19 Novembro 2021
"Semelhantes situações extremadas – novas, velhas ou recicladas – colocam novos desafios para toda sociedade, mas em particular para as Igrejas cristãs, que procuram seguir de perto os passos de Jesus de Nazaré", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre, cs, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM – São Paulo.
Ao longo dos séculos, a história vem cavando “infernos de sofrimento humano” que desafiam a imaginação de Dante Alighieri, em sua monumental Divina Comédia. Os exemplos são muitos e muito variados. Os campos de concentração do regime nazista, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, com suas horripilantes câmeras de gás em vista da “solução final” para a eliminação do povo judeu – o famigerado holocausto – constituem sem dúvida a imagem mais negativa e perversa dessa patologia coletiva. Existem, porém, outros infernos estarrecedores de sofrimento humano. Atualmente, por exemplo, estamos presenciando um crescimento exponencial tanto do desemprego e subemprego quanto do trabalho informal, o que vem conduz à pobreza extrema, à miséria e à fome multidões anônimas e invisíveis.
Este flagelo, silencioso e estridente ao mesmo tempo, desfila pelas ruas, praças e campos em milhares e milhões de rostos desfigurados. Leva pessoas e famílias a recorrer aos ossos, antes descartáveis, como também a disputar com ratos, abutres e cães os dejetos que os caminhões atiram nos lixões. A intolerância e discriminação que pesa sobre indígenas, negros, minorias étnicas, entre outros grupos, vem se acirrando com a predominância dos governos de extrema-direita. Nas fronteiras entre os países multiplicam-se às centenas “campos de refugiados”, com milhões de migrantes retidos devido à rigidez seletiva da legislação migratória. Ao escapar da carência e da violência são barrados às portas do sonho possível. Outros, aos milhões, embora já tenham conseguido passar os limites geográficos que cortam as nações, amargam o medo diário da deportação, porque dispõem de documentação regular.
Não é diferente o cenário deprimente do sistema prisional do Brasil, a degradação do povo em situação de rua, as feridas abertas das vítimas do tráfico humano e do trabalho escravo, o uso devastador do álcool e das drogas nas numerosas “cracolândias” que vão se formando no mundo urbano. Não poucas dessas tribulações recaem, de forma mais aguda, sobre mulheres e crianças, forçadas a conviver em um sofrimento infernal, agravado pela pandemia da Covid-19. Quantas se viram obrigadas a esconder seus hematomas para não piorar as coisas no interior das próprias famílias! Quanto crimes acobertas pela inviolabilidade do lar!
Semelhantes situações extremadas – novas, velhas ou recicladas – colocam novos desafios para toda sociedade, mas em particular para as Igrejas cristãs, que procuram seguir de perto os passos de Jesus de Nazaré. No caso do credo católico, somos convidados a rezar na missa que o Filho “foi crucificado, morto e sepultado. Desceu a mansão dos mortos. Ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, está sentado à direita de Deus Pai”. Antes de se elevar aos céus, o Ressuscitado desce à mansão dos mortos. Nos dias de hoje, são inúmeros os mortos-vivos (ou vivos-mortos) que erram como espectros pelos becos e vielas de nossas cidades. A multidão dos “excluídos, invisíveis ou descartáveis”, no olhar de pastor do Papa Francisco. Daí sua insistência de uma “Igreja em saída”, a qual, em lugar de esperar pelos fiéis nas portas do templo, se desloque ao encontro dos pobres e necessitados, escondidos nos porões e grotões, nas favelas e periferias, nas encruzilhadas e zonas fronteiriças.
Setores da Igreja católica, entretanto, seguem fazendo “ouvidos moucos” às palavras, gestos e profecia do pontífice. Há mais aconchego no refúgio e esplendor da sacristia, com o brilho dos cálices, velas, patenas e vestimentas sacras; há mais segurança no formalismo ritual e litúrgico, que evita perguntas e interrogações perturbadoras; há mais autoridade (ou seria autoritarismo?) na figura do sacerdote/ministro revestido de sua indumentária tradicional, a qual, além disso, costuma agradar os fiéis desavisados; há mais comodidade na pompa das grandes solenidades que, em lugar da escuta, das dúvidas e das inquietudes, proporciona espetáculos de encher os olhos, quando não as cestas da coleta. Vivo permanece o alerta: “se a Igreja não se dispõe a descer aos infernos do sofrimento humano, dificilmente poderá subir aos céus!
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Descer ao inferno para subir aos céus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU