A Funai e a antipolítica indigenista do extermínio

Acampamento Terra Livre (ATL) 2018. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

13 Janeiro 2022

 

"A Funai esperava jogar uma espécie de 'pá de cal' sobre os direitos indígenas: a partir dessas medidas, se aniquilaria com os preceitos constitucionais à terra e ao seu usufruto exclusivo, com as diferenças étnicas e culturais e com as garantias de que os povos indígenas constituem-se em sujeitos de direitos", escrevem Roberto Liebgott e Ivan Cesar Cima, do Cimi Regional Sul, em artigo publicado por Conselho Indigenista Missionário - Cimi, 11-01-2022.

 

Eis o artigo.

 

Desde que o atual governo assumiu o controle do Brasil, os direitos territoriais e os modos de ser e de viver diferenciados dos povos indígenas vêm sendo sistematicamente atacados. Eles, os povos, são tratados como “coisas perigosas”, como pessoas a serem combatidas, ou, ainda, como resíduos de um passado que deveria ser extirpado. A partir dessa lógica genocida, impuseram-se as ferramentas políticas, administrativas, jurídicas e discursivas, tendo como referências: a desterritorialização, a desconstitucionalização e a integração forçada dos povos à sociedade.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi reestruturada para essas finalidades e, desde 2019, trabalha para que o “índio” seja exterminado ou transformado em força produtiva vinculada a um modelo exploratório. Nesse ambiente, as lutas das comunidades e povos pela garantia dos direitos constitucionais são criminalizadas e as terras ocupadas por grupos econômicos que, em geral, violentam os indígenas, desrespeitam e agridem a natureza.

Nos últimos três anos, uma série de medidas restritivas de direitos foram adotadas pela Funai com o objetivo de excluir das políticas de proteção, fiscalização e demarcação de terras mais da metade dos povos originários do país. Nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, as comunidades foram abandonadas à própria sorte, como se não existissem. Autorizou-se a paralisação dos procedimentos demarcatórios e concedeu-se, a terceiros, oportunidade para requerer a posse ou título de propriedade em terras indígenas e nelas exercer atividades de exploração dos recursos ambientais, agrícolas, agrários, minerais, hídricos e madeireiros. E, para dar agilidade a essas pretensões, foram editadas por Funai, Incra e Ibama algumas instruções normativas e resoluções, tais como as de números 09, de 2020, 01 e 04, de 2021, respectivamente.

A Instrução Normativa de número 09, publicada em 2020 pela Funai, trata da possibilidade de certificação de terras indígenas para particulares, quando estas incidirem sobre áreas que cuja demarcação ainda não foi homologada. Através desta medida administrativa, o governo Bolsonaro sinaliza a todos os interessados em requerer e legitimar títulos de propriedades sobre terras da União que o façam, manifestando desejo de uso da terra para exploração econômica. Ou seja, com tal medida, além de atacar frontalmente os direitos constitucionais dos povos indígenas, expressos no artigo 231 da Constituição Federal de 1988, o governo Bolsonaro pratica crime de improbidade administrativa, já que transfere terras da União, aquelas que deveria zelar e proteger, para particulares. A Instrução Normativa 09/2020 vem sendo desconstituída por decisões judiciais em diversos estados e regiões do país. A Funai tem ignorado tais decisões e permanece aplicando a normativa em sua prática cotidiana de ataque aos direitos indígenas.

Já a Resolução de número 04/2021, medida administrativa expedida pela Funai – e posteriormente caracterizada como inconstitucional pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, dentro da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 – visava impor a heteroidentificação dos indígenas. Através dessa medida, a Funai deveria determinar os critérios acerca de quem é ou não é indígena. A Funai, tomando por base essa resolução, decidiria quem estaria ou não integrado à sociedade envolvente e, portanto, esse indígena não poderia, jamais, acessar os direitos constitucionais expressos nos artigos 231 e 232.

A Instrução Normativa de número 01, publicada em 24 de fevereiro de 2021, em conjunto pela Funai e Ibama, visa a exploração de terras indígenas por particulares associados aos indígenas. Essa medida desconstitui o direito dos povos ao usufruto exclusivo de suas terras; ou seja, o governo Bolsonaro, com uma única norma administrativa, possibilitará que qualquer pessoa, em articulação com alguns indígenas, crie o que foi denominado de organização mista, para que esta, mediante o aval do Ibama, possa explorar as terras indígenas, seja para monocultivos de soja ou para a pecuária, seja para desmatar, garimpar e exercer outras atividades econômicas.

 

Manifestação dos povos indígenas contra o PL 490 em frente ao anexo 2 da Câmara dos Deputados, durante o Levante Pela Terra, em junho (Foto: Foto: Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo)

 

A Funai esperava jogar uma espécie de “pá de cal” sobre os direitos indígenas: a partir dessas medidas, se aniquilaria com os preceitos constitucionais à terra e ao seu usufruto exclusivo, com as diferenças étnicas e culturais e com as garantias de que os povos indígenas constituem-se em sujeitos de direitos.

A Advocacia Geral da União (AGU) e a Funai publicaram, no final do ano de 2021, despachos determinando que as coordenações regionais do órgão indigenista não prestem assistência às comunidades e povos que estejam vivendo naquelas terras que não foram homologadas pela Presidência da República. A determinação, difundida por meio do Ofício 18/2021, da Funai, exclui as terras não homologadas dos planos de proteção territorial do órgão indigenista, deixando centenas de comunidades indígenas totalmente desamparados e à mercê da pressão de invasores, fazendeiros, mineradoras e outros agentes econômicos que promovem a devastação de seus territórios.

Tal medida contraria o que estabelece a Constituição Federal no seu artigo 231, bem como no que prescreve a Lei 6001, de 1973, o Estatuto Índio, que expressa em seu artigo 25: “o reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antiguidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República”.

Nos últimos três anos, os povos indígenas, além de enfrentarem a pandemia da Covid-19 – que vitimou mais de 1200 indígenas e contaminou milhares de pessoas, deixando sequelas irreversíveis – se depararam com um inimigo muito maior: o governo Bolsonaro e seus comandados militares, delegados, ex-policiais e pastores de igrejas neopentecostalistas que atuam, de forma incessante, contra as tradições, costumes, crenças e ancestralidades das comunidades, violando seus direitos constitucionais.

Nas últimas quatro décadas não se viu, por dentro do Estado, ações tão abundantes, planejadas e organizadas para se contraporem aos povos indígenas e suas trajetórias de lutas e conquistas.

Além de transformar o órgão indigenista numa agência de negócios econômicos criminosos, o governo Bolsonaro vem fragilizando as políticas assistenciais, negando prestação de serviços àquelas comunidades mais vulneráveis, que vivem sem terra, nas margens de rodovias ou em pequenas áreas degradadas, contaminadas e sem acesso a água ou qualquer tipo de saneamento básico.

A precarização das condições de vida e a liberalização dos territórios para e exploração econômica gerou um processo de violências contra a vida e contra o meio ambiente sem precedentes no país. A garimpagem, o desmatamento e os incêndios criminosos devastaram terras e desencadearam conflitos resultantes de invasões das áreas. Milhares de garimpeiros ocupam os espaços de vida e atacam os povos. Madeireiros, fazendeiros e grileiros expandiram seus tentáculos de destruição e ódio para dentro dos territórios, tudo sob o comando ou com a conivência do governo Bolsonaro e de seus agentes.

Além disso, as terras demarcadas, que deveriam estar disponibilizadas ao usufruto exclusivo dos povos e comunidades, tornaram-se objeto de especulação através de arrendamentos e cooperativas que, na prática, privatizaram as áreas pertencentes à União e que deveriam estar disponibilizadas para as comunidades indígenas.

O caos só não se completou neste período por conta de medidas judiciais que buscaram colocar freios à perspectiva genocida do inominável. O STF determinou, dentro do Recurso Extraordinário do processo de nº 1.017.365, qualificado como de repercussão geral e que trata sobre demarcação de terras, a suspensão de todos os processos judiciais que visavam desconstituir demarcações de terras. Conteve ainda os efeitos do Parecer 001/AGU de 2017, o qual vinculava toda a administração pública – responsável pelos procedimentos demarcatórios de terras indígenas – à tese descabida do marco temporal. Com a tese, pretendia-se eliminar do mundo jurídico e administrativo os direitos estampados no artigo 231 da Constituição Federal, onde se garante a demarcação das terras indígenas, caracterizadas como tradicionais e originárias.

 

Ato em frente ao Palácio do Planalto durante o acampamento Luta pela Vida, em agosto de 2021 (Foto: Foto: Foto: Marina Oliveira/Cimi)

 

Também o movimento indígena, a partir de seus povos e comunidades, desencadeou intensas mobilizações contra a antipolítica e exigiram respeito a seus direitos constitucionais. Houve, ao longo de todo o ano de 2021, grandes e expressivas mobilizações indígenas tanto de âmbito local, como regional e nacional. Estas, efetivamente, ampliaram alianças, apontaram agendas de lutas e fizeram frente ao governo genocida.

Mas os caminhos ainda são pedregosos, pois tramitam no Congresso Nacional dezenas de projetos de lei que fragilizam os direitos indígenas e liberalizam os territórios para a exploração devastadora da terra. Neste ambiente complexo, é estratégico e urgente manter as articulações, juntar as forças dos povos originários, das comunidades quilombolas e de todos os demais grupos e coletividades numa mesma sintonia: evitar retrocessos e exigir, dos órgãos e poderes públicos, responsabilidade e compromisso com a defesa da vida, dos territórios, dos direitos humanos e constitucionais.

Somente com a força dos de baixo, com suas articulações políticas, com suas cosmovisões, espiritualidades e ancestralidades, poderemos barrar o avanço das ações e medidas administrativas anti-indígenas dentro dos palácios e retomar os caminhos da justiça e do bem viver.

 

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