23 Março 2022
Como se olhasse a enxurrada de situações que se acumulam em qualquer cidade do mundo em um dia e pudesse relatá-las a partir de uma estrutura puramente filosófica, Paolo Virno escreve para traduzir o principal drama contemporâneo em termos teóricos. Sua palavra no livro Sobre la impotencia. La vida en la era de su parálisis frenética (Tinta Limón) analisa essa força de trabalho que se perde ou que encontra sua realização de forma intermitente, como se fosse um novo esconderijo onde habita o sujeito político desta época.
É na vida precarizada dos entregadores de comida, dos funcionários de um call center e dos múltiplos ofícios que exigem do intelecto e o saber, que o filósofo italiano identifica uma impotência de fazer e de sofrer (ou seja, de receber a dor de suportar o inaceitável) que tem o nome supremo de adaptação.
A impotência a que se refere o título convive com a potência (inclusive, é seu excesso que gera uma inquietação exaltada) separada de seu valor de uso. Uma potência que não consegue se articular na realização de atos.
Virno constrói seu discurso a partir da etimologia. Vai aos gregos para rastrear a substância da tragédia contemporânea. Graças a Aristóteles, entende que temos a potência, mas não somos essa potência. Na distância entre possuir uma faculdade que não funda identidade e a concretização dessa potência em um trabalho permanente, a impotência se assenta e se expande na capacidade de suspender.
Mas esse diagnóstico, que na concentração ao texto pode provocar uma dolorosa identificação, se manifesta em um mecanismo que não é definitivo.
A sensibilidade militante, educada na experiência dos movimentos operaístas italianos (um ativismo político que levou Virno à prisão, em 1979, acusado de pertencer às Brigadas Vermelhas), impulsiona este semiólogo, centrado na crítica da organização do trabalho, a não ficar preso na sucessão de paixões tristes, de estados que se transformam em hábitos como se aí se tramasse uma revolta sempre adiada.
O autor italiano retoma o conceito de instituição como um sistema que promove um deslocamento para a instância pública de uma potência relacional. A instituição como uma “ferramenta sem aura” pode conferir um valor a essa multidão precarizada, extirpando a forma institucional estatal para transformá-la em arma de autonomia. Imaginar que ela abriga um contrapoder, uma nova matriz de governo nas condições atuais, é uma interpretação sobre a qual Virno não responde diretamente, durante esta entrevista concedida por e-mail, como uma forma de deixar em aberto uma escrita que não pretende ser definitiva.
A entrevista é de Alejandra Varela, publicada por Clarín-Revista Ñ, 21-03-2022. A tradução é do Cepat.
A impotência contemporânea, como uma potência que não se materializa em atos, é uma força de trabalho que não se usa ou que se usa a partir do emocional, a partir do estado que gera como hábito?
A grande descoberta filosófica de Marx foi o conceito de força de trabalho. Em uma definição sucinta: O conjunto de potências (faculdades, capacidades) que cada membro de nossa espécie possui em relação à produção. Potências de todos os tipos: físicas, emocionais, intelectuais, separadas dos atos correspondentes, ainda não realizados, mas que possuem uma existência mundana e concreta no corpo vivo do entregador ou de uma telefonista de call center.
Categoria que percorre toda a filosofia ocidental, a Dynamis (potência) de Aristóteles se encarna na mercadoria-força de trabalho. É nesta mercadoria que a faculdade de linguagem, a pura e simples capacidade de dizer, adquire a importância que costuma corresponder aos fatos empíricos.
O capitalista adquire a força de trabalho, ou seja, o conjunto de faculdades e capacidades do entregador ou da telefonista, como potência cindida dos atos. Então, no processo produtivo, realiza esse poder em seu próprio benefício. O operário e a telefonista não são impotentes por carecerem de potência, mas porque não governam em nada a aplicação da potência de que dispõem.
Qual é a grande novidade das últimas décadas? Desapareceu uma clara divisão entre a vida e o trabalho, entre as formas como nos orientamos no mundo, falando, estudando, amando e a produção direta. Pode-se dizer que o tempo de trabalho, hoje em dia, é uma modesta parte do tempo total de produção.
Então, a impotência da força de trabalho se estende a todo o tempo da vida. Acumulamos e gerimos todos os tipos de habilidades (pensemos nos estágios e nos cursos de atualização) sem nunca passar de um treinamento interminável à execução efetiva, decidida por nós.
A adaptação é a palavra que está por trás da impotência de sofrer?
Sim, adaptação é a palavra certa. A adaptação ininterrupta a tudo o que acontece é a máscara que leva à impotência de receber. Ouve-se dizer que o trabalho precário é dúctil, flexível, acostumado a não ter hábitos. Quando se escuta isso, parece que a potência de receber conhece uma verdadeira idade de ouro, sendo realizada por todos, a todo momento.
Não é assim. A adaptação caminha de mãos dadas com a atrofia da ética da recepção. O culto à flexibilidade e o “treinamento ininterrupto” acoberta essa atrofia. Impotente ao mais alto grau é alguém flexível.
As ações negativas estão repletas de efeitos, portanto, possuem um valor político. No conceito de instituição, há uma vontade de se apropriar dessas ações negativas, assim como o operário tinha que se apropriar dos meios de produção?
Chamamos de ações negativas aquelas que consistem em não fazer algo. Por exemplo: renúncia, omissão, adiamento, silêncio, evasão. Essas ações têm muito em comum com os enunciados negativos, pois eles também suspendem um evento, um estado de coisas, mas não o substituem por outro.
As ações negativas introduzem espaços em branco ou bolhas de inatualidade em nossa existência. Contribuem para moldar a trama de nossa práxis. No entanto, o que acontece quando a impotência se espalha? A renúncia e a omissão, não mais circunscritas e provisórias, tornam-se a regra. A passagem da potência ao ato aparece sistematicamente suspensa.
Você sempre se rende. Renuncia-se sempre, novamente, à realização de nossa capacidade ou faculdade. A impotência aproveita um recurso da prática humana, abolindo todos os limites de seu uso. Quem desejar resistir à renúncia sistemática de atuar e receber deve lembrar que a renúncia em si mesma é um ingrediente de nossas ações e de nossa recepção.
Não acredito que a impotência de hoje seja derrotada simulando uma repentina vocação a decidir. Mais realista e mais eficaz é pressionar a renúncia e a omissão até o ponto de aplicar a elas mesmas, para renunciar à renúncia, para omitir a omissão. Em outras palavras, não é necessário contrastar a afirmação com a negação, ao contrário, é necessário desenvolver uma negação da negação.
Mas como transformar essa multidão precária, dispersa, em uma forma coletiva, em uma instituição?
O trabalho precário, que hoje sofre sua própria impotência, é sobretudo um trabalho cognitivo e linguístico. Para usar a bela expressão de Marx, é uma lasca desse intelecto geral que se tornou a principal força produtiva do capitalismo maduro.
O trabalhador precário individual tem por trás de si uma densa rede de relações comunicativas, um conhecimento coletivo, um “mundo de vida compartilhado” com uma multidão de semelhantes.
A greve do trabalhador precário não pode nascer no lugar do trabalho ocasional. Em todo caso, lança raízes nos espaços das cidades onde as pessoas buscam um trabalho e, de passagem, fazem amizades e vivem experiências muito mais interessantes do que em qualquer trabalho assalariado.
A impotência tem a ver com a redução do hábito como atividade ao hábito como estado. Isto se traduz, hoje, em estar disponível e exercer esta disponibilidade?
Quando dizemos que temos faculdades e capacidades (por exemplo, a memória ou a capacidade de tocar o violino), estamos dizendo que não somos um com elas. Ter uma potência implica um desprendimento dessa potência, e esse desapego tem que ser habitado, utilizando muitas formas diferentes.
Viver no desapego que nos separa de nossas habilidades abre espaço para dois tipos de hábitos muito diferentes: o hábito de administrar a própria potência, de cuidar e mantê-la pronta. Predominam o treinamento e a formação. O outro tipo de hábito é o uso, ou seja, colocar em prática as próprias faculdades.
O hábito como administração e o hábito como uso podem coexistir ou se separar. Em nossa época, separaram-se. A impotência contemporânea coincide com a ampliação do hábito administrativo em detrimento do hábito de execução.
Em relação à performance como um protótipo que não inaugura nenhuma série, podemos encontrar aí um valor de autoria?
Receio que a performance seja um mito, um desses mitos que escondem e prolongam a impotência. É verdade que a performance, diferente do trabalho na linha de montagem, não tem predecessores, nem herdeiros. Contudo, sua singularidade está ao alcance de qualquer animal humano. É uma exceção do mesmo nível do descumprimento de uma lei de trânsito.
A performance é um ato sobrevivente, ou seja, um ato que sinaliza e estabelece a impossibilidade de traduzir regularmente a faculdade e as capacidades que se possui em atos apropriados. Há algo em comum entre a performance, com seu imaginário “direito autoral”, e as “rebeliões resignadas” sobre as quais falou Jean Améry.
Nos dois casos, confirmamos, com uma patética busca de efeitos teatrais, o bloqueio para agir que nos aflige. A impotência não deve ser concebida como um tempo vazio em que nada acontece. Está cheia de iniciativas frenéticas, papéis fictícios, passatempos esgotadores. O impotente, além de desesperado, é alguém ocupado.
De Nápoles (1952), Itália, Paolo Virno estudou filosofia na Universidade de Roma La Sapienza, nos anos 1970. Na época, também se uniu aos movimentos operaístas. Em 1993, começou a lecionar filosofia na Universidade de Urbino e, desde 1996, é professor na Universidade de Montreal.
De volta à Itália, ocupou a cátedra de Filosofia, na Universidade de Cosenza (Calábria), e a cátedra de Filosofia e Teoria da Linguagem, na Universidade de Roma.
Entre seus livros, estão Gramática da Multidão: Para Uma Análise das Formas de Vida Contemporâneas [em português], Ambivalencia de la multitud: Entre la innovación y la negatividad e El recuerdo del presente: Ensayo sobre el tiempo histórico.
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“O impotente, além de desesperado, é alguém ocupado”. Entrevista com Paolo Virno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU