"Na guerra, quem é o vencedor? Quem é o herói? Segundo Simone Weil, é a própria força. A força que anestesia a mente dos que usam de violência, a força que esmaga aqueles que sofrem o peso de seus golpes... ambos perecem curvados ao aniquilamento que ela provoca, cada um à sua maneira. A noção de força e a ideia de violência em Simone Weil se relacionam intimamente. A violência, distante da razão, é porta aberta por onde se cristaliza toda forma de injustiça, e ela vai tomando proporções maiores quanto mais aumenta o desequilíbrio das vontades que nos dirigem. Quando elas são desproporcionais, não considerando mais a vida alheia, aí a violência toma corpo e se instaura", escreve Ana Lúcia Guterres Dias, mestranda no programa de Pós-Graduação Filosofia da Unisinos.
Ao mesmo tempo em que o ser humano evolui no seu autoconhecimento, ao mesmo tempo em que reconhece a humanidade que o constitui e a importância de relações que sejam embasadas em uma ética que parta do reconhecimento e do respeito para com o outro, ao mesmo tempo arbitrariamente deparamo-nos com o reverso desta realidade, onde a existência do outro é negada, dominada e dizimada. Apesar de tantos avanços na história da humanidade, vivemos neste momento um retrocesso trágico. Enquanto ainda sangram as feridas de guerras infligidas a tantos povos, mais uma ferida é aberta deixando em suspenso o mundo que a observa, e em desespero os seres humanos que a experienciam.
Diante deste cenário catastrófico da guerra na Ucrânia, queremos trazer uma leitura crítica sobre o tema da guerra a partir da filósofa Simone Weil (1909-1943). Nascida em Paris, Simone Weil teve uma trajetória de vida e filosofia muito intensas, em contraponto com uma existência muito breve. Faleceu com apenas 34 anos, em meio às barbáries da Segunda Guerra Mundial, exilada de seu país, contribuindo com a resistência francesa a partir de Londres, e em sofrimento profundo por não conseguir retornar e lutar ao lado de seus compatriotas. Durante a sua infância, a Primeira Guerra Mundial também a afetou, seja pelo envolvimento que seu pai, médico, teve, seja por ela própria, que na mais tenra idade já se comprometia e se compadecia com o sofrimento alheio. Mas foi na Guerra Civil Espanhola que Simone Weil conheceu de fato a face sombria que uma guerra possui.
Mesmo não sendo a favor da guerra, Simone Weil não conseguiu ficar indiferente, mas decidiu colaborar, comprometer-se de alguma forma. Em 1936, ano em que iniciou a Guerra Civil Espanhola, a filósofa consegue, após muitas tentativas, se engajar e ir para a frente de batalha. Ela queria estar na guerra, ajudar os camaradas, lutar pelos seus ideais republicanos, mas de forma alguma desejava tirar a vida de alguém. Por isto a experiência na guerra lhe deixou cicatrizes profundas, pois o que viu, de crueldades e barbárie, nenhum relato conseguiria contemplar. Ela atuou na frente de batalha, portando um fuzil, que por sorte, não precisou usar. Na sua Lettre à Georges Bernanos (1938), publicada na primeira parte dos Écrits historiques et politiques, (1960a), Simone Weil se refere à algumas histórias que ouviu e viu durante a Guerra, fatos que a impactaram, e a faziam reagir de forma avessa aos que ali estavam com ela, como uma história que um camarada lhe contou em que dois padres haviam sido presos, sendo um morto na presença do outro, com um tiro de revólver, e ao que ficou vivo, após lhe dizerem para ir embora, e este tendo dado alguns passos, o abateram também. Simone Weil relata que aquele que a contou tal história ficou muito surpreso por não vê-la rir. (WEIL, 1960a, p.181).
A filósofa vai compreendendo ali, no campo de batalha, algo que antes não lhe havia sido possível enxergar: a crueldade pela qual se matava pelo simples fato de matar. Ela via por meio das atitudes de seus camaradas, a forma vã pela qual tiravam a vida de tantas outras pessoas, sem escrúpulos, mas movidos pelo prazer de matar. Assim, ela vê as ações nada honrosas que o ser humano é capaz quando está em jogo garantir a aparência da virilidade, esta armadura que mascara o ser humano por fora, mas que também o agita por dentro, podendo-o levar ao extermínio da vida alheia. Ao mesmo tempo ela fala de uma embriaguez que se apossa do ser humano, uma embriaguez que lhe tira a consciência, que parece lhe fazer perder o senso de humanidade, de racionalidade e lhe lança em uma estupidez brutal.
Simone Weil dedicou-se ao tema da guerra em diversos escritos. Conforme sublinhamos, além da própria experiência na Guerra Civil Espanhola, ela viveu no mesmo momento histórico em que se abateram sobre a humanidade os dois grandes conflitos mundiais, a Primeira e a Segunda Guerra. Esses fatos influenciaram profundamente as suas reflexões. Em 1933 escreve o texto Réflexion sur la guerre, publicado na segunda parte dos Écrits historiques et politiques, (1960b), em que faz uma leitura da guerra na qual vê a relação de opressão presente de forma mais intensa ainda do que a analisada nas relações de trabalho. Na guerra é a própria vida que se perde, e este preço surreal que pagam aqueles que têm a vida dizimada é cobrado pelo mecanismo militar vigente, que atua conforme as leis do capitalismo. É um engano, de acordo com o texto da filósofa, pensar que na guerra moderna o povo que foi à luta tem o controle da situação nas mãos, no sentido de ser protagonista da batalha. Ela afirma que na produção ou na guerra impera o controle às massas, elas, a sua força, são manipuladas conforme as decisões daqueles que estão no comando, da mesma forma como ocorre na economia. Simone Weil adverte para o fato de que é preciso descobrir como evitar o controle desse mecanismo todo sobre as massas, quer se trate da produção ou da luta.
Simone Weil analisa a noção de força dentro do tema da guerra, especificamente em seu texto L’Iliade ou le poème de la force (1940-1941). Neste texto, em que a filósofa reflete sobre o poema de Homero, A Ilíada, se sobressai o resgate da noção de força, já desenvolvida em textos anteriores. Esta é uma categoria que perpassa o desenvolvimento filosófico de Simone Weil e vai maturando na medida em que ela mesma vivencia a forma com a qual a força age na sociedade, e também as consequências existentes quando a força está no comando, dominando e submetendo aqueles que estão sob seus pés. O ser humano guiado pela força perde a sua capacidade racional, e é arrastado conforme as forças da natureza arrastam, não levando em consideração a vida alheia, mas submetendo-a, dominando-a, e no auge de sua ação, transformando a outra pessoa em coisa.
Os que submetem os outros estão sob o efeito de uma embriaguez que lhes sequestra a razão. Embriaguez esta que ela própria havia se deparado na Guerra Civil Espanhola. Até os soldados, diz ela, que são livres e estão armados, sofrem penas da força exercida por seus superiores. A força triunfa naqueles que submetem os outros sem a menor compaixão, devido à embriaguez na qual estão. Perderam a capacidade de racionar decidindo pelo que é o bem do outro, e no caso da Ilíada (assim como hoje), matam, escravizam, humilham, como se isto fosse algo natural. Diz a filósofa que: “Onde o pensamento não tiver lugar, nem a justiça nem a prudência o terão. Eis por que esses homens armados agem dura e loucamente.[1]” (WEIL, 2004b, p. 10). Esses homens que julgam serem portadores da força ilimitada, estão enganados, pois ela tem limites. Quem vence hoje, pode perder amanhã, esse é o jogo por onde uns e outros transitam. Esse é o compasso da Ilíada. Esse é o compasso que faz girar a própria roda da vida. Só que o vencedor se esquece disso e se sente invencível. O que se faz necessário, diz ela, é um uso moderado da força, ainda que isso exija uma virtude rara. O que dificulta isto é a vontade do ser humano, de querer sempre mais.
Na guerra, quem é o vencedor? Quem é o herói? Segundo Simone Weil, é a própria força. A força que anestesia a mente dos que usam de violência, a força que esmaga aqueles que sofrem o peso de seus golpes... ambos perecem curvados ao aniquilamento que ela provoca, cada um à sua maneira. A noção de força e a ideia de violência em Simone Weil se relacionam intimamente. A violência, distante da razão, é porta aberta por onde se cristaliza toda forma de injustiça, e ela vai tomando proporções maiores quanto mais aumenta o desequilíbrio das vontades que nos dirigem. Quando elas são desproporcionais, não considerando mais a vida alheia, aí a violência toma corpo e se instaura.
As reflexões de Simone Weil sobre a guerra podem servir hoje para que se construam outros cenários onde a força possa ser equilibrada, assim rompendo o seu rastro de violência, injustiças e catástrofes. Em seu texto Ne recommençons pas la guerre de Troie, de 1937, apesar do cenário realista e escasso de otimismo que Simone Weil expõe, ainda assim existe uma tênue possibilidade de que se possa construir a paz. Diz ela: “Como de fato nem sempre houve guerra, não é impossível que haja paz indefinidamente[2]”. (WEIL, 1960b, p. 46).
L’iliade ou Le poème de la force. Publié dans les cahiers du sud (Marseille), de décembre 1940 a janvier 1941 sous le nom de Émile Novis. Éditions du groupe ebooks libres et gratuits, 2004b. E-book. Disponível aqui. Acesso em: 03 de abril de 2020
Oeuvres complètes. Tome II: Écrits historiques et politiques. Vol 1. Première partie: Histoire. Paris, Gallimard, 1960a.
Oeuvres Complètes. Tome II: Écrits historiques et politiques. Vol 2. Deuxième partie : Politique. Paris, Gallimard, 1960b.
[1] WEIL, Simone. Oeuvres complètes. Tome II: Écrits historiques et politiques. Vol 2. Deuxième partie: Politique. Paris, Gallimard, 1960b, p. 10. Cf. texto original: “Où la pensée n'a pas de place, la justice ni la prudence n'en ont. C'est pourquoi ces hommes armés agissent durement et follement”. (tradução nossa).
[2] Ibidem, p. 46. Cf. texto original: “Puisque en fait il n'y a pas toujours guerre, il n'y a pas impossibilité à ce qu'il y ait indéfiniment la paix”. (tradução nossa).