15 Junho 2011
Sim, as atrocidades dos EUA recebem pouca atenção da mídia. Mas isso não é desculpa para esse revisionismo com relação à Bósnia e Ruanda.
A análise é de George Monbiot, publicada no jornal The Guardian, 13-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em um artigo principal da semana passada, o jornal The Times denunciou a "subcultura intelectual maligna que procura eximir a selvageria negando os fatos". Os fatos são os genocídios na Bósnia e em Ruanda. Mas o jornal foi estranhamente vago sobre a qual subcultura intelectual ele se referia e não mencionou nenhum nome. Será que isso se deve ao fato de que o britânico que mais fez para descartar esses genocídios é um jornalista que escreve para esse mesmo jornal?
O massacre de bósnios em Srebrenica em 1995 e a carnificina de tutsis em Ruanda em 1994 são dois dos atos de genocídio mais documentados da história. Ambos os casos são apoiados por provas contundentes: restos mortais das vítimas e vastos dossiês de testemunhos de sobreviventes e observadores. A Comissão Internacional de Pessoas Desaparecidas - ICMP, utilizando a análise de DNA, identificou até hoje os cadáveres de 6.595 dos 7.789 bósnios que haviam sido dados como desaparecidos após o cerco de Srebrenica. Seu trabalho sugere que o número total de vítimas chega a 8.100.
Em Ruanda, forças hutus assassinaram sistematicamente entre meio milhão e um milhão de tutsis. A estimativa mais aceita é de 800.000. Uma profusão de evidências mostra que grande parte dessas mortes foram pré-planejadas. Mas a qualidade das provas tem pouca influência sobre aqueles que estão decididos a rejeitá-las.
De 1988 a 2000, Mick Hume foi editor de uma revista chamada Living Marxism (mais tarde encurtada para LM) . O título era enganoso: era um jornal libertário de extrema direita, que argumentava que aqueles que detinham o poder para agir não deveriam ser impedidos de usá-lo. Ele fez campanha contra o controle de armas, a publicidade de tabaco e a pornografia infantil. Descartou o aquecimento global e exigiu uma maior liberdade para as corporações. Denunciou o que chamou de "o culto da vítima".
Em 2000, a revista fechou depois de perder um processo por difamação: a LM havia feito falsas acusações sobre uma gravação do canal inglês ITN do acampamento Trnopolje, em que os prisioneiros bósnios foram detidos pelas forças sérvias. Em 2001, Hume lançou uma sucessora online chamada Spiked. Ele também começou a trabalhar para o jornal Times, escrevendo artigos de opinião até o início do ano passado. Ele ainda escreve artigos ocasionais para o jornal.
Em 1996, a LM afirmou que a cifra de 8.000 mortos em Srebrenica era o resultado de "manipulação" e de "distorções". Mas, concluía o artigo, 8.000 é "um número mais útil para fins de propaganda do que 800". Em 1997, ele conduziu uma simpática entrevista com Radovan Karadzic, ex-presidente da República Sérvia da Bósnia. Não contestou nenhuma das alegações ultrajantes que ele fez. Sobre o massacre do mercado de Sarajevo de maio de 1992, ele disse: "É bastante óbvio para qualquer objetivo que os muçulmanos fizeram isso". Ele afirmou que "o general Mladic não permitiria qualquer tiro de longa distância, especialmente contra civis". As pessoas que morreram na cidade de Srebrenica eram soldados "mortos em combate". Quando Ratko Mladic foi preso no mês passado, Hume, escrevendo para a Spiked, insistiu que o conceito de um crime de guerra é "uma noção altamente questionável", assim como os números de pessoas mortas em Srebrenica e as circunstâncias de suas mortes.
A LM também ridicularizou e menosprezou o genocídio de Ruanda. Em 1995, por exemplo, Fiona Fox, que agora é a diretora do Science Media Centre, escreveu um artigo para a revista na qual colocava repetidamente o genocídio de Ruanda entre aspas e afirmava que "esse não foi um genocídio pré-planejado de uma tribo por outra. Os alvos das milícias governamentais eram tutsis e hutus suspeitos de apoiar a invasão do RPA [Exército Patriótico de Ruanda]". No Times, em 2004, Hume repetiu algumas afirmações negacionistas há muito tempo desacreditadas: que o genocídio começou quando "os apoiadores do antigo regime atacaram" depois que o exército de Paul Kagame "derrubou" o avião do presidente Habyarimana. É de se admirar que o líder da Times se absteve de citar nomes?
O embaraço da esquerda
Mas a negação do genocídio é tão embaraçoso para a esquerda quanto para a direita libertária. Na semana passada, Edward Herman, professor norte-americano de finanças, mais conhecido por ser o coautor de Manufacturing Consent, com Noam Chomsky, publicou um novo livro chamado The Srebrenica Massacre. Ele afirma que as 8.000 mortes em Srebrenica são "um exagero insuportável. O número real pode estar mais perto de 800".
Como Karadzic, o livro diz que os massacres do mercado de Sarajevo foram cometidos por provocadores muçulmanos bósnios. Ele alega que o segundo enterro pelas forças sérvias dos cadáveres bósnios é "implausível e não possui nenhum suporte probatório" (uma afirmação surpreendente, dadas as conclusões do ICMP). Ele insiste que as testemunhas dos assassinatos "não são confiáveis" e sugere que os soldados muçulmanos bósnios recuaram de Srebrenica para garantir que mais bósnios fossem mortos, a fim de provocar a intervenção dos EUA.
Essas não são as primeiras afirmações desse tipo que Herman fez. No ano passado, com David Peterson, ele publicou um livro chamado The Politics of Genocide. Mal citando uma decisão de um tribunal, ele afirma que as forças sérvias "incontestavelmente não mataram ninguém exceto `homens muçulmanos bósnios com idade militar`". Pior ainda, ele coloca o genocídio de Ruanda entre aspas ao longo do texto e sustenta que "a grande maioria das mortes foram de hutu, com algumas estimativas que chegam a dois milhões", e que a história das 800.000 mortes "em grande tutsis" causadas pelo genocídio "parece não ter nenhuma base em quaisquer fatos". É o caso de revisionismo mais direto que eu já vi, comparável, nesse caso, apenas às reivindicações dos próprios genocidas.
Mas aqui é onde fica realmente estranho. A capa traz a seguinte indicação por John Pilger: "Nesta brilhante exposição da letal indústria de mentiras do grande poder, Edward Herman e David Peterson defendem o direito de todos nós a uma verdadeira memória histórica". O prefácio foi escrito por Noam Chomsky. Ele não menciona as afirmações específicas que o livro faz, mas o fato de ele o ter escrito certamente se parece a um endosso dos conteúdos. O site de esquerda Media Lens afirmou que Herman e Peterson eram "perfeitamente intitulados" para falar de modo condescendente sobre o número de mortos em Srebrenica. O que torna tudo isso ainda mais notável é que o Media Lens tem travado uma feroz e longa campanha contra o Iraq Body Count por subestimar o número de mortos nesse país.
Por que isso está acontecendo? Tanto a rede LM quanto os apoiadores de Herman se opõem à intervenção ocidental nos assuntos de outras nações. Herman sustenta, com justiça, que muito mais atenção é dada às atrocidades cometidas pelos inimigos dos EUA do que àquelas cometidas pelos os EUA e por seus aliados. Mas ambos os grupos, depois, dão o passo injustificado de menosprezar os atos de genocídio cometidos pelos opositores das potências ocidentais.
O resto de nós deve se levantar pelas vítimas, sejam quem forem, e confrontar aqueles que tentam fazê-las desaparecer.
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Esquerda e direita libertária: o menosprezo à verdade sobre os genocídios - Instituto Humanitas Unisinos - IHU