Apocalipse. Entrevista com Antonietta Potente

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03 Janeiro 2022

 

Antonietta Potente, religiosa dominicana, é teóloga, professora e escritora. Recentemente, concedeu a seguinte entrevista no itinerário de apresentação de seu último trabalho: Il miele e l’amaro. Lettura místico-sapienziale dell’Apocalisse (O mel e o amargo. Leitura mística-sapiencial do Apocalipse, em tradução livre, publicado pelas Paoline).

 

A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 27-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista. 

 

Antonietta, por que você escreveu esse seu livro sobre o Apocalipse?

 

Sempre fui fascinada por esse livro. Também o lia na América Latina, porque o Apocalipse não fala de tempos futuros. Para mim, ele sempre falou da história e da vida presente. Relendo-o e aprofundando-o - nestes tempos - estou cada vez mais convencida de que fala a mim, a nós, de hoje.

 

Reprodução da arte da capa do livro Il miele e l’amaro. Lettura místico-sapienziale dell’Apocalisse

 

Por que hoje?

 

É um livro essencialmente profético. Se eu pudesse realocá-lo na Bíblia, eu o colocaria entre os livros proféticos. É um livro de visão que o convida à visão.

Neste momento histórico que parece tão difícil, ela nos convida a olhar mais intensamente e a não desviar o olhar da realidade presente, por mais desfigurada que ela possa parecer. No Apocalipse, a luz vem e vai junto com as trevas: justamente como na realidade presente. Hoje.

 

O Apocalipse fala à Igreja de hoje?

 

Sim. As sete cartas às sete Igrejas constituem um texto para as comunidades crentes: não falam apenas àquelas sete Igrejas da Ásia Menor, mas a todas as comunidades ao longo dos séculos, representando um caminho - um estilo - de ser comunidade no qual se vive juntos para experimentar algo vital.

Todos os comentários dizem que o grande problema da Igreja da época era sobreviver ao Império Romano. O Apocalipse foi, de fato, escrito por volta do ano 90 d.C. Havia violências e perseguições. Tudo bem. Mas eu transferi a atenção para os problemas internos das comunidades, da época e de agora. Muitos anos já se passaram desde o advento de Jesus e das primeiras formações cristãs. As comunidades da época do Apocalipse não eram mais as mesmas comunidades de antes. Não havia mais ninguém que tivesse vivido as primeiríssimas experiências.

O verdadeiro problema, portanto, dizia respeito às próprias comunidades, dentro delas e em sua relação mútua de 'estrutura'. Na minha opinião – além disso - havia um problema do feminino, ou seja, do papel das mulheres naquelas comunidades, diferente do que sabemos ter acontecido nas primeiríssimas comunidades. As formas originais já haviam sido, pelo menos em parte, de alguma forma traídas.

Portanto, as censuras que lemos hoje no Apocalipse dizem respeito principalmente ao 'poder' e à necessidade de ceder 'poder' por parte das igrejas, tanto dentro delas como nas suas relações recíprocas. É um problema que também nós temos presente hoje.

 

No seu livro, você convida a ler o Apocalipse “ao contrário”: o que quer dizer?

 

Ler e escrever livros ‘ao contrário’' é bem próximo ao meu estilo. Depende do meu pensamento que gira e avança de maneira semelhante a uma 'espiral'. Portanto, pode-se começar a ler meus livros em qualquer ponto. Mesmo pelo final.

Parece-me que o Apocalipse se presta muito bem a esse tipo de leitura e depois de escrita. Nos últimos capítulos nos são dadas as mais 'belas' visões, com as quais podemos ler e reler tudo o restante, até encontrar justamente às profundas dificuldades vividas pelas comunidades, por toda a humanidade e até pelo cosmos - pela natureza - em sua totalidade. Começar pelo 'fim' é uma chave de fé: o acusador já foi derrubado!

Dediquei, portanto, o meu livro "a todos aqueles que têm dificuldade em apaixonar-se pela realidade" porque pensei que o Apocalipse nos ajuda a nunca perder nossa paixão pela realidade, mesmo que permaneçamos na realidade com todos nós mesmos: com tudo o nosso corpo, com toda a nossa mente ou com toda a nossa alma ... com tudo!

 

No subtítulo, você definiu sua leitura do Apocalipse místico-sapiencial: o que significa?

 

Evidentemente, não fiz uma leitura exegética. Eu não sou uma biblista. Além disso, eu não estava interessada, senão no limite da interpretação de algum versículo específico. Preferi - e sempre prefiro fazer - uma leitura que todos possam fazer.

Por mística, portanto, "simplesmente" quero dizer uma leitura feita em profundidade. Por sapiencial entendo uma leitura que se deixa guiar pela Sabedoria - ou seja, pela Sophia. Apaixonar-se por esses textos – e, portanto, pela realidade - significa realmente se deixar guiar, se deixar levar: palavras, imagens, pensamentos trabalham por dentro e depois vêm à luz por si próprios. Para mim, escrever um livro sobre o Apocalipse foi uma experiência, nesse sentido, muito forte e muito bela.

 

Trata-se de adquirir ou readquirir uma linguagem semelhante à do Apocalipse?

 

Está em jogo a nossa saúde mental e muito mais. A linguagem do sistema em que vivemos apenas nos leva a nos distrair de nós mesmos e da realidade. A ficar na superfície. Para olhar e falar da realidade profunda, precisamos de outra linguagem.

Existe um olhar diferente e uma nova - ou antiga - linguagem a cultivar. Isso também significa renunciar a dizer tudo, a explicar tudo, a resolver tudo. Há momentos no texto do Apocalipse em que tudo parece desabar enquanto o humano nada pode fazer a respeito. Depois tudo recomeça: a escuridão total alterna-se com a luz, com mil matizes de luz. É a Divina Presença! Isso pode ser vislumbrado. É percebido. Existem traços em todo o Apocalipse. Por que não agora? A realidade é a mesma!

 

Seu livro é intitulado "o mel e o amargo": que papel os cinco sentidos desempenham na percepção?

 

O Apocalipse é um canto à vida. E na vida - mesmo a mais simples e cotidiana - estão ativos todos os nossos sentidos e talvez mais do que os cinco normais. Toda a nossa vida é repleta de cores, sabores, cheiros, sons, sensações táteis. Cada dia traz em nós o despertar dos sentidos. Buscar o divino através de todos os nossos sentidos - e muito mais - é muito importante.

O divino não está na razão ou apenas na razão: isso é demasiado estreito. Existem muitas outras maneiras predispostas para apreender, para perceber a Divina Presença. Somos dotados de sentidos ainda mais sutis que nos permitem perceber os anjos e o que não é visível aos olhos. O Apocalipse usa todos esses sentidos. Deste modo, aparece como um texto muito ‘litúrgico’: é uma liturgia de glória, de reconhecimento e de louvor da Divina Presença.

 

Literatura joanina

 

O Apocalipse é um texto joanino também no sentido de um forte contraste, quase "dualístico"?

 

Não estou convencida de que a literatura joanina – a partir do Evangelho - tenha uma visão 'dualista', no sentido de que acentua o contraste entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal. Acho que 'João' sempre foi interpretado dessa forma porque é mais fácil interpretá-lo assim. 'João' é complexo para a mera razão humana: é, portanto, mais fácil encontrar uma maneira de simplificar. Também acho que o dualismo fez - e ainda faz – muito mal à Igreja.

Eu prefiro dizer que 'João' ou quem como ele que- em um sentido mais amplo do que uma comunidade de mulheres e homens que escreve - nunca vê em 'branco' e 'preto', nunca divide o bom do mau. Exatamente como acontece na realidade: essa divisão perfeita nunca é possível. Basta conhecer a nós mesmos.

Nossa vida está cheia de nuances. E o Apocalipse é justamente cheio de nuances, não de dualismos. Mesmo quando há a representação de uma luta entre dois, há sempre uma terceira possibilidade, não violenta, em que não há um que vence e outro que perde. Vamos ler, por exemplo, o capítulo 12: há uma terceira possibilidade e é a mulher do capítulo 12, justamente.

 

O que você considera tão "feminino" no Apocalipse?

 

Os 'títulos' atribuídos ao divino nunca são claros, ou seja, não são mais masculinos do que femininos. Ver Cristo e a Trindade em todos os lugares é, na minha opinião, um exagero. Fomos acostumados a interpretar dessa forma 'dogmática' e tendemos a continuar assim. Mas o Apocalipse é bem mais aberto a muitas interpretações. E parece-me que a direção da abertura é a direção do feminino. Ainda mais hoje. Na Igreja existe uma “terceira” possibilidade e somos nós, mulheres.

Neste meu livro quase nunca uso o termo Deus: prefiro Divina Presença, ou Sabedoria ou Sophia, no feminino. Em todo caso, no Apocalipse não se sabe quem é Deus, ele permanece sempre na nuvem do Mistério. O masculino e o feminino pertencem à nossa língua. Não sabemos quais são o termo e o gênero adequados para dizer 'Deus'.

 

Gerados pela vida

 

O que é a nostalgia de que você fala no livro?

 

Acho que, antes de nascer, nessa história, nascemos nas profundezas da vida, nascemos no Mistério. Portanto, caminhando nesta história e nesta vida, sempre sentimos que algo está faltando. Essa é a saudade que carregamos por dentro. Há momentos e eventos em que essa nostalgia emerge com mais força.

Pensemos na mulher no jardim que vai ao túmulo de Jesus: ela se aproxima e gostaria de pegá-lo, segurá-lo, porque a saudade da Presença naquele momento é muito forte nela. Mas depois a Presença escapa. É presença e ausência. Como crentes, sabemos: para nós, para a nossa fé, o que se sente nada mais é do que a nostalgia inata de uma origem, de um princípio que repousa na Divina Presença. Pensado bem, é uma nostalgia que todos carregam no coração - sejam eles crentes ou não crentes - que também têm todos os seres vivos e, de alguma forma, todo o cosmos que participa da mesma origem.

A nostalgia tem um valor inestimável na vida. Preserva, entre outras coisas, das falsas certezas, dos dogmatismos, dos moralismos. No Apocalipse há muita nostalgia, como em uma paisagem imersa no nevoeiro.

 

O Apocalipse está repleto de imagens de paisagens, animais, vegetação, natureza e desastres naturais…

 

O Apocalipse é povoado por infinitas presenças: são todas criaturas cujas vias conduzem ao Mistério. No Apocalipse tem sua morada os grandes desastres naturais, a árvore da vida e as árvores com folhas medicinais que dão frutos o ano todo.

Esta é precisamente a nossa realidade natural! O profeta que escreveu o Apocalipse não inventou nada. Ele 'simplesmente' olhou profundamente 'dentro' de nossa realidade natural: esta tem uma dimensão - eu diria - espiritual-corpórea, porque existe na mesma matéria de que nós existimos.

 

Vamos voltar à Presença Divina: de onde vem essa definição?

 

Eu não inventei. É a tradução do termo usado pela literatura rabínica: é a Shekhinah. Na Bíblia não existe, mas existe a raiz da palavra e, acima de tudo, o conceito a perpassa completamente. A Divina Presença está em toda a realidade e somos feitos para perceber isso. Desejamos encontrá-la, saber reconhecê-la. Basicamente, tudo o que fazemos visa esse encontro: mesmo no que parece mais distante da Divina Presença, isto é, por exemplo, a política.

A Teologia da Libertação - em particular Carlos Mesters - entendeu isso perfeitamente. A atividade política pode ser entendida como busca da Divina Presença na justiça para os pobres, ou se tornar negação da Divina Presença, causando fome, violência e morte aos pobres. O mesmo pode ser dito hoje sobre a aproximação da política com a natureza: ela pode ir em busca da Presença na conservação da mesma, ou negá-la e destruir tudo.

Certamente não é fácil. A Divina Presença está em silêncio e está escondida.

 

Existe a Divina Presença?

 

Parece-me que existe. A realidade não é tudo o que parece. Há muito mais. É preciso saber olhar em profundidade.

 

E Cristo? Como está presente no Apocalipse?

 

Certamente Cristo está muito presente: ele é a encarnação da Divina Presença. Seguindo a Cristo permanece aquele que percebe a Presença, que apreende a Sabedoria ou Sophia ao viver. No entanto, não acredito que o Apocalipse constitua um texto 'cristológico' no sentido tradicional da definição. Existe esta Presença encarnada forte, muito forte, mas não é muito desenvolvida no sentido do Cristo explícito.

No meu livro, cito uma passagem da Lenda Dourada de Jacopo de Varazze. Bem, nessa passagem - com referência clara à imagem simbólica do Apocalipse - não se fala apenas do Cordeiro-Cristo, mas também da Cordeira-Maria.

O que quero dizer é que muitas vezes se faz de Cristo um dado de fato ou uma fórmula quase matemática que deveria, portanto, ser clara e evidente para todos e de uma vez por todas: um 'a priori'. Mas não é assim. A encarnação da Divina Presença - Cristo - deve ser buscada continuamente na realidade, na nossa realidade. Nesse sentido - mas apenas nesse sentido - o Apocalipse é também um texto 'cristológico'.

 

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