03 Janeiro 2022
"O deserto é ausência física da intervenção humana, é falta, é privação, é vazio: um vazio salutar que pode dar lugar ao Espírito; um vazio em que o 'eu' e o 'nós' têm cada vez menos palavras a dizer".
A reflexão é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O artigo foi publicado por Settimana News, 24-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O ano litúrgico nos desafia a encontrar um sentido para a repetição, para além do tédio que o já visto pode provocar em quem está doente de modernidade e está sempre à procura de novas oportunidades e de novas emoções. Somos mais uma vez chamados a descobrir o segredo da Palavra e dos Sacramentos que se repetem nas diferentes épocas da vida pessoal e coletiva.
O que nunca deveria ser repetitivo é a nossa vivência pontilhada de medos, desejos, dúvidas, incertezas, perguntas, desequilíbrios, vícios e limites, em busca perene do sentido: um esforço para entender e acolher aos outros, um compromisso a ler e a interpretar as vicissitudes do mundo.
São precisamente as mudanças da nossa existência cotidiana que nos expõem à surpresa de Palavras e de Ritos antigos, repetidos às vezes até mesmo nas nossas igrejas, como a exumação de cadáveres, em vez de palavras e gestos que têm o poder de iluminar a escuridão da nossa vida e do nosso tempo.
Neste Advento, dois momentos me interpelaram de uma forma nova. Provavelmente, também neste caso, o novo é propiciado pela percepção dos limites que, apesar da idade, eu revelo no cotidiano, nas minhas relações com as pessoas: familiares, amigos, conhecidos.
Descobrir que sou inevitavelmente pecador consiste hoje para mim em constatar que não estou disposto a renunciar a hábitos, não aceito perder e exijo, me imponho, não sou atento e respeitoso com a sacralidade do Outro, não escuto, não compreendo e não sei encontrar caminhos de reconciliação e de perdão. E talvez muito mais que eu não sei.
Certamente, neste caminho que nos leva ao Natal, a releitura de muitos textos de Simone Weil – que eu retomei – levou-me a redefinir o pecado como o inevitável crescimento do ego.
O primeiro momento que me chama a atenção é o deserto. O Espírito convoca João Batista para o deserto. Certamente, a exegese a que estou acostumado levanta uma questão fundamental: o deserto é periferia, bem longe do Templo e dos Palácios. Como disse o Papa Francisco no dia 5 de dezembro passado: “A redenção não começa em Jerusalém, em Atenas ou em Roma, mas no deserto”.
Mas algo de novo paira sobre os pensamentos: o deserto é também ausência física da intervenção humana, é falta, é privação, é vazio: um vazio salutar que pode dar lugar ao Espírito; um vazio em que o “eu” e o “nós” têm cada vez menos palavras a dizer. Um vazio no qual o Espírito pode inspirar profecias. Então, me lembro desta aposta do deserto que se repete na história do Ocidente cristão: os Padres e as Madres de Tebaida, os anacoretas que se dissociam da traição perpetrada pela Igreja constantiniana e depois os eremitas desconhecidos até a Tamanrasset de Charles de Foucauld, que já haviam procurado respostas no não dito nem dizível do escondimento de Jesus em Nazaré, antes da vida pública.
E, inevitavelmente, não posso esquecer o “Bem-vindo ao deserto do real!”, de Slavoj Žižek, que nos fala das ruínas e dos escombros removidos da civilização capitalista. Um novo deserto a ser revelado e a ser frequentado com João Batista e Jesus de Nazaré. O deserto de uma humanidade fracassada, violenta e genocida.
O segundo momento é o sim de Maria de Nazaré ao arcanjo Gabriel: mais uma vez paira nos pensamentos a certeza do íntimo de Maria, sem as palavras do “eu”, sem pecado, deserto absoluto, cheio de Graça, humanidade na qual o Espírito Santo pode dançar e cantar.
Que este Natal confirme a nossa fé na materna misericórdia de Deus. Com os votos de que consigamos criar um pouco de deserto no nosso íntimo, para podermos reconhecer Jesus nos abandonados e oprimidos no deserto do real.
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Reconhecer Jesus no deserto do real. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU