03 Dezembro 2021
O naufrágio com 27 mortos e o tratamento desumano submetido aos migrantes em Calais provoca a reação enérgica da Igreja. Um jesuíta se declarou em greve de fome.
A reportagem é de Fran Otero, publicada por Alfa & Omega, 02-12-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A crise migratória voltou a Calais, na França. Na semana passada, a morte de 27 migrantes, quando tentavam cruzar o Canal da Mancha para o Reino Unido, tornou-se o ápice de uma situação que vem de muito tempo e que nos últimos tempos esteve marcada pelo aumento de migrantes na zona e pela política restritiva do governo francês, com os olhos postos nas eleições presidenciais de 10 de abril.
Há exato um mês, Philippe Demeestère, jesuíta de 72 anos, terminava uma greve de fome de 25 dias na paróquia de São Pedro. Buscava forçar o governo a parar com as expulsões dos acampamentos no litoral e o tratamento degradante da Polícia, que quer evitar a formação de assentamentos como o da Selva, desmantelado em 2016 e que abrigava milhares de pessoas.
“A cada dois dias, os migrantes são obrigados a sair dos acampamentos. Depois os deixam voltar. Nas barracas em que não há ninguém – por seus ocupantes terem ido carregar o telefone, ou buscar comida ou banho – são retiradas e destruídas com os pertences”, explica Demeestère a Alfa & Omega.
Sua greve não teve os efeitos políticos desejados, ainda que sim levou o foco midiático à zona. Diz que “é preciso ser mais combativo” e “seguir defendendo os migrantes”, e crê que as decisões a curto prazo passam por parar as expulsões durante o inverno e por uma reflexão conjunta de todos os atores implicado na situação. “É uma vergonha que se tolere esse tratamento desumano. O governo se comporta de maneira indigna”, acrescenta.
O jesuíta prega com o exemplo e, ademais de acolher migrantes em sua casa, trabalha para reabrir um albergue para menores não acompanhados, migrantes que saem do hospital e náufragos. O local no qual davam este serviço foi fechado pela prefeitura, que alegou não estar em condições. “É a hipocrisia total”, defende. Ademais, pelo Advento, estabelecer-se-á alguns dias com os migrantes em um dos campos. Montará sua própria barraca e pedirá hospitalidade.
Juliette Delaplaca, responsável pela Secours Catholique (Cáritas francesa), explica que nestes momentos há em torno de 1300 migrantes na zona – entre eles, muitos menores não acompanhados – de países como Sudão, Eritreia, Etiópia, Iraque ou Afeganistão e, portanto, com perfil de proteção internacional.
Em primeiro lugar, critica as condições nas quais se encontram os migrantes em uma época do ano que faz muito frio. Por exemplo, em outubro havia apenas 110 duchas para 1.100 migrantes que têm, ademais, problemas para se alimentar corretamente. Por isso, não entende que, ainda, estejam sendo postas travas às associações e ONG que trabalham na zona de Calais. Se compartilham alimentos ou água em determinadas zonas se expõem a multas.
“Encontramo-nos ante uma política de violação de direitos fundamentais. O objetivo é que estas pessoas não estejam na França e para isso lhes dão um tratamento degradante. Não há vontade política para mudar a situação”, acrescenta.
Na sua opinião, a solução em Calais passa por medidas a longo prazo. Refere três: a suspensão do Sistema Dublin, que “atrasa as resoluções das demandas de asilo” – ela acompanha migrantes que terão que esperar até janeiro de 2023 para que sua petição seja atendida –, a regularização para algumas pessoas e a abertura de vias legais para o Reino Unido. Pede que se leve em conta, por exemplo, que há pessoas que não iriam ao Reino Unido se lhes for dada a permissão de residência na França e que outras apenas querem ir ali porque têm familiares próximos no país.
Delaplace crê que a última tragédia “não mudará nada”, porque o país encontra-se imerso em um período eleitoral. “O governo está em lógica de segurança e repressão e o contexto político não é favorável, porém espero que estas pessoas sejam as últimas que faleçam. As mortes são evitáveis. É uma vergonha”, conclui.
Da sua parte, o bispo de Arras, diocese na qual se integra Calais, e vice-presidente da Conferência Episcopal Francesa, Olivier Leborgne, aponta a este jornal que a questão não se resolve “construindo muros”. “É uma ilusão, uma mentira que se está vendendo”, diz.
Neste sentido, recorda que as migrações têm sua razão de ser “nos grandes equilíbrios geopolíticos internacionais”. “Enquanto pensarmos nas relações internacionais como muros que precisam ser construídos entre países ricos e pobres não conseguiremos nada. Somente um compromisso com relações internacionais mais justas permitirá melhorar gradualmente a gestão deste assunto. Hoje em dia, estas relações não são equitativas, mas assimétricas. E os migrantes pagam o preço”.
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A Igreja com os migrantes de Calais: “As mortes são evitáveis” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU