10 Março 2022
O pesadelo na Ucrânia continua levantando questões morais para o Ocidente. No tempo em que políticos tendem a marcar posição e aderi-las mesmo diante de novas informações – como visto nas medidas de saúde pública nos últimos dois anos – é vital que estejamos mais ágeis em nossas avaliações éticas e permitamos a eles que informem as opções militares e humanitárias disponíveis.
O comentário é de Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 09-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O presidente Joe Biden insiste que os EUA não enviarão tropas para a Ucrânia, embora nós enviemos mais tropas a países vizinhos da OTAN para reforçá-los e impedir Vladimir Putin de pensar em invadir outro país vizinho. O presidente também recusou o pediu da Ucrânia de uma zona de exclusão aérea sobre o país: esse seria um ato de guerra e arriscaria uma escalada do conflito.
É doloroso recusar um pedido de ajuda aos bravos ucranianos. E isso custa que falcões da guerra, como o senador Roger Wicker do Mississipi, a cobrarem da OTAN a estabelecerem a zona de exclusão aérea. Mas isso poderia custar ao resto do mundo, incluindo aos ucranianos, um grande problema se o conflito escala. As forças armadas de Putin estão aparentemente amarradas na Ucrânia. O comboio de 60km no norte de Kiev está parado há uma semana. Qualquer escalada forçaria Putin a considerar opções nucleares, uma prospecção horrível de contemplar. Analistas no Pentágono precisam contemplar tais cenários e trabalhar muito duro para evitá-los.
Os EUA não estão atados a um tratado de assistência à Ucrânia, embora nós prudentemente enviamos-lhes muitas armas conforme podemos. Eu esperava que Biden repetisse as palavras de Franklin Delano Roosevelt em 1940, quando as democracias europeias também foram ameaçadas por um ditador. “Digamos às democracias”, disse Roosevelt ao Congresso, “nós, americanos, estamos vitalmente preocupados em sua defesa da liberdade. Enviaremos a vocês um número cada vez maior de navios, aviões, tanques, canhões. Esse é nosso propósito e nossa promessa”. Roosevelt observou que tal ajuda não era um ato de guerra “mesmo que um ditador unilateralmente proclamasse que assim era”. Biden e outros líderes ocidentais deveriam seguir o exemplo de Roosevelt.
Os EUA estão vinculados à Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, que foi a primeira carta de direitos humanos adotada pelas Nações Unidas em 1948. Determinar quando um genocídio está ocorrendo é um negócio complicado: o primeiro judeu morto pelos nazistas na Shoá foi tão vítima de genocídio quanto o último, mesmo que não fosse aparente na época que o extermínio dos judeus como povo era o objetivo dos nazistas. As crianças mortas em Irpin, mortas por morteiros russos, estão mortas, quer Putin transforme ou não esta guerra em um ato de genocídio. Mas ele pode tomar ações militares nos próximos dias que só podem ser descritas como genocidas.
Tal mudança exigiria que o Ocidente reconsiderasse o que está disposto a fazer para parar o conflito. Diante do genocídio, as palavras do Mestre no Evangelho de Marcos (8, 36) ganham nova força moral: “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?”.
Por mais de 60 anos, nós, no Ocidente, dissemos “Nunca mais!” e ainda assim falhamos em parar o genocídio em Ruanda e chegamos tarde para enfrentar o genocídio na Bósnia. Mas agora, na região que testemunhou as piores atrocidades da Segunda Guerra Mundial, se permitirmos que o genocídio aconteça e não fizermos nada, o que isso diz sobre nós?
Outro cálculo moral, este não reservado ao presidente, agora está ficando claro. O preço de um galão de gasolina subiu acima de 4 dólares nesta semana. Isso foi antes de o presidente anunciar a proibição das importações de petróleo russo.
O aumento de preços ocorre em um momento em que a inflação já havia elevado o preço do petróleo e do gás, o que, por sua vez, causa aumentos de preços em praticamente tudo. Os americanos estarão dispostos a pagar mais na bomba para ajudar a desconectar a única fonte real de receita da Rússia?
Nossos antepassados racionaram gasolina – e uma série de outros produtos básicos – durante a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos dois anos, muitos americanos reagiram às medidas de saúde pública durante a pandemia como se a obrigatoriedade do uso de máscaras fosse semelhante ao governo pedindo-lhes para invadir as praias da Normandia. Esses autoproclamados guardiões da liberdade se preocupam com a liberdade, mas confundem isso com licença, hasteando suas bandeiras de Gadsden “Don't tread on me” (“Não pise em mim”, em tradução livre), denunciando Biden como um tirano. Seria engraçado se não fosse tão trágico. Será interessante ver se os membros conservadores do Congresso que pedem a proibição do petróleo russo apoiarão Biden quando tal proibição resultar em aumento ainda maior dos preços do gás.
As sanções econômicas estão afetando a economia russa, especialmente os plutocratas que são os aliados mais próximos de Putin. Além disso, os protestos contra a guerra nas ruas da Rússia são notáveis e mostram que a informação está chegando. Mais de 4 mil bravos manifestantes foram presos. Quando eu trabalhava em um restaurante, sempre que recebia uma reclamação sobre comida fria ou mau serviço, sempre imaginava que havia 99 pessoas que tiveram a mesma experiência, mas não disseram nada. Vamos torcer para que essa proporção se confirme na Rússia, só que aumentou muitas vezes.
Vamos torcer também para que os militares russos concluam que estão pagando um preço muito alto pelo erro de cálculo de Putin. Um pouco da inteligência que eu gostaria de ter em minha posse, seria descobrir que os oficiais de nível de batalhão e brigada estão dizendo a seus comandantes sobre a moral das tropas. Eu rezo todas as manhãs e tardes para que algumas unidades russas comecem a se amotinar, e que Deus traga confusão para aqueles que não o fizerem.
Todos esses cenários são assustadores porque a guerra é assustadora. Nós o anestesiamos com filmes como “O Mais Longo dos Dias” e seriados como “Guerra, sombra e água fresca”. Representações ainda mais realistas da violência, como visto em “O Resgate do Soldado Ryan”, visam humanizar a guerra, deixando-nos mal preparados para envolver nossa imaginação moral em torno da desumanidade impessoal de um ataque com mísseis contra um prédio de apartamentos nos subúrbios de Kiev.
Estamos enfrentando o mal e precisamos resistir a ele. Mas se essa resistência não for marcada pela seriedade moral, essa resistência poderia perpetuar a violência em vez de aliviá-la. O corajoso povo ucraniano lutará não importa o que façamos no Ocidente, mas devemos nos esforçar para garantir que nossa solidariedade com eles seja real e não apenas retórica.
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O cálculo moral do Ocidente se torna mais preocupante conforme o genocídio e o preço do petróleo aumentam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU