06 Janeiro 2022
O mais conhecido psicanalista italiano: na polêmica sobre as vacinas eles curvaram a realidade aos interesses da ideologia. “Eu acrescentaria também a miséria de determinado tipo de jornalismo de direita...”
Ele é o mais conhecido psicanalista italiano, não há o que dizer. Há quem o ama e quem o odeia. O sucesso, alguém disse, deveria ser perdoado e Massimo Recalcati não parece nada preocupado com o ruído de fundo que acompanha seu caminho. Continua estudando, escrevendo, conversando.
Pedi a ele, diria Lacan, para marcar o início, para marcar este ano que, como os anteriores, promete ser muito complexo. E são muitos, talvez demais, que enfrentam a complexidade com superficialidade e insensatez, que a reduzem a uma mera contraposição de dados, enquanto algo mais se move dentro do ser humano.
Eu pergunto a ele, que completou seus estudos filosóficos antes de passar para a psicanálise, a ele que havia se formado para uma carreira filosófica antes de tropeçar, antes de ser forçado a olhar para dentro de seu próprio sofrimento e seguir outro caminho, uma leitura do presente e uma palavra para um futuro consciente.
A entrevista com Massimo Recalcati é de Davide D'Alessandro, publicada por Hufftington Post, 02-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Com que espírito você entra em 2022? Como imagina que será?
Uma luz. Ficamos no escuro por muito tempo. Agora precisamos de luz. Os seres humanos são feitos para nascer e não para morrer, dizia Hannah Arendt. Somos feitos para a luz e não para as trevas. No entanto, também sabemos que a escuridão existe e pode despencar sobre nossas cabeças a qualquer momento. Nestes tempos difíceis, citei muitas vezes Franco Basaglia. Ele dizia que a cura consiste em poder fazer algo no escuro. Bem, eu penso que nós precisamos ver a luz no escuro. Espero, portanto, mais luz para o ano que começa.
A pandemia marcou profundamente os últimos dois anos. Todos falaram, menos talvez quem atende pacientes no dia a dia. Você não acha que faltou a palavra da psicanálise? Qual pode ser a sua palavra sobre esta tragédia histórica?
Eu falei. Não desdenhei nem falar publicamente nem escrever sobre o que nos aconteceu. Não é tarefa da psicanálise tentar dizer algo sobre o que o deixa sem palavras? Por outro lado, não é verdade que os psicanalistas em geral não tenham falado. As conexões online impostas pela pandemia nos reuniram de Londres a Buenos Aires, de Barcelona à Cidade do México, de Roma a Atenas, para conversar sobre o que estava acontecendo.
Esiste il rapporto sessuale? (Massimo Recalcati)
Existem dois grandes temas: como responder ao trauma quando é coletivo, quando oprime populações inteiras? Que contribuição a psicanálise pode dar e poderá dar? Como a nossa prática se modificou? O que muda na realização de uma sessão online em comparação com um encontro presencial? É apenas uma emergência ou uma emergência que tornou nosso ambiente mais flexível? Também houve inúmeras iniciativas clínicas na cidade para tornar a psicanálise disponível para aqueles que mais sofreram com a pandemia. Estou me referindo aos profissionais de saúde no início da pandemia.
Mas penso também nos lutos que ficaram suspensos e depois nos sintomas que tiveram uma evidente amplificação nestes dois anos: depressão, ataques de pânico, somatizações, dependências. Sem falar nos jovens. Em suma, não concordo com o quadro que você apresenta, ainda que exista uma tendência da psicanálise a se isolar do mundo, da vida da polis. Afinal, é uma tendência à qual me oponho desde a juventude.
Através de alguns livros você continua a comparação com o texto bíblico. Você vê essas páginas como um refúgio, uma esperança ou um ensinamento eterno?
Quem conhece o texto bíblico, ainda que superficialmente, sabe que em primeiro plano não está a experiência do refúgio, mas aquela do êxodo, do deserto, da errância, da espada que separa. Não sou um biblista, mas um simples leitor da Bíblia; no entanto, também sou um psicanalista e os grandes temas que atravessam a Bíblia são os mesmos que atravessam a psicanálise: a relação entre as gerações, a irmandade, o ódio e a inveja, a idolatria, o narcisismo, o sentido da existência, o sofrimento, a relação entre Lei e desejo, o vazio do ser, a liberdade, a vida e a morte. Portanto, não pretendo de forma alguma psicanalisar o texto bíblico, mas encontro naquele texto as próprias raízes da psicanálise. O judeu Freud e o católico Lacan, pelo menos na sua formação juvenil, foram leitores muito apaixonados da Bíblia.
Você foi justamente crítico em relação às posições de alguns intelectuais sobre a pandemia. Por que é tão difícil entender o caminho certo a seguir?
A filosofia pode tornar-nos cegos. Pense em como Heidegger interpretou o terrível advento do nazismo. Por que ele cometeu tal erro? Porque a filosofia sempre corre o risco de cair na ideologia, se por ideologia entendemos, como lembra Arendt, fazer prevalecer a Ideia sobre a realidade. Foi o que aconteceu a Heidegger: a ideia do destino niilista do Ocidente, da história como esquecimento do ser, quis ver no nazismo uma possibilidade de voltar a pensar nos deuses, a verdade como aletheia, a resistência diante do narcisismo humanista do Ocidente. Um delírio ideológico.
O mesmo que cegou pensadores de grande profundidade, como Agamben e Cacciari. Com a referência ideológica à biopolítica, ao biopoder, ao estado de exceção etc., eles curvaram a realidade aos interesses da ideologia. A isso acrescentaria, se me permite, uma dose não irrelevante de vaidade. Quem tem contato cotidiano com o sofrimento sabe que há momentos em que a palavra deve ser capaz de subordinar-se às razões da ciência médica. Ninguém, entre aqueles que se submeteram a cirurgias de grande porte, jamais questionou a justificativa da operação que teve que sofrer.
Confiamo-nos ao discurso médico da mesma forma que confiamos nos pilotos quando entramos num avião. Acrescentaria também a miséria de um determinado tipo de jornalismo, especialmente de direita, que tem cavalgado esta crise de forma indigna, perseguindo um mero objetivo de visibilidade. É o mesmo que vimos nos talk shows, onde a presença proliferante dos no vax serviu para manter a audiência. Que pena!.
Como você qualifica as palavras e ações da política?
Acho que a política foi esmagada pelo que aconteceu. Não poderia ser diferente. Os comentaristas do Twitter do nosso tempo voltaram a dar fôlego à antipolítica, mantendo-se na posição inocente da bela alma que julga sem jamais questionar sua própria responsabilidade. A rigor, acredito que uma virada importante foi a do governo Draghi, não apenas do ponto de vista de sua eficácia operacional. Tratava-se de restituir dignidade às instituições, desarticuladas, antes que pelo covid, por anos de indiferença antipolítica e cultura populista.
O “grillismo" não podia nos salvar desta crise que exigia sobretudo uma recuperação do valor das instituições, que ele mais do que qualquer outro movimento contribuiu para denegrir drasticamente. Foi a cultura que precedeu o Covid: de um lado, a pureza das pessoas, da vida, do outro, a podridão e a corrupção das instituições.
O populismo contrapôs ideologicamente a vida às instituições, como se fossem o bem e o mal. A crise ligada à pandemia, em vez disso, ensinou-nos que sem as instituições, penso também na instituição da família e daquela do hospital, não apenas aquelas governamentais, as nossas vidas teriam acabado muito mal. A política hoje tem a tarefa primordial de resgatar a dignidade das instituições, de mostrar que as instituições não são a cara suja da vida, mas seu fundamento.
Nem todo mundo tem a mesma resistência à dor e ao trauma. Casos de depressão severa são relatados em aumento exponencial. Quem está trabalhando para conter esse drama? Você acredita que se possa fazer mais?
Fazemos o impossível. O 'Jonas' abriu as suas portas a todos, reduzindo as tarifas das sessões como faz há anos e criando também serviços de assistência psicológica a domicílio. Notamos que muitos jovens estão em dificuldades. Mas não vamos evocar, pelo amor de Deus, a definição de 'geração covid'. Não haverá nenhuma ‘geração covid', a menos que os adultos a façam existir. Nossos filhos passaram por uma experiência muito difícil, que deixou feridas. Não há dúvidas. Mas identificar alguém com sua ferida é fomentar o álibi turvo da vítima.
A ética da psicanálise segue em uma direção completamente diferente; acreditamos que o sujeito é sempre o responsável. Obviamente, não pelo que lhe acontece, mas pelo que ele faz sobre o que lhe acontece. A ação da escola também será importante: os professores terão que acompanhar nossos filhos nessa difícil elaboração do trauma. É para isso que serve a cultura, não acha? Para tornar formativas até mesmo as experiências que parecem apenas negativas. Aliás, justamente essas experiências são, como todo educador sabe, as mais formativas.
O caro amigo Enzo Bianchi, de sua nova ermida, continua a acolher a todos e a falar com palavras de amor. Como você viveu sua triste história?
Mal. Muito mal. É motivo de grande dor para mim. Foi o naufrágio de uma das experiências cristãs mais interessantes do nosso país. Um desastre. Acredito que tenha havido, como também escrevi publicamente, um problema de herança. O carisma do pai que não aceitou o afastamento; os filhos queriam sua pele. Depois disso, é difícil voltar a pronunciar palavras como diálogo, perdão e reconciliação.
No que você está trabalhando e qual será o próximo livro que você nos dará?
Há dois meses foi publicado um livro sobre o qual você também escreveu e do qual eu realmente gosto. Um livro que questiona um grande tema da reflexão de Lacan, o relativo à inexistência da relação sexual. Existe a relação sexual? Essa pergunta não faria sentido, exceto em um ambiente lacaniano. A tese que desenvolvo é que o cinismo de Lacan capta uma verdade da estrutura: o Dois nunca poderão fazer o Um.
Mas que essa impossibilidade, como também menciona Lacan, é a raiz da possibilidade do amor. O desejo amoroso, de fato, não visa de forma alguma a unificação, a tornar possível a relação sexual, a fazer ou a ser Um com o Outro, mas sim o reconhecimento do segredo inassimilável do Outro. Portanto, é precisamente a não relação que torna possível o amor como relação. Não é sempre assim? O que amamos senão o segredo inatingível do Outro? Sobre isso, a Bíblia também teria muito a dizer. Não por acaso os amantes do Cântico dos Cânticos se encontram na saída de um deserto. É o que também diz Lacan: os amantes são sem pátria, são dois exilados.
*
Nenhum autor aceita revelar o conteúdo do que está fervendo na panela. Mas algo está fervendo. Tenho certeza de que em breve Recalcati nos servirá o novo prato, onde Bíblia e psicanálise, psicanálise e Bíblia continuarão a nos dizer quem somos, a nos indicar os possíveis caminhos a seguir. A jornada, assim como a escritura, continua.
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Recalcati: “Para Cacciari e Agamben eu digo: a filosofia pode cegar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU