10 Março 2022
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia “está se tornando uma guerra mundial de um novo tipo. Um hiperconflito híbrido que neste momento, em seu aspecto militar, está se desenrolando em um teatro específico e local: o território da Ucrânia. Mas que em todas as outras frentes – política, econômica, financeira, monetária, comercial, midiática, digital, cultural, esportiva, espacial etc. – transformou-se em uma guerra global e total”. A análise é de Ignacio Ramonet, em artigo publicado por Página/12, 09-03-2022. A tradução é do Cepat.
Em nosso mundo globalizado e interconectado, um conflito da envergadura de uma guerra na Ucrânia obviamente tem consequências planetárias. Desde o início das hostilidades, em 24 de fevereiro, as duas hiperpotências nucleares do planeta iniciaram uma queda de braço muito perigosa. Washington, a União Europeia, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e todos os seus aliados – incluindo as megacorporações digitais GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft) – prometeram agora, em resposta à invasão da Ucrânia, esmagar a Rússia, isolá-la e desmembrá-la. Consequência: isso está se tornando uma guerra mundial de um novo tipo. Um hiperconflito híbrido que neste momento, em seu aspecto militar, está se desenrolando em um teatro específico e local: o território da Ucrânia. Mas que em todas as outras frentes – política, econômica, financeira, monetária, comercial, midiática, digital, cultural, esportiva, espacial etc. – transformou-se em uma guerra global e total.
A América Latina não é um ator relevante no cenário em que ocorrem as principais tensões geopolíticas ligadas ao conflito Rússia-Ucrânia. Exceto em suas relações com Cuba, Venezuela e Nicarágua, Moscou não tem, nem remotamente, a influência na região que Washington sempre teve e que Pequim alcançou recentemente. Por exemplo, em 2019, para se ter uma ideia, a América do Sul exportou bens e serviços no valor de 66 bilhões de dólares para os Estados Unidos e 119 bilhões para a China, mas apenas 5 bilhões para a Rússia.
Obviamente, como para o resto do mundo, essa nova situação global tem impacto na América Latina e no Caribe, especialmente por suas repercussões econômicas. Os preços de todas as matérias-primas de que a Rússia e a Ucrânia são importantes produtores dispararam, em particular o petróleo e o gás, mas também vários metais: alumínio, níquel, cobre, ferro, néon, titânio, paládio etc.; alguns produtos alimentícios: trigo, óleo de girassol, milho... e também os fertilizantes. Todos os países importadores desses insumos serão fortemente afetados.
Em um cenário global de inflação crescente, esses aumentos de custos contribuirão para um aumento acentuado dos preços em algumas nações, muito particularmente nos transportes, eletricidade, pão e outros gêneros alimentícios. Nas sociedades latino-americanas que acabam de ser duramente atingidas pelas consequências da pandemia de Covid, não é impossível, portanto, que protestos populares ocorram em vários países contra o aumento do custo de vida. Por outro lado, os Estados exportadores de hidrocarbonetos, minerais ou cereais – por exemplo, Venezuela, Chile, Peru, Bolívia, Argentina ou Brasil – serão beneficiados pelo atual aumento significativo dos preços.
As novas sanções impostas a Moscou e o fechamento do espaço aéreo em todo o Atlântico Norte aos aviões russos também afetarão, em particular, as potências turísticas do Caribe, em particular Cuba e a República Dominicana. Para ambos os países, a Rússia foi em 2021, respectivamente, o primeiro e o segundo emissor de turistas. A guerra na Ucrânia pode fazer com que percam, este ano, cerca de 500 mil visitantes e bilhões de dólares...
Ultimamente, Moscou tratou de aproximar-se da região de várias maneiras, inclusive por ocasião da crise sanitária durante a pandemia de Covid-19. Quando as nações ricas monopolizaram as vacinas, o Kremlin soube responder de imediato: a Sputnik V foi a primeira vacina a chegar (embora não de graça) na Argentina, Bolívia, Nicarágua, Paraguai e Venezuela. No aspecto geopolítico, há anos Vladimir Putin tem a capacidade de dar apoio político e diplomático aos governos da região retaliados por Washington, como os da Venezuela, Cuba e Nicarágua, que, como parte de sua estratégia de resistência às medidas estadunidenses, intensificaram as relações com a Rússia, inclusive do lado militar.
Recordemos que, quando a tensão aumentava nas semanas que antecederam a guerra, houve aquelas declarações do vice-chanceler russo, Sergei Ryabkov, que não descartou um destacamento militar em Cuba e na Venezuela como resposta à política de Washington na Ucrânia. O conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos, Jake Sullivan, respondeu que, se a Rússia avançasse nessa direção, os EUA lidariam com isso de forma decisiva.
Nesse sentido, o presidente da Colômbia, Iván Duque – único país latino-americano com status de sócio extracontinental da OTAN –, durante sua recente visita à sede da Aliança Atlântica, em Bruxelas, expressou sua preocupação com o aprofundamento da cooperação entre a Rússia e a China, incluindo seu apoio à Venezuela. E declarou dias depois que esperava que a assistência militar da Rússia à Venezuela não fosse usada para ameaçar a Colômbia... O chanceler russo, Sergey Lavrov, por sua vez, declarou que Moscou fortalecerá sua cooperação estratégica com Venezuela, Cuba e Nicarágua em todas as áreas.
Nos dias que antecederam o início da guerra, Putin recebeu sucessivamente no Kremlin, com muita cordialidade, dois importantes líderes sul-americanos: Alberto Fernández, da Argentina, e Jair Bolsonaro, do Brasil. O primeiro ofereceu ao presidente russo que seu país fosse a porta de entrada de Moscou para a América Latina... Putin respondeu que a Argentina deveria deixar de ser um satélite de Washington e deixar de depender do Fundo Monetário Internacional (FMI). Para Bolsonaro, o presidente russo propôs a construção de várias usinas nucleares e a revitalização de uma aliança tecnológica entre os dois países em áreas de ponta como biotecnologia, nanotecnologia, inteligência artificial e tecnologia da informação.
Dias depois, a Rússia invadiu a Ucrânia... Vários presidentes latino-americanos – especialmente o presidente Nicolás Maduro, da Venezuela – declararam entender a exasperação de Moscou diante das constantes provocações dos Estados Unidos e da OTAN. Mas nenhum país da região se alinhou incondicionalmente com as posições do Kremlin. Todos, em última instância, de uma forma ou de outra, incluindo Cuba, Venezuela e Nicarágua, defenderam o direito internacional, a Carta das Nações Unidas e defenderam um entendimento diplomático para resolver a crise por meios pacíficos e diálogo efetivo que garanta a segurança e a soberania de todos, bem como a paz, a estabilidade e a segurança regional e internacional.
Apesar da intensa atividade diplomática demonstrada pelo presidente Putin para expor seu ponto de vista, em conversas telefônicas diretas com diferentes líderes latino-americanos, quando chegou a hora da verdade, no dia 02 de março, na Assembleia Geral da ONU, por ocasião da votação de uma resolução condenando a invasão da Ucrânia, a Rússia parecia singularmente isolada. Apenas quatro Estados no mundo (Bielorrússia, Síria, Coreia do Norte e Eritreia) apoiaram sua guerra contra Kiev. Na América Latina não pôde contar com um único voto favorável.
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O conflito entre a Rússia e a Ucrânia está se transformando em uma guerra mundial de novo tipo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU