O novo governo contará com uma primavera de apoio e esperança. As propostas programáticas de Boric são modestas, insuficientes sobre as demandas da rebelião social. Seu êxito dependerá da participação popular e, sobretudo, de que se aprove a nova Constituição.
O artigo é de Marcelo Solervicens, publicado por Alai, 14-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em 11 março, Gabriel Boric, de 36 anos, assumiu a presidência ante o povo e os povos do Chile destacando assim o caráter plurinacional do Estado chileno. Seu gabinete ministerial com a maioria de mulheres enviou a mensagem de um governo feminista, aberto à institucionalização dos direitos das mulheres. O presidente da esperança insiste que seu projeto é resolutamente socialdemocrata. O certo, é que o novo governo de Apruebo Dignidad rompeu com o duopólio que compartilhou o poder nos últimos trinta anos. E por isso a arrasadora vitória de Apruebo Dignidad em 19 de dezembro de 2021 conteve o giro ultradireitista do Chile a favor de José Antonio Kast e possibilita a mudança da constituição.
Destaquemos o juramento de Fabiola Campillai, senadora independente, pelas emblemáticas vítimas da repressão do governo de Sebastián Piñera. Pois o novo governo herda um país com presos políticos da rebelião e dívidas de reparação para as vítimas. Enquanto a Convenção Constitucional redige uma nova carta magna, a qual teve guerra declarada pela direita e seus meios de comunicação.
Boric herda um país com tropas na Araucanía e sem diálogo plurinacional. Com estado de emergência e xenofobia no Norte por uma crise migratória gerada pelo governo que se encerrou. Com instituições estatais desprestigiadas por fraudes institucionais e uma classe política sem legitimidade. Ainda, recebe um país com desigualdades sociais e econômicas agudizadas pela pandemia; com um esgotamento do modelo neoliberal extrativista, a seca e com zonas de catástrofe.
Em condições em que não tenha maioria no Congresso, acreditamos que o sucesso do novo governo dependerá do apoio e da participação popular, mas, sobretudo, da aprovação da Nova Constituição. Uma derrota de início no plebiscito deixaria Boric com a temida síndrome do “pato manco”.
Como outros governos desde 1990, o presidente Gabriel Boric não tem maioria suficiente no Congresso para realizar seu programa. Em condições normais, enfrentaria os mesmos problemas dos governos anteriores da Concertación ou Nueva Mayoría.
O novo presidente argumenta que a firmeza de suas convicções e sua grande capacidade de diálogo o ajudarão. Vale a pena notar que ele ainda não cometeu nenhum erro. Seu gabinete é composto principalmente por mulheres. Pela primeira vez na história do Chile, o Ministério do Interior é chefiado por uma mulher, a médica-cirurgiã Izquia Siches. Seu governo tem a força simbólica de ser feminista e de abrir perspectivas de finalmente avançar no reconhecimento institucional dos direitos das mulheres.
Além disso, sua equipe de governo representa uma resoluta ruptura geracional com a classe política dos últimos trinta anos e abraça os desafios do século XXI, como o enfrentamento das mudanças climáticas.
A predominância de membros da coalizão Apruebo Dignidad e a ausência da Democracia Cristã no governo confirmam a mudança no ciclo político em relação aos governos da Concertación ou da Nueva Mayoría. Ao mesmo tempo, a nomeação de cinco ministros socialistas no gabinete sinaliza a possível formação de um bloco pelo Socialismo Democrático, pela socialdemocracia ou pelo Estado de Bem-Estar Social.
O gabinete também conta com vários independentes que dão um perfil pragmático ao novo governo. De fato, a nomeação da independente Antonia Urrejola nas Relações Exteriores deixa claro o distanciamento do governo das experiências de Cuba ou Venezuela e Nicarágua, evitando o confronto com a Casa Branca. Além disso, a nomeação de Mario Marcel, presidente cessante do Banco Central no governo de Piñera, como Ministro da Fazenda, busca tranquilizar o establishment econômico enviando uma mensagem de continuidade, estabilidade e previsibilidade.
A decisão de retirar as 139 denúncias da Lei de Segurança do Estado contra os presos políticos da rebelião e a formação de uma mesa de reparação, para as vítimas, constitui outra importante mensagem simbólica. Desta vez para o povo mobilizado. Embora o problema do perdão dos presos políticos da rebelião persista, ele estabelece um terreno de abertura. O reconhecimento do direito de manifestação pública em uma sociedade democrática anuncia uma mudança no ciclo de relações entre o Estado e a sociedade.
O novo governo terá uma primavera de apoio e esperança popular. Há também um relativo consenso de que, desde sua eleição, Gabriel Boric não cometeu erros que colocaram em xeque sua inegável popularidade. Por enquanto, ele conseguiu contornar o julgamento da opinião pública com uma série de gestos simbólicos. Assim, ele rebateu a odiosa campanha negativa contra ele na mídia controlada pela direita.
Um teste decisivo será a capacidade de manter unida a Apruebo Dignidad, apesar das divergências óbvias na aliança. Desentendimentos que foram resolvidos, até agora, com a entrega de um forte poder de decisão ao presidente. Mas há dificuldades, não só no governo, mas também no novo congresso, além da Convenção Constitucional.
Já foi assinalado que o segundo programa de governo, adaptado para o escrutínio presidencial de 19 de dezembro, não é, de forma alguma, um ambicioso projeto de refundação. A ideia inicial de desneoliberalizar o Chile, presente nas declarações de Boric em julho passado, foi abandonada.
Não que essas propostas tenham sido abandonadas pelo setor. A verdade é que a ressurreição da ideia de que o neoliberalismo nasceu e vai morrer no Chile depende da proposta de uma Nova Constituição, máxima em julho, conforme estabelecido pela Lei 21.200.
As propostas programáticas de Boric são modestas; insuficiente em relação às demandas da revolta social. É pragmático. Considera que, como os governos de Bachelet ou Lagos, não possui as maiorias qualificadas necessárias na Câmara dos Deputados e no Senado para fazer mudanças nas leis constitucionais e romper o cadeado neoliberal da atual constituição.
No entanto, a evidência de que as mudanças mais importantes dependem da nova Constituição dá tempo a Boric e à coligação Apruebo Dignidad. O rascunho da nova Constituição está previsto para julho e o plebiscito possivelmente em setembro ou outubro.
O novo governo prometeu apoiar, mas não se intrometer no trabalho da Convenção Constitucional. Ao contrário dos ataques feitos pelo governo Piñera. O desafio é que depois de julho, Boric facilite o triunfo da aprovação do novo texto constitucional na saída do plebiscito.
Alguns acreditam que ele não deve vincular seu governo ao resultado do plebiscito de saída. Certamente, a prática tradicional da realpolitik chilena justifica os temores de que essa seja sua escolha. A convenção já sofre o fogo cruzado da direita política e econômica e de novos referentes como os Amarelos, dos Republicanos de Kast: todos eles estão embarcados na campanha pela rejeição do plebiscito. Eles o consideram o principal problema do governo Boric, é o que aponta o ideólogo de direita Carlos Peña.
A verdade é que, se a rejeição vencer, o governo sofrerá uma crise de legitimidade e sua falta de maioria no Congresso fará com que, na melhor das hipóteses, seja um melhor administrador do modelo neoliberal do que os governos dos últimos trinta anos.
Outros de nós são da opinião contrária que Boric deve ser jogado para aprovação na saída do plebiscito. Só então ele presidirá uma verdadeira transformação. Além disso, porque transformar a Constituição em leis será a próxima tarefa-chave do governo e do novo Congresso.
É uma obviedade dizer que os desafios do governo Gabriel Boric vêm da herança envenenada do governo Piñera e dos últimos “30 anos”.
Piñera presidiu “um dos piores, senão o pior governo da história”, segundo a porta-voz do governo Camila Vallejo. Um legado em ruínas. Há consenso sobre o fraco equilíbrio de seu mandato mesmo em setores da direita. Em um estilo que o caracteriza, Sebastián Piñera destacou as conquistas de seu primeiro governo em uma transmissão nacional obrigatória final. Assessorou o novo governo e criticou inequivocamente a Convenção Constitucional que redigiu a nova Constituição.
A verdade é que os melhores momentos nunca chegaram. Seu governo terminou, para todos os efeitos práticos, em outubro de 2019. Se sobreviveu, foi por uma estratégia inédita de intransigência repressiva, típica dos anos Pinochet, com violações sistemáticas de direitos humanos. Termina seu mandato com forças armadas, carabineros (polícia militar) e a PDI (polícia investigativa) sumidas na corrupção, com a transformação em conflito desatado na macrozona sul e com um estado de emergência no norte.
Apesar de duas acusações constitucionais, uma acusação perante o Tribunal Penal Internacional por violações de direitos humanos, questionamentos sobre sua probidade devido às revelações dos Pandora Papers e uma rejeição muito alta nas pesquisas, Piñera tem como sua única conquista real, ter sobrevivido graças ao apoio infalível do chamado partido da ordem até que seu governo terminasse impunemente e sem fazer concessões às demandas do movimento social.
É assim que a mudança de comando é acompanhada por um Estado de Emergência (ECCE) na Macrozona Sul, devido a uma grave alteração da ordem pública que afeta as províncias de Biobío, Arauco, Cautín e Malleco. Isso foi estendido nove vezes desde 12 de outubro de 2021, sem grandes resultados.
A verdade é que, em vez de resolver o chamado conflito histórico na Araucanía, o governo de Sebastián Piñera o exacerbou. O jornal Ciper revelou as circunstâncias inaceitáveis do assassinato impune, pelo chamado Comando Jungla (Selva), do membro da comunidade mapuche Camilo Catrillanca em 14 de novembro de 2018. Ele ocorreu na exacerbação da criminalização e série de assassinatos de mapuche que lutavam por seus direitos ancestrais.
Em 23 de fevereiro, o Infogate anunciou a aprovação pelo Senado da extensão do estado de emergência para além do governo Piñera. A ordem pública na região da Araucanía e parte da região de Biobío está sob o controle das Forças Armadas.
Por trás do conflito está a recusa de Piñera ao diálogo e o firme apoio ao extrativismo florestal. Certamente, é um conflito histórico; que questiona os mitos da singularidade chilena. Um conflito que se agravou durante a ditadura de Pinochet e não foi resolvido desde 1990, apesar das promessas.
O legado do governo Piñera na Araucanía é um beco sem saída. Embora o novo governo prometa não renovar o estado de emergência, a tarefa de iniciar um diálogo na região é mais desafiadora. As forças de direita se opõem a qualquer diálogo que reconheça os direitos ancestrais da nação mapuche e o exercício da Convenção 169 da OIT.
A esta situação de convulsão não resolvida, foi adicionada uma zona de emergência na macrozona Norte, desde 15 de fevereiro. Nas províncias de Arica, Parinacota, Tamarugal e Loa. Uma legislação de medida especial se estendeu até 17 de março. Este é o produto de uma crise migratória sem precedentes, com surtos de xenofobia. A interferência e várias outras análises ligam o fluxo maciço de migrantes ao convite irresponsável de Piñera em Cúcuta, Colômbia, em fevereiro de 2019.
A verdade é que o fluxo migratório não foi tratado de acordo com as normas internacionais que favorecem a integração, como exige o Pacto Global para as Migrações da ONU, do qual o governo Piñera se retirou em 2018. Foi assim que a lei restritiva da migração acabou promovendo a clandestinidade migração, originando a crise atual de acordo com observadores estrangeiros como a Deutsche Welle. No início de fevereiro, Boric declarou: “O Chile precisa retomar o controle de suas fronteiras”. Não está claro qual será o caminho.
Soma-se a isso as consequências das violações de direitos humanos amplamente documentadas, produto da intransigência repressiva do governo cessante. Piñera não hesitou em declarar guerra contra seu próprio povo. Diante da mobilização social iniciada em 19 de outubro e da massiva manifestação pacífica em 25 de outubro de 2019, Piñera, a repressão dos carabineiros não foi suficiente, Piñera trouxe o exército pela primeira vez desde 1990 para reprimir o povo mobilizado. Pouco mais de dois anos após a eclosão social, prevalece a impunidade dos agentes estatais e do governo Piñera nessas violações de direitos humanos.
Como resultado da repressão e da ineficiência do parlamento, as centenas de pessoas cegadas por tiros disparados por policiais não recebem a devida reparação. Muitos presos políticos permanecem detidos à espera de perdão ou sem o devido processo. Isso enquanto reina a impunidade ou o tratamento preferencial de criminosos e corruptos com uniformes ou colarinhos e gravatas de todos os tipos.
Diante do adiamento da lei do indulto no governo cessante, a primeira ação do governo foi cumprir sua promessa de retirar as 139 denúncias da Lei de Segurança do Estado, contra os presos da explosão e prometeu criar uma tabela de indenizações para as vítimas.
Como o o último Senado não aprovou finalmente a lei do perdão, conforme solicitado por Boric em janeiro. No momento, ele não tem escolha a não ser pressionar o novo Congresso a fazê-lo. O problema é que no novo Congresso, Boric não tem maioria suficiente.
As violações de direitos humanos sob o governo de Sebastián Piñera apontaram para a necessidade de uma profunda refundação dos Carabineros. Nada aconteceu. Essas novas violações de direitos humanos se somaram à dívida da justiça e à reparação insuficiente do Estado chileno com as vítimas da ditadura militar e da justiça na medida do possível.
O jornal mexicano La Jornada destacou que o relatório interno das Forças Armadas. A reflexão sobre a atuação do Exército nos últimos 50 anos reconhece e condena as violações dos direitos humanos pelos militares durante a ditadura de Augusto Pinochet. Um documento que não foi objeto de maior divulgação e debate no Chile. Apesar do progresso, Werkén Rojo afirmou que este relatório omite mais de mil casos de pessoas detidas e desaparecidas.
Há consenso de que as forças armadas e a aplicação da lei estão em crise institucional. Mídias como El Mostrador afirmam que a imagem dos Carabineros está manchada pelas fraudes do chamado Pacogate. O Ciper informa que a PDI não escapa das acusações de fraude. Resumo, entre outros, relatório sobre denúncias recorrentes de peculato e fraude institucional no exército. Os escândalos envolvem a mais alta hierarquia. Três dos quatro comandantes em chefe do Exército, sucessores de Pinochet, foram processados: Óscar Izurieta, Humberto Oviedo e Juan Miguel Fuente-Alba. A informação atravessa fronteiras porque o El País informa que o último comandante em chefe do Exército, general Ricardo Martínez, renunciou antes do fim de seu mandato, quando foi intimado a comparecer pela juíza Romy Rutherford em uma investigação de fraude.
A possibilidade de reformar os carabineros e as Forças Armadas dependerá das mudanças constitucionais e sua eventual entrada na legislação, segundo a deputada Carmen Hertz em declarações ao jornal Uchile.
Como se isso não bastasse, somam-se as consequências de uma pandemia de covid-19 que ainda não terminaram segundo o Ministério da Saúde. Certamente, a pandemia ajudou a moderar o descontentamento social, apesar da queda acentuada do PIB. Mas também serviu para revelar as enormes desigualdades sociais e econômicas da sociedade chilena.
Embora o governo de Sebastián Piñera tenha obtido rapidamente vacinas contra o vírus da covid-19. A falta de apoio aos setores mais vulneráveis revelou as profundas desigualdades econômicas e sociais do modelo neoliberal e extrativista, segundo a revista Science. Por um lado, com surpresa, alguns descobriram a importância desproporcional do setor informal da economia e suas consequências em forçar a quebra dos slogans sanitários para sobreviver, em um país que se acreditava desenvolvido segundo um estudo da CEPAL.
As desigualdades sociais se aprofundaram. De acordo com dados oficiais do INE em agosto de 2021, o salário médio mensal do trabalho era de 635 mil pesos chilenos (aproximadamente 780 dólares). O problema é que 69,4% da população trabalhadora recebia menos que esse valor. Isso revela desigualdades sociais e econômicas profundamente documentadas, que aumentaram no governo Piñera. Vale apontar que de acordo com a BBC, o Chile foi o país da América Latina que em 2021 concentrou o maior nível de patrimônio entre bilionários em relação ao tamanho de sua economia, incluindo o presidente Sebastián Piñera, as famílias Luksic, Ponce Lerou, entre outras.
Vale destacar que o governo de Sebastián Piñera não respondeu a nenhuma das demandas das mobilizações desde outubro de 2019. A única, o processo de mudança constitucional, veio do Congresso. Por outro lado, os três saques especiais das AFPs (fundo previdenciário) os enfraqueceram, mas não houve mudanças estruturais no sistema previdenciário.
À herança recebida pelo novo governo, somam-se problemas endêmicos da sociedade chilena, que a chamada transição não conseguiu resolver. Entre outras, as chamadas zonas de sacrifício que continuam a reinar como consequência da continuidade de um modelo extrativista neoliberal esgotado. De fato, já argumentamos que em vez de iniciar uma transição em 1990, o que realmente aconteceu foi a instalação de um novo sistema político que agora está em crise, mas... ainda não mudou.
O programa do novo governo visa avançar para um Estado de bem-estar social, com medidas como o fim das AFPs, melhoria do acesso ao sistema público de saúde e melhoria da qualidade da educação pública. Propõe-se a imposição de um imposto sobre os super-ricos para financiar essas e outras medidas, como o aumento do salário mínimo. A verdade é que isso vai colidir com a realidade da falta de maioria no Congresso.
Nessa medida, como aponta o novo ministro da Fazenda, Mario Marcel, a proposta de reforma tributária, o plano inclusivo de recuperação do emprego com foco nas mulheres, além de aumentar o salário mínimo para 500 mil pesos chilenos (aproximadamente 616 dólares, na cotação atual), depende de outras reformas, e as promover as reformas depende da capacidade de financiá-las. Em todo o caso, insiste na necessidade de avançar para um Estado de Bem-Estar Social com direitos universais.