"Celebrar a Assunção de Maria significa não retomar o poder glorioso e triunfalista a ela atribuído na sua Assunção, o que representou o poder da Igreja Medieval, mas resgatar o poder libertador que ela nos mostrou no canto Magnificat, em Lc 1,39-57. Não o poder do mal, mas da força que nasce de uma vida liberta, quando os poderosos serão destituídos de seus tronos", escreve o Prof. Dr. Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o evangelho da Festa da Assunção de Maria, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto do Apocalipse 12, 1-10.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
O texto sobre o qual vamos refletir é Ap 12,1-10. Trata-se da mulher vestida de sol, um dragão poderoso e um filho indefeso. Qual a relação dessa passagem de Apocalipse com a devoção celebrada na festa da Assunção de Maria? Existe relação? Uma coisa podemos afirmar de antemão, não existe um texto na Bíblia que fala diretamente da Assunção de Maria. Os relatos sobre a Dormição, Trânsito e Assunção de Maria estão nos evangelhos apócrifos assuncionistas. Trata-se de cinco livros que foram escritos entre os séculos III e XIII. Ah! Outra pergunta: qual o sentido de celebrar a festa da Assunção de Maria, hoje? Qual o contexto dessa celebração?
Os evangelhos apócrifos assuncionistas narram que três dias antes de morrer, Maria recebeu, de Jesus, o anúncio de sua morte, no monte das Oliveiras. Outra tradição diz que foi um anjo que apareceu para ela. Nesse caso, uma palma lhe é dada como garantia da palavra de Jesus. Maria se prepara para o dia em que sua alma sairia do corpo. Os apóstolos chegam da missão, primeiro João, seguido dos outros. Em sua casa, em Jerusalém, na presença dos apóstolos, ela dormiu, que pode significar morreu. Jesus, nesse momento, tendo vindo ao seu encontro, pede aos apóstolos que preparem o corpo e o levem até um lugar indicado por ele, no Vale de Josafá. A alma de Maria é levada ao Céu pelo anjo Miguel e Jesus. Durante o cortejo, judeus querem destruir o corpo de Maria. Quando Pedro e os apóstolos chegam a um sepulcro, eles depositam o corpo de Maria e se sentam à sua porta.
Jesus aparece, novamente, rodeado de anjos, saúda os apóstolos com o desejo de paz. Exalta o fato de Maria ter sido escolhida para que dela Ele pudesse nascer. Por fim, Ele pede aos anjos que levem seu corpo para o céu, fato que veio a ser chamado de Assunção de Maria. Quando o corpo chega ao céu, Jesus coloca a alma novamente no seu corpo glorioso e a coroa como Rainha do Céu, fato celebrado nas coroações de Maria no mês de maio.
O surgimento dessa literatura apócrifa no século III marca o momento em que a Igreja passa a reconhecer com mais destaque o papel de Maria na história da Salvação. Dogmas sobre Jesus já estavam em processo de sedimentação. Restava valorizar a presença de Maria. Por isso, alguns textos bíblicos foram sendo interpretados à luz da presença de Maria. Um deles é Ap 12,1-10, que não é mariano, mas foi entendido como tal a partir do século IV.
A literatura apócrifa se expandiu e encontrou novos elementos para atribuir a Maria, a partir do início do segundo milênio do cristianismo, como o medo de morrer e ir para o inferno. Na Idade Média, a Igreja fez de Maria a advogada dos cristãos diante de seu Filho Jesus que agia como juiz na hora da condenação. Quem tivesse sido fiel devoto de Maria, estando no Purgatório, seria libertado por ela no primeiro sábado depois de sua morte. Surge, assim, a Maria gloriosa para fortalecer o poder da Igreja.
O texto de Apocalipse 12,1-10 trata, em linguagem apocalíptica, da realidade de perseguição dos primeiros cristãos. Interpretá-lo na perspectiva mariana significa atualizá-lo. A linguagem apocalíptica é de esperança e não de medo. Os primeiros cristãos são chamados a resistir, e esperar diante do Dragão, o império romano, que os perseguia. O poder do mal é absoluto, forte, parece invencível, tem sete cabeças, sete chifres e sete diademas. Sua cor é vermelha, o que simboliza o sangue derramado por ele. O dragão, apesar de toda a sua força, será derrotado pela força do ressuscitado, que derramou sangue de vida nova.
É nesse contexto que surge uma mulher vestida de sol, o que significa que ela participa da integração cósmica da criação divina. Ela tem a lua sob seus pés uma coroa com doze estrelas que simboliza as comunidades, e está grávida, isto é, mesmo com muito sofrimento, com dores de parto, a comunidade do Messias, filho dessa mulher, haverá de vencer o poder do mal.
Ainda que o poder do mal queira devorar o seu filho, ele nasce e vai para junto de Deus. A mulher foge para o deserto, lugar que simboliza a presença da força de Deus na terra. A mulher é terrena. Seu Filho, o Messias, é divino.
Resta-nos, agora, entender esses simbolismos apocalípticos em nosso tempo. Quais dragões que precisamos vencer? Quem são, como o Nero de ontem, as bestas imperfeitas do 666? Nero que incendiou Roma com tochas de fogo formadas por cristãos queimados vivos. Aliás, muitos de nós perdemos o vigor do ser cristão hoje, mas os Neros continuam vivos, festejando a vida em avenidas e rodovias movimentadas de motos e mortes!
Celebrar a Assunção de Maria significa não retomar o poder glorioso e triunfalista a ela atribuído na sua Assunção, o que representou o poder da Igreja Medieval, mas resgatar o poder libertador que ela nos mostrou no canto Magnificat, em Lc 1,39-57. Não o poder do mal, mas da força que nasce de uma vida liberta, quando os poderosos serão destituídos de seus tronos. Alimentemos essa esperança para continuar vivendo em meio a dragões.
Que Maria interceda a Deus por nós e nos cubra com seu manto de mãe. Ela que é a nossa origem, é nossa mãe na fé, a qual queremos voltar sempre. Ela é desejo! Ela é mãe! Por isso, a queremos sempre. Caminhar com ela, na fé, é acreditar que também seremos assuntos ao céu. Antes, porém, devemos transformar nossa realidade de sofrimento, angústia, dores e exploração social em situações de vida e glória. A assunção começa aqui.