17 Fevereiro 2022
“Resta ver se as mudanças de Francisco produzirão uma Igreja que realmente é mais descentralizada. O que já é certo, no entanto, é que, se conseguirmos uma Igreja mais descentralizada, não será devido à descentralização, mas sim ao exercício bruto do poder papal”, escreve o jornalista estadunidense John L. Allen Jr., em artigo publicado por Crux, 16-02-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Papa Francisco fez algumas pequenas mas significativas emendas no direito canônico ontem, transferindo certos poderes do Vaticano às conferências nacionais de bispos e bispos locais em certas áreas. Isso ereção de seminários interdiocesanos, planos para formação sacerdotal, a remoção de membros de ordens religiosas de suas comunidades, a publicação de catecismos regionais e a redução de missas obrigatórias ligadas a intenções e doações.
Por si, cada mudança parece ficar bem aquém de um trovão. No entanto, elas acrescentadas ao quadro de gradual descentralização na Igreja Católica que o Papa Francisco tem pintado, incluindo retornar o controle sobre as áreas contenciosas de tradução litúrgica para as conferências episcopais em 2017.
Em 2015, Francisco pediu pelo que ele chamou de “descentralização saudável do poder”, incluindo mudanças na maneira de exercer o papado, se não seus poderes essenciais, mas aumentando a autoridade da tomada de decisão por bispos locais. Ele disse então que isso seria parte do seu programa de governança, e ontem foi apenas outra forma em sua tentativa de cumprir.
A forma na qual esse programa está sendo lançado, no entanto, revela tanto uma das grandes ironias sobre o papado de Francisco e também uma verdade fundamental sobre a Igreja Católica: isso é, que o programa de descentralização do papa está sendo implementado justamente da forma mais centralizadora possível.
O meio com que Francisco decretou suas mudanças ao direito canônico ontem foi um motu proprio, significa “uma moção própria”, referindo-se a um passo legal tomado sem qualquer influência de outra parte. Basicamente, esse é uma forma de dizer “ninguém perguntou por isso, isso é apenas o que eu quero fazer”. Em certo sentido esse é o mais puro uso possível da autoridade papal, de acordo com o que diz o código canônico que o papa “tem plena, imediata, suprema e universal jurisdição” sobre a Igreja.
O Papa Francisco, parafraseando Will Rogers, parece nunca ter visto um motu proprio de que não gosta.
Ele agora emitiu esse tipo de decreto 47 vezes em menos de nove anos no cargo; em contraste, o Papa João Paulo II emitiu apenas 30 motu proprios ao longo dos quase 27 anos de seu próprio reinado. Isso é uma média de mais de cinco motu proprios por ano para Francisco, e exatamente um por ano para João Paulo. O ano de 2016 foi um marco, com nove motu proprios. Se você considerar que o Vaticano está basicamente inativo de meados de julho a início de setembro devido aos feriados de Ferragosto na Itália, isso é um motu proprio por mês. Ele também não diminuiu a velocidade, emitindo oito motu proprios em 2021.
Quer dizer, este foi realmente o segundo motu proprio apenas esta semana, já que segunda-feira trouxe um sobre a reestruturação da Congregação para a Doutrina da Fé – e hoje é apenas quarta-feira, então fique atento. Coitado dos pobres editores do Código de Direito Canônico hoje, pois quando conseguem colocar uma nova edição no mercado já está bastante desatualizado.
Quando tudo estiver dito e feito, o Papa Francisco está destinado a ser o Henry Aaron (o segundo maior batedor de homeruns na história da MLB) do motu proprio, ou seja, o rei de todos os tempos com uma carreira realmente difícil de superar (desconto Barry Bonds, o maior, devido as suspeitas do uso de esteroides, claro).
Tampouco Francisco tem vergonha de exercer sua autoridade de outras maneiras.
Não muito tempo atrás, ele emitiu quatro decretos autorizando desvios do procedimento criminal usual do Vaticano no megajulgamento atualmente em andamento por crimes financeiros, principalmente relacionados a um controverso acordo imobiliário em Londres. Ele minou a autoridade tradicional da maioria dos departamentos do Vaticano, preferindo contorná-los por conta própria, ele alcançou pessoalmente a gerência intermediária de alguns escritórios do Vaticano para contratar e demitir, e ele criou mais novas estruturas e cargos no Vaticano em uma década do que normalmente se fez em um século.
Resta ver se as mudanças de Francisco produzirão uma Igreja que realmente é mais descentralizada. O que já é certo, no entanto, é que, se conseguirmos uma Igreja mais descentralizada, não será devido à descentralização, mas sim ao exercício bruto do poder papal.
Por sua vez, essa ironia sobre Francisco ilustra uma verdade duradoura sobre a Igreja Católica, que às vezes a reforma acontece de baixo para cima, com mudanças nas bases eventualmente obrigando o centro de Roma a mudar, mas muitas vezes a reforma também é de cima para baixo, ou seja, decretado por um papa com um plano e recebido, às vezes hesitante e sem entusiasmo, pelas pessoas a quem é dirigido.
No caso da “descentralização saudável” de Francisco, é uma das maneiras pelas quais ele está tentando reviver o espírito do Concílio Vaticano II (1962-65), aquele encontro de quatro anos de bispos católicos de todo o mundo que lançou a Igreja em processo de atualização (aggiornamento), e cujo legado é, até hoje, o pomo da discórdia entre a esquerda e a direita católicas.
No entanto, o Vaticano II não foi o resultado de um processo democrático. Em vez disso, o Papa João XXIII decidiu essencialmente por si mesmo convocar o concílio, e o fez contra os desejos de alguns de seus colaboradores mais próximos. A recepção inicial da decisão foi decididamente fria entre muitos do Vaticano, mas o “Bom Papa João” seguiu em frente e a história subsequente da Igreja Católica foi decididamente diferente porque ele o fez.
Se é preciso uma aldeia para criar uma criança, talvez seja preciso um papa-imperador para desconstruir o papado imperial – isto é, até que o próximo pontífice investido de “jurisdição plena, suprema, imediata e universal” decida tentar colocar Humpty Dumpty juntos novamente.
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A paixão do Papa Francisco por motu proprio captura uma grande ironia – e uma profunda verdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU