido de arcaísmo presente no filme do diretor italiano, observa, está presente em outras obras em que Pasolini propõe uma releitura da literatura e dos clássicos. "Todos os clássicos da literatura – Édipo Rei, Medeia, As Mil e Uma Noites, Os Contos de Cantuária, e o Decameron – podem ser alinhados a partir de um certo modo de vida pré-moderno que interessava muito a Pasolini e que não é necessariamente comunista no sentido moderno marxista, mas é da experiência comunal, ou seja, da experiência dos seres humanos dentro de pequenas comunidades. Seja uma pequena comunidade de Tebas, em Édipo Rei, seja a comunidade regida por uma figura feminina poderosíssima, como Medeia. O que interessa a Pasolini é o mundo pré-moderno, pré-burguês. Esse mundo pré-moderno, alimentado pelo arcaísmo, produziu em Pasolini uma espécie de anacronismo deliberado: Pasolini percebia cada vez mais que ele não era desse tempo ou não pertencia ao século XX. Ele via a modernidade, a modernização e a industrialização de modo reticente e, de alguma maneira, passou a cultuar e a criar um proto-mundo que tem em si uma visão romântica do século XIX, do mundo arcaico que seria a Itália pré-fascista e que ainda não é comunista. Essa abordagem é importante porque demarca tanto uma forma mental de lidar com os enunciados, a narrativa, o cinema e a poesia, como também a matriz política ideológica, tendo em vista que não podemos separar essas esferas da vida de Pasolini".
O anacronismo deliberado de Pasolini, esclarece, "é uma crítica à sociedade de consumo, aos padrões burgueses e a um desenquadramento no sentido ideológico político de certas premissas da esquerda dialética marxista e da esquerda de formação do comunismo como política partidária".
O anacronismo de Pesolini, segundo Petronio, é expresso nos versos deste poema sem título:
Eu sou uma força do Passado.
Só na tradição está o meu amor.
Venho das ruínas, das igrejas,
Dos retábulos, das aldeias
Abandonadas sobre os Apeninos e os Pré-alpes
Onde viveram os irmãos.
Percorro a Tuscolana como um doido,
Pela Ápia como um cão sem dono.
Tanto contemplo o crepúsculo, a aurora
Sobre Roma, sobre a Ciociaria, sobre o mundo
Como os primeiros actos da Pós-memória
A que assisto, por privilégio censitário
Da orla extrema de qualquer idade
Sepulta. Monstruoso quem é nascido
De vísceras de mulher morta.
E eu, feto adulto, cirando,
O mais moderno de todos os modernos,
Procurando irmãos que o não são mais.
(Pier Paolo Pasolini in Poesia in forma di rosa)
Os versos também fazem coro a uma das últimas declarações do autor, em 30 de outubro de 1975, três dias antes de sua morte:
“Não há mais católicos e marxistas no meu país. Venceu a revolução consumista”.
Embora O Evangelho Segundo São Mateus não seja religioso nem tenha essa pretensão ao narrar a vida de Jesus, Pampaloni destaca que o "filme deixa essa maravilhosa sensação de 'religiosidade', porque o assunto é tratado com grande respeito e abertura ao texto do Evangelho. Mas todas as dimensões divinas no sentido pleno da palavra foram removidas. Certamente, o Cristo de Pasolini, para o diretor, não é Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nos salvar. Porém a sua atuação é tão fina e delicada, é tão respeitosa em acompanhar o ritmo do texto de Mateus, que o fiel que assiste ao filme consegue facilmente 'integrar' aquilo que está faltando.
No artigo intitulado “O Evangelho segundo Pasolini: a obra-prima sagrada”, publicado neste ano na revista La Civiltà Cattolica, o jesuíta italiano Antonio Spadaro classificou Pasolini como "verdadeiramente teólogo e exegeta". "A sua lectio evangélica", disse, "é feita, por um lado, de um literalismo absoluto: entre os muitos filmes feitos sobre a vida e a paixão de Jesus, o de Pasolini é o único no qual o protagonista e os outros interlocutores usam palavras escritas no Evangelho, sem recorrer a paráfrases ou transposições. Por outro lado, o seu gesto absolutamente criativo liberta o sentido das palavras e a sua interpretação com a força das imagens. Em todo o caso, uma coisa estava clara para ele: 'Tendo decidido ser absolutamente fiel ao texto de Mateus, tinha que representar um Cristo que não fosse apenas homem, mas que fosse homem e Deus'".
Segundo o jesuíta, Pasolini, enquanto leitor do Evangelho, "é um homem movido não pela pietas, mas por um instinto", tal como manifestou na carta que enviou ao produtor Alfredo Bini, em junho de 1963:
“Para mim, a beleza é sempre uma ‘beleza moral’; mas essa beleza sempre chega até nós mediada: pela poesia, ou pela filosofia, ou pela prática; o único caso de ‘beleza moral’ não mediada, mas imediata, em estado puro, eu experimentei no Evangelho.”
Nesta carta, diz Spadaro, "ele falou do seu desejo de fazer um filme sobre isso como uma 'furiosa onda irracionalista'”.
O debate entre Rodrigo Petronio e Faustino Teixeira sobre O Evangelho Segundo São Mateus e os demais eventos promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na 19ª Páscoa IHU. Incertezas e esperanças do tempo presente estão disponíveis aqui.