"Nós, cada um em particular e comunitariamente, enquanto corpo de Cristo, isto é, a Igreja, não paramos de cair e levantar. Para refletir sobre essa realidade, o pensamento do teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer é pertinente novamente porque reitera que, enquanto membros desse corpo, somos chamados a seguir e imitar o mestre, apesar de todos os pesares, e a cantar o hino ao Cristo Redentor".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
No período recente, em que sucessivas crises foram sobrepostas por causa da pandemia de Covid-19 - e cada um de nós sentiu a necessidade de proteger a si próprio e, ao mesmo tempo, deparou-se com situações cotidianas que ou impediam a clausura total ou geravam o sentimento oposto ao da autoproteção -, não foram poucos os ataques, críticas e acusações dirigidos à Igreja.
As razões foram múltiplas: porque as paróquias permaneceram abertas ou fecharam as portas, porque o Papa Francisco se pronunciou desta ou daquela maneira, porque alguns de seus membros se refugiaram, impossibilitados de carregar a cruz ou, refugiados, a carregaram, ou porque outros estavam arriscando a própria vida nos hospitais, nos asilos, nas casas, nas ruas, envolvidos em inúmeras atividades que foram desenvolvidas. Ou ainda porque outros tantos se limitaram a clamar a Deus, solitariamente, para que indicasse a direção porque não foram poucos os momentos de impotência, dúvida, insegurança e angústia quanto ao presente e ao futuro.
Essas críticas não deveriam surpreender ou abalar os cristãos - nem mesmo quando partem do interior da própria Igreja. Antes de tentar respondê-las, seria - e provavelmente foi para muitos - um ato de fé fixarmo-nos naquela velha orientação, repetida também pelo teólogo luterano e pastor da Igreja Confessante durante o nazismo, Dietrich Bonhoeffer:
"Só Cristo pode ser o modelo que temos de seguir."
A interrogação sincera - e não meramente retórica e intelectualizada - dessa orientação não nos permitirá, jamais, responder às críticas que nos foram e são endereçadas, mas pode orientar nossa prática e fortalecer a nossa fé. Se só Cristo pode ser o modelo a seguirmos, o que, dentro das nossas possibilidades e limites, somos chamados a fazer, estamos dispostos a fazer, ou podemos fazer? O discernimento pessoal sobre essa questão não consiste em respondê-la forçando-nos a imitarmos o exemplo de Bonhoeffer, que aceitou a sentença de morte em razão da sua fé, quando não estamos nem dispostos nem preparados para uma atitude radical por amor e convicção interior, mas, antes, em deixar-nos interpelar por Cristo e por cristãos que levaram sua fé às últimas consequências. Dar a Ele o espaço para nos guiar na resolução das ações concretas do cotidiano pode nos libertar de sermos juízes de nós mesmos e dos outros.
A pandemia nos revelou mais uma vez que, apesar de toda caridade e solidariedade praticadas, os nossos olhos nem sempre estiveram e estão fixos em Cristo e na sua cruz, mas nas ações dos outros, que gostamos de apontar e julgar, sendo, nós próprios, juízes não de nós mesmos, mas do próximo - papel que cabe somente Àquele que está instituído deste poder.
Uma observação de Bonhoeffer, contudo, pode nos ajudar na caminhada, se é a Cristo que desejamos ter como modelo:
"O discípulo vê apenas aquele a quem segue. Aquele que, no discipulado, carrega a imagem do Cristo encarnado, crucificado e ressurrecto, que foi feito imagem de Deus, dele pode-se finalmente dizer que foi chamado para ser 'imitador de Deus'. O discípulo de Jesus é o imitador de Deus. 'Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados' (Ef 5.1)".
Somente Ele poderá dizer a cada um de nós se fomos de fato seus imitadores, mas, até lá, esforcemo-nos para andar nessa direção, caindo com as cruzes que nos são impostas e que não temos forças para carregar sozinhos, mas cujo jugo é leve porque Ele nos ajuda a carregá-las.
A Via-Sacra, que vivemos todos os dias e estamos repetindo de modo especial nesta quaresma, é um bom exemplo para ter os olhos fixos em Cristo e sua cruz, para seguir seus passos no caminho até o Calvário. Jesus, assim como nós, caiu pela primeira vez, recebeu ajuda para carregar sua própria cruz, caiu pela segunda e terceira vez, e ensina que é preciso levantar e seguir em frente até a conclusão do percurso.
Nós, cada um em particular e comunitariamente, enquanto corpo de Cristo, isto é, a Igreja, não paramos de cair e levantar. Para refletir sobre essa realidade, o pensamento do teólogo é pertinente novamente porque reitera que, enquanto membros desse corpo, somos chamados a seguir e imitar o mestre, apesar de todos os pesares, e a cantar o hino ao Cristo Rei:
"O corpo de Jesus Cristo ocupa espaço na terra. (...) O que ocupa espaço é visível. Portanto, ou o corpo de Jesus Cristo é um corpo visível, ou então não é um corpo. Aquele que se vê é o homem Jesus Cristo; aquele em que se crê é o Filho de Deus. O que se vê é o corpo de Jesus Cristo; aquilo em que se crê é o corpo de Deus encarnado. O que se vê é que Jesus estava na carne; aquilo em que se crê é que ele tomou sobre si nossa carne. (...) Uma verdade, uma doutrina, uma religião não exigem espaço próprio. Elas não têm corpo. Podem ser ouvidas, estudadas e entendidas. Nada mais que isso. O Filho de Deus, porém, não precisa somente de ouvidos ou corações, mas de seres humanos verdadeiros que o sigam. Por isso, Jesus chamava os discípulos ao discipulado corporal, e sua comunhão com eles era visível a todos. Essa comunhão se fundamentava e se sustentava no próprio Jesus Cristo encarnado; a Palavra que se fez carne tinha chamado, tinha criado a comunhão corporal e visível. Os que eram chamados já não podiam viver na invisibilidade".