Pandemia: a nova cepa e as velhas lógicas

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30 Novembro 2021

 

"Incapazes de coordenar defesa de suas populações, países ocidentais fecham-se à África. O que se sabe sobre a variante ômicron. Por que a resposta a ela é tão obtusa. Brasileiro que lidera sequenciamento condena atitude colonizada face à descoberta". 

 

O artigo é de Antonio Martins, jornalista e editor de OutrasPalavras, publicado por OutrasPalavras, 29-11-2021. 

 

Eis o artigo. 


O mundo estará mergulhando numa nova era de pandemias, da qual a covid é apenas o prenúncio? Esta hipótese, repetida muitas vezes nos últimos dois anos, pelos que falam em “crise civilizatória” ou “crise do Antropoceno”, pareceu materializar-se desde a última quinta-feira. A descoberta de uma nova cepa do coronavírus, potencialmente mais transmissível e mais capaz de escapar às vacinas, na África do Sul e Botswana, gerou uma espiral de pânico, que se alastrou com rapidez. Mas ao invés de resultar em medidas protetivas às populações, ela desencadeou um salve-se-quem-puder patético, em que as únicas políticas realmente eficazes foram cuidadosamente evitadas. Ao invés disso, prevaleceram ações que mal disfarçam seu caráter colonial e racista. Ainda não se sabe que tipo de ameaça representa, de fato, a variante ômicron. Porém, há ao menos um aspecto positivo nela: apontar como são necessárias, num mundo globalizado, políticas de Saúde pública que ultrapassem as fronteiras nacionais e estabeleçam bases para uma cidadania planetária.

 

Atestada pela Organização Mundial de Saúde na sexta-feira (26/11) e considerada “preocupante” [of concern, a grau mais alto de alarme da OMS], a eclosão do que hoje conhecemos como variante ômicron havia sido anunciada, dois dias antes, pelo ministério da Saúde da África do Sul. Sua identificação atesta o surgimento de capacidades sanitárias relevantes no Sul do planeta. O gráfico abaixo mostra que, mesmo sob influência do ômicron, a média móvel diária de casos novos é 22 vezes menor que a da União Europeia, cinco vezes mais baixa que a dos EUA e metade da brasileira.

 

 

 

Ainda assim, os centros de pesquisa epidemiológica da África do Sul identificaram a possível crise. Detectaram a eclosão, há algumas semanas, na província de Gauteng (onde se localiza a capital, Joanesburgo) de um novo surto. Descobriram que, embora os números absolutos das contaminações permaneçam muito baixos, a taxa de transmissão (“r”) avançou subitamente. Agora, cada pessoa contaminada pela covid transmite a doença a 1,47 — e, em Gauteng, a taxa é superior a 2,2. Se este padrão for mantido, há o risco de que, mesmo partindo de uma base muito pequena de infectados, a nova cepa se espalhe muito rapidamente — multiplicando contaminações e adoecimentos.

 

Um brasileiro — Tulio de Oliveira — está à frente dos trabalhos para sequenciar a nova cepa, na África do Sul. Formado em epidemiologia no final dos anos 1990, na UFRGS, migrou ainda no final do século passado. Hoje, dirige o CERI — Centro de Resposta Epidêmica e Inovação. Tornou-se uma figura midiática. É ouvido frequentemente pelas TVs sul-africana e participou com destaque de uma entrevista coletiva concedida, pelo governo desse país, na última sexta-feira (26/11). Nela expôs, em detalhes, o esforço de sequenciamento da nova cepa. Sua fala (veja a partir do minuto 11m) é impressionante. Ela relata o esforço de sequenciamento da nova cepa, poucos dias depois da descoberta da explosão de casos em Gauteng. E detalha (desde o minuto 22m) as descobertas incomuns de sua equipe. Enquanto a variante beta do coronavírus tinha três mutações em seu spike — o esporão, a partir do qual o vírus invade as células do corpo humano — e a variante delta tinha apenas duas mutações, a ômicron tem dez!

 

 

 

 

Isso significa, necessariamente, que ela será mais devastadora, ou mesmo mais capaz de driblar as atuais vacinas? Num artigo recém-publicado em coautoria, Túlio de Oliveira responde, com grande honestidade, que é impossível saber, por enquanto. Ele argumenta que falta examinar, a partir de uma base mais representativa, informações sobre as consequências da infecção; os sintomas; os prognósticos; o grau de vacinação dos infectados.

 

Uma médica sul-africana tornou-se conhecida ao narrar, no sábado, ao jornal britânico The Telegraph, que tratou dezenas de pacientes supostamente infectados pela ômicron; e que todos eles revelaram“sintomas leves”. Mas um texto no New York Times relativiza a consistência destes dados. Eles se referem, conta o jornal, a pacientes, em grande maioria, jovens. Nada se sabe ainda o que ocorrerá às populações idosas e ou vulneráveis atingidas pela nova cepa.

 

Diante da nova cepa, Estados Unidos, Inglaterra e diversas nações da União Europeia apressaram-se a adotar a medida mais simples e simplória: suspender os voos de e para nações africanas. Os alvos principais são África do Sul, Zimbábue, Zâmbia, Angola, Moçambique, Botswana e Lesoto. No Brasil, a Anvisa recomenda atitude semelhante. Adiantará de quê tal política grosseira? A variante ômicrom já aparece em dezenas de países fora da África. O brasileiro Tulio Oliveira sugere reconhecer que o fato de o vírus ter sido sequenciando no continente não significa que seja originário dali. E os escritores Mia Couto e José Eduardo Agualusa apontam, num texto breve e certeiro: “No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registrado 5 novos casos de infecção, zero internamentos e zero mortes por COVID-19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infecções”.

 

Que seria possível fazer, além de “culpar os africanos”? A resposta surge, por enquanto, pela negativa. No sábado, 27/11, chegaram a Amsterdam, em dois voos, 500 passageiros provenientes da África do Sul. Em condições normais, sequer teriam sido testados. Como a eclosão da ômicron havia se tornado notícia, foram. Resultou que 61 deles estavam infectados — 13 com a nova cepa. Haviam sido transportados pela holandesa KLM, uma das marcas da corporação global Air France. A empresa informou que não havia exigido atestados de vacina, nem testes negativos, de nenhum deles, porque as normas internacionais de controle hoje vigentes não o exigem. No mesmo dia, o governo britânico reconheceu que precisarão ser alteradas, já nesta terça-feira, as medidas que desobrigaram, desde julho, o uso de máscaras em lugares fechados e nos transporte público.

 

Proteger os lucros, acima das vidas; e evitar as medidas de solidariedade internacional. No Ocidente, esta tem sido, há dois anos, a tônica da reação caótica à covid. Em nome dos negócios, as empresas aéreas são dispensadas de testar seus passageiros. Para evitar qualquer precedente que submeta os mercados à lógica da redistribuição, permite-se que as grandes corporações farmacêuticas controlem a produção de vacinas. E não se considera a medida óbvia e perfeitamente viável que permitiria reduzir rapidamente a pandemia: vacinar adequadamente todos os habitantes do planeta.

Se sobrevier uma nova era pandêmica, sua causa essencial não serão os novos vírus – mas as velhas lógicas…

 

 

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