07 Julho 2012
"“Há apenas cinquenta anos, a teologia católica era uma disciplina em grande parte fechada, ensinada por sacerdotes-professores em seminários controlados por ordens religiosas masculinas ou pelas dioceses. Os teólogos eram formados nas universidades pontifícias e faziam parte das mesmas comunidades clericais dos seus bispos. Mas o Vaticano II abriu fileiras da teologia aos leigos. As universidades começaram a ensinar a teologia como disciplina acadêmica, os teólogos não buscaram mais o imprimatur para o seu trabalho, e um laicato cada vez mais instruído tentou explorar as conceitualidades teológicas (que uma vez estavam bem além do seu alcance)", constata Faustino Teixeira, professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF e autor, entre muitos outros livros, de Teologia e Pluralismo Religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012).
Segundo ele, "é na linha dessa teologia de toque e sensibilidade leigas que pode haver um futuro propício e renovador para a reflexão teológica em nosso tempo".
Faustino Teixeira é doutor e pós-doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Eis o artigo.
“Não há dúvida de que por vezes
tem-se a impressão de que as
nossas igrejinhas nos
escondem a Terra”
(Teilhard de Chardin)
Em recente editorial da revista internacional de teologia, Concilium (2/2012) os teólogos Susan Ross e Felix Wilfred falam das antigas e recentes tensões que envolvem os teólogos com os bispos. O tema volta à tona em razão de novos desencontros entre a teologia e o magistério. Nas décadas que precederam o Concílio Vaticano II (1962) vários teólogos foram advertidos ou punidos pelo Santo Ofício em razão de sua pesquisa teológica. Podem ser citados os teólogos ligados à Nova Teologia Francesa, envolvendo também Pierre Teilhard de Chardin. É conhecido o caso das punições sofridas por Henri de Lubac e Marie-Dominique Chenu. A clássica obra de Chenu, Une école de théologie (1937) foi colocada no Index e ele mesmo foi retirado de seu cargo de diretor em Le Saulchoir, acusado publicamente diante de sua comunidade. Na ocasião, o cardeal Suhard confortou-lhe dizendo: “Caro Padre, não se perturbe, daqui a vinte anos o mundo inteiro falará como você”. E vinte anos depois aconteceu o Vaticano II... Os sofrimentos com a repressão romana foram também destacados por Yves Congar em seu Diário de um Teólogo, publicado em 2000. Ali relata tudo o que passou entre os anos de 1952 e 1956. Em tom profético, nomeia o Santo Ofício como uma espécie de “Gestapo eclesial”. Anos difíceis, diria Eric Hobsbawm.
O Concílio abriu novos espaços para a reflexão teólogica e dilatou os “espaços da caridade”. Essa primavera, infelizmente, durou pouco. Vinte anos depois o clima muda e o antigo núcleo da “minoria” conciliar ganha terreno na igreja e também novos adeptos. O ano de 1981 é simbólico para essa mudança, quando se registra a entrada de Joseph Ratzinger na Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), ex Santo Ofício. Vem substituir o antigo Prefeito, o cardeal Franjo Seper (1968-1981). Com Ratzinger na frente da CDF uma nova dinâmica vem firmada na vida eclesial, e a busca de uma “nova disciplina”. A plataforma de mudança vem lançada com o livro Rapporto sulla fede (1985). Ali estão os vivos traços da restauração eclesial. A obra reforça a “hermenêutica de continuidade” na leitura do Concílio, reagindo duramente contra as interpretações que falam em ruptura eclesial. O cardeal Ratzinger reage contra a “abertura indiscriminada” realizada no pós-concílio e fala em “certa eufórica solidariedade pós-conciliar”. Sublinha que a restauração, entendida como “busca de um novo equilíbrio” está em curso na igreja. Muitas das questões polêmicas que marcarão os decênios seguintes estão presentes nessa obra: as dificuldades do magistério com a teologia moral (identificadas como polo principal das tensões entre o magistério e os teólogos), com a teologia feminista e da libertação, com as Conferências Episcopais, com a teologia das religiões etc.
Passando os olhos na obra da Congregação para a Doutrina da Fé, Documenta Inde a Concilio Vaticano Secundo – Expleto Edita (1966-2005), vislumbra-se uma clara desconfiança face à chamada “hermenêutica da descontinuidade e da ruptura” e uma preocupação viva com a produção teológica realizada em certas áreas, envolvendo questões trinitárias e cristológicas, questões eclesiológicas, de antropologia teológica, questões morais, de teologia da libertação e teologia das religiões (Praenotanda de Angelo Amato).
No período pós-conciliar muitos teólogos foram advertidos e punidos, começando por Hans Küng (1975 e 1979), Jacques Pohier (1979), Edward Schillebeeckx (1981 e 1984), Leonardo Boff (1985), Tissa Balasuriya (1997), Antonii de Mello (1998), Jacques Dupuis (2001), Marciano Vidal (2001), Roger Haight (2004), Jon Sobrino (2006), Margareth Farley (2012). Curioso verificar que o campo de atuação desses teólogos está, em geral, relacionado aos temas de teologia moral, teologia da libertação e teologia das religiões.
O artigo de Ivone Gebara, sobre A inquisição de hoje e as religiosas americanas – publicado no Boletim Rede (maio de 2012) -, chama a atenção para uma novidade problemática: não se acusa mais somente os teólogos, mas também a “uma instituição que congrega e representa mais de 55.000 religiosas norte americanas”. A Avaliação Doutrinal da Conferência Nacional das Religiosas (Leadership Conference of Women Religious), publicada pela CDF em abril de 2012, abre um novo precedente. Embora no mencionado livro-entrevista com o cardeal Ratzinger, de 1985, ele já assinalava sua dificuldade com as Conferências Episcopais, que a seu ver não tinham “base teológica”, mas só uma “função prática”. Se é assim com as Conferências de Bispos, o que diria das Conferências de Religiosos... Como indica Ivone Gebara, as religiosas “são acusadas de serem partidárias de um feminismo radical, de desvios em relação à doutrina católica romana, de cumplicidade na aprovação das uniões homossexuais e outras acusações (...)”. São dificuldades que aparecem igualmente na notificação do livro da irmã Margareth Farley: problemas no âmbito da moral sexual, envolvendo a masturbação, os atos e uniões homossexuais, a indissolubilidade do matrimônio e o divórcio e as segundas núpcias. As argumentações da teóloga são rebatidas e questionadas em razão de uma alegada “contradição com a doutrina católica”. Como vem ocorrendo em todos os processos que antecedem tais notificações, as argumentações dos teólogos em questão são sempre consideradas insuficientes ou não esclarecedoras por parte da CDF.
Tanto a Carta Apostólica Porta Fidei (2011), de Bento XVI, como a Nota com as Indicações pastorais para o ano da fé (CDF – 2012), falam na importância de uma “correta compreensão do Concílio”, e de uma “justa hermenêutica” que enquadre os textos conciliares num âmbito de qualificação normativa, “no âmbito da Tradição da Igreja”. Fala-se nos textos do Concílio, não há dúvida, mas toda a ênfase recai no Catecismo da Igreja Católica, que vem considerado como “um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II”. O Catecismo ganha uma centralidade ainda maior do que os documentos conciliares, sobretudo na quantificação das citações.
Diante desse “quadro sombrio” de enquadramento eclesiástico, que tende a se aprofundar nos próximos anos, surge o grande desafio de afirmação de uma teologia pública, mais comprometida com o reino de Deus (J.Moltmann) e com a causa do Evangelho (Joseph Moingt). Uma teologia menos eclesiástica e mais sintonizada com o mundo da academia (David Tracy) e dialogante com a sociedade (I.Neutzling). Esse é o grande desafio que se coloca para todos nós, sobretudo para os teólogos leigos. Como bem mostrou Inácio Neutzling em sua reflexão sobre a ciência e a teologia na universidade do século XXI, “a teologia, como discurso público, tem necessidade da liberdade institucional frente à igreja, assim como de um lugar no espaço público das ciências”. Muda-se o perfil da teologia, e também de suas tarefas nesse tempo das sociedades pós-tradicionais. As teólogas e teólogos são provocados a investimentos reflexivos mais ousados e corajosos, buscando trabalhar com criatividade os grandes desafios do século XXI à luz de suas experiências de fé e de comunidade. Para encerrar esse breve desabafo, cito uma passagem do editorial da Concilium: “Há apenas cinquenta anos, a teologia católica era uma disciplina em grande parte fechada, ensinada por sacerdotes-professores em seminários controlados por ordens religiosas masculinas ou pelas dioceses. Os teólogos eram formados nas universidades pontifícias e faziam parte das mesmas comunidades clericais dos seus bispos. Mas o Vaticano II abriu fileiras da teologia aos leigos. As universidades começaram a ensinar a teologia como disciplina acadêmica, os teólogos não buscaram mais o imprimatur para o seu trabalho, e um laicato cada vez mais instruído tentou explorar as conceitualidades teológicas (que uma vez estavam bem além do seu alcance)”. Creio que é na linha dessa teologia de toque e sensibilidade leigas que pode haver um futuro propício e renovador para a reflexão teológica em nosso tempo.
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Hermenêuticas em tensão: tempos sombrios para a teologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU