31 Março 2022
“São poucos, amaldiçoados como traidores de sua pátria, mas vão embora. Talvez estejam apaixonados e não querem morrer, talvez estejam assustados pelo horror e não querem matar. De qualquer forma, minha solidariedade, minha amizade, vai para eles. Só para eles. Minha amizade vai para todos os que desertam”, escreve Franco ‘Bifo’ Berardi, filósofo e ativista italiano.
“Por todos os outros, russos e ucranianos, estadunidenses e italianos, sinto apenas uma compaixão desesperada”, confessa.
O artigo é publicado por Ctxt, 29-03-2022. A tradução é do Cepat.
Leio as palavras de velhos companheiros que estimulam o envio de armas ao povo ucraniano que luta contra o invasor. Como disse Gad Lerner, em um discurso recente sobre o assunto, “estamos caminhando descalços sobre vidros quebrados”, então, respeito os sentimentos desses meus velhos companheiros, mas espero não parecer cínico se os convido a refletir sobre o contexto e o sentido geral do processo do qual a guerra da Ucrânia é o catalisador.
Parece que hoje está proibido pensar. É preciso assumir uma posição, existe uma guerra de agressão desencadeada pela Rússia stalinista-czarista e existe uma resistência que envolve a grande maioria do povo ucraniano. Sei disso e parece inegável.
No entanto, antes de me pronunciar, caso me permitam, gostaria de conhecer o contexto histórico: da fome que matou milhões de ucranianos, nos anos de Stalin, ao apoio que a maioria dos ucranianos deram a Hitler, durante a guerra, da eliminação de 1,2 milhão de judeus pelas SS ucranianas à política de expansão da OTAN nas fronteiras da Rússia.
Tenho a permissão para estudar história? Tenho a permissão para compreender? Ou, queridos velhos companheiros que agora são intervencionistas, só é lícito assumir uma posição, sem compreender, sem saber?
Conheci esses meus companheiros nas ocupações contra a guerra estadunidense no Vietnã, juntos crescemos na cultura do internacionalismo, acreditando que estávamos vivendo o amanhecer de uma época mais feliz e não, como sabemos agora, o ocaso da civilização humana.
Juntos pensávamos que a nação era um conceito brutal e estúpido, herança de uma era bestial da qual a cultura poderia nos emancipar.
Juntos pensamos que a nação era uma máscara para predadores competidores que enviam crianças para morrer por lucros.
Ingenuamente juntos, pensamos que a cultura poderia emancipar mulheres e homens dessa bestialidade. Não sabíamos que a cultura estava destinada a se dissolver como resultado do darwinismo neoliberal que restaurou a lei natural da selva, na qual só pode viver quem sabe matar. Não sabíamos que a besta estava destinada a ressurgir como um monstro de duas cabeças que agora se mordem entre si. As duas cabeças são o globalismo capitalista e o nacionalismo soberano: de suas mordidas proliferam pequenos monstros nacionais.
Há vinte anos, as multidões se uniram sob o grito patriótico “todos somos estadunidenses” e acenaram com seus lenços para saudar o grande empreendimento afegão que terminou no dia 21 de agosto de 2021. Já sabemos como. Agora, nas 24 horas do dia, em redes unificadas, há uma demonstração de heroísmo por meio de terceiros.
A pessoa interposta é o povo ucraniano, incitado, instigado, exaltado por uma multidão de simpatizantes emocionados que seguem acenando seus lenços. Contudo, desta vez, o espetáculo pode ser estender à audiência, envolver o público e esmagar o pouco que resta da vida civil.
Assisti a Inverno em chamas do diretor russo-israelense Afineevsky. Um filme que narra, sem delinear o contexto nacional e internacional, a resistência do povo, a solidariedade cidadã, o orgulho nacional, a determinação implacável. Embora tenho dificuldades em compartilhar o nacionalismo como é apresentado, compreendo o seguinte: se os ucranianos puderam resistir à violência brutal dos Berkut de Yanukovych com suas próprias mãos, hoje, com as armas que enviamos, poderão resistir ao exército de Putin como leões. E morrerão aos milhares. E matarão milhares de soldados russos, jovens de vinte e poucos enviados para morrer pela loucura criminosa de Putin.
Nós enviamos os ucranianos à frente. Prometemos-lhes a OTAN, a Europa e a liberdade. A liberdade que é desfrutada por Julian Assange, que é desfrutada pelos estadunidenses negros e os trabalhadores precários do mundo todo. Prometemos-lhes a democracia, a que foi vivida pelos gregos no verão de 2015.
Em troca de sua liberdade, pedimos que morram pela OTAN, ainda que a chamem de União Europeia.
Mas, agora, Zelensky nos chama: “A Ucrânia está disposta a morrer pela Europa. Vejamos se a Europa está pronta para morrer pela Ucrânia”.
A Europa está disposta a enviar armas, não a morrer. Também não está preparada para, de um dia para o outro, ficar sem calefação e sem gasolina.
Estimularemos das arquibancadas, como nos dias dos gladiadores.
É o momento Anders na história do mundo. Nos anos 1960, quando a bomba atômica se apoderou da imaginação, Günther Anders refletiu sobre os efeitos políticos e psíquicos dessa inovação tecnomilitar. Judeu, filósofo de formação heideggeriana, que emigrou para a América nos anos do extermínio de seu povo, Anders escreveu, em artigos e livros que nunca tiveram a circulação merecida, que o Terceiro Reich era apenas o ensaio geral de um espetáculo que (ele disse) nossos netos verão quando o nazismo estiver por todos os lados. Agora, os netos de Anders são testemunhas do triunfo do Novo Terceiro Reich, o monstro bicéfalo do supremacismo branco que não aceita seu declínio.
Anders foi tratado com certo distanciamento pelos acadêmicos: um pessimista, diziam dele os exaltadores das glórias da democracia liberal.
Agora, fica evidente: por todos os lados, o culto à nação, à raça, voltou a dominar a cena, e o que está sendo travado na Ucrânia é uma guerra de Hitler contra Hitler. Guerra interna de extermínio no Ocidente.
Não é a primeira vez que um poder branco (por exemplo, os Estados Unidos da América) lança campanhas de extermínio contra populações indefesas.
Graças às sanções contra o Iraque na primeira guerra do Golfo, a mortalidade infantil passou de 56.000, em 1990, a 131.000, em 1999. Em 1996, o programa 60 Minutes entrevistou a embaixadora estadunidense na ONU, Madeleine Albright: “Parece que 500.000 crianças iraquianas morreram por causa dos embargos. É mais do que Hiroshima. É um preço justo a pagar?”. A resposta foi digna do Putin que agora vemos em ação: “Foi uma escolha muito difícil, mas, sim, é no que acreditamos”.
Mas os mortos eram iraquianos, não pesavam muito na consciência ocidental. Os mortos de Mariupol nos impressionam, de modo especial, porque o massacre ocorre dentro do mundo branco, dentro do Ocidente, já que a Rússia é o Ocidente, no sentido de que faz parte da raça carnívora.
O que é o Ocidente não está claro. Em termos geográficos, a Rússia não faz parte dele. Em termos políticos, o Ocidente é o mundo livre oposto à autocracia. E, é claro, a geopolítica importa, e a política importa. Mas o que mais importa é a pertença cultural ao mundo cristão, branco e imperialista.
Desse ponto de vista, a Rússia é o Ocidente. O Ocidente é a terra do declínio, a terra do futuro que agora está em declínio. O futurismo russo e o futurismo ocidental têm raízes diferentes, mas o mesmo significado: expansão. E têm o mesmo destino: o esgotamento no qual nem sequer somos capazes de pensar, já que o culto à expansão nos cega e nos impede de compreender que a expansão acabou e que o Ocidente está se extinguindo.
O Oeste é a Rússia, a América, a Europa, um mundo de velhos que exorcizam a demência com próteses cognitivas e inteligência artificial, de velhos que exorcizam a impotência com proclamações de extermínio mútuo.
Essa é uma guerra dentro da raça carnívora que não se resigna a desaparecer, e como Sansão quer levar todo o planeta para a desgraça. Aqui, estamos no último ato da civilização branca, russa, europeia, americana: a destruição da civilização.
Ilimitado é o poder do estúpido e é dito que nem os deuses podem fazer algo contra ele. Recentemente, Macron declarou que a OTAN está em estado de morte cerebral. No entanto, levantou-se e como um zumbi tomou o lugar da Europa, destruindo definitivamente sua missão constitutiva. A Polônia é, de fato, sua vanguarda. A Polônia de Kaczyński.
Biden ordenou que a Alemanha rescindisse o contrato do Nord Stream. Não sabemos como acabará a guerra em curso, mas, sim, sabemos que Biden já venceu neste ponto. Após renunciar ao Nord Stream, a Alemanha concorda em se armar. Contra os russos, no momento, quem sabe amanhã.
O poder do estúpido é ilimitado, porque o estúpido está disposto a prejudicar a si mesmo para prejudicar o outro.
Não está claro como sairemos dessa guerra. No pior dos casos, não sairemos completamente dela. Em vez de perder (tudo), o Autocrata pode usar toda a sua força e destruir (tudo). No melhor dos casos, uma onda de nacionalismo fragmentará o continente europeu em um mosaico de exércitos fascistas em guerra entre si e especialmente contra os imigrantes não brancos. As linhas divisórias são nebulosas, porque os nacionalistas não conhecem a lógica e não sabem nada de universalidade.
Não está claro como sairemos desta guerra, mas o certo é que a miséria aumentará, já que a sociedade terá que pagar os custos de um rearmamento geral. E o ar será cada vez mais irrespirável: as minas de carvão estão sendo reabertas para satisfazer a crescente necessidade de energia. O Holocausto climático se precipitará.
Os governos europeus estimularão as mulheres a ter filhos pela pátria branca, mas o câncer e a asma se espalharão junto com uma pandemia de depressão suicida.
Submetida a uma violência ininterrupta, a natureza recuperou o domínio: a natureza desencadeada pelos mares que sobem e pelos fogos devoradores, a natureza bélica dos humanos que transformaram a inteligência em artifício e agora são presa da (i)lógica natural da paixão pela identidade. Paixão assassina.
Mas, agora, também paixão suicida.
Todas as noites, uma dúzia de desertores chega a um povoado na fronteira com a Polônia. Não querem ficar presos a uma guerra de nações, talvez porque a ideia de nação não os convença, assim como não me convence. Milhares de jovens russos fogem para a Escandinávia e quem sabe para onde. Não querem ser recrutados por Putin para matar seus pares ucranianos, não querem viver em um país onde se persegue a liberdade de expressão.
Levaram algumas coisas com eles e foram para nunca mais voltar. São poucos, amaldiçoados como traidores de sua pátria, mas vão embora. Talvez estejam apaixonados e não querem morrer, talvez estejam assustados pelo horror e não querem matar. De qualquer forma, minha solidariedade, minha amizade, vai para eles. Só para eles. Minha amizade vai para todos os que desertam.
Aos que desertam da pátria e da guerra, aos que desertam do trabalho assalariado, aos que desertam da procriação, aos que desertam da participação política. Àqueles que entendem que o câncer agora devorou o corpo e estão buscando áreas de sobrevivência e compartilhamento às margens de um mundo em rápida desintegração.
Por todos os outros, russos e ucranianos, estadunidenses e italianos, sinto apenas uma compaixão desesperada.
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Desertai! Artigo de Franco ‘Bifo’ Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU