09 Novembro 2021
“Uma análise da justiça racial da migração haitiana nas Américas não apenas ilustra as violações dos direitos humanos com base na discriminação racial que enfrentam, mas também revela como o racismo estrutural contra os negros permeia a região e as sucessivas leis e políticas de imigração dos países. Além disso, uma análise de justiça racial também ilumina os limites do direito internacional dos refugiados”, escreve Priya Morley, assessora de políticas de justiça racial na Promise Insititute for Human Rights, da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia (UCLA), EUA, em artigo publicado por IPS Noticias e reproduzida por Jesuítas da América Latina, 27-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Muitas pessoas se comoveram pela recente “crise” na fronteira entre os Estados Unidos e México, quando milhares de migrantes haitianos tentaram entrar nos Estados Unidos e foram recebidos com violência pelas mãos dos agentes da Patrulha de Aduanas e Fronteiras dos Estados Unidos.
Mas, desde então, mais de 7500 haitianos foram deportados dos EUA sob o pretexto do Título 42, uma medida de “saúde pública” amplamente criticada, que provavelmente viola o direito internacional (em particular o princípio de não devolução) e que é prejudicial, em especial “devido à violência, anarquia e instabilidade” no Haiti neste momento.
Como muitos apontaram, esta resposta faz parte de uma longa história de leis e políticas de imigração estadunidenses racistas, contra negros e, especificamente, contra haitianos. No entanto, o que não recebe atenção suficiente é como o racismo e a xenofobia afetaram esses haitianos ao longo de sua rota migratória.
É essencial aplicar uma lente de justiça racial transnacional não apenas para entender a recente migração haitiana através das Américas, mas também para desenvolver qualquer resposta legal ou política ao futuro da migração na região.
Em vários países latino-americanos, as leis e as políticas de imigração foram acolhedoras no início, ainda que apenas fosse para facilitar a exploração temporal da mão de obra “barata” haitiana.
Depois, à medida que as economias nacionais declinavam, os governos de direita fomentaram o sentimento racista e anti-migrante e restringiram a imigração para excluir os haitianos da proteção legal e dos territórios nacionais.
Muitos haitianos emigraram primeiro para o Brasil depois do terremoto que assolou o Haiti em 2010, que exacerbou a instabilidade política e econômica do país e provocou uma maior insegurança e violência. A partir de 2011, o Brasil concedeu vistos de trabalho a haitianos, em parte para utilizar sua “mão de obra barata” para preparar a Copa do Mundo FIFA de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Entre 2010 e 2018, quase 130 mil haitianos entraram no Brasil, mas menos de 7 mil obtiveram o status de refugiados, em parte porque fugir de um desastre natural não era uma justificativa legal aceitável.
Quando o Brasil caiu em uma recessão econômica em 2014, muitos haitianos ficaram sem emprego, com menos vias para conseguir um status legal permanente e com um aumento do racismo e da xenofobia no país.
É essencial aplicar uma lente de justiça racial transnacional não apenas para entender a recente migração haitiana através das Américas, mas também para desenvolver qualquer resposta legal ou política futura à migração na região.
A partir de 2014, muitos haitianos começaram a emigrar para o Chile, saindo do Brasil e Haiti. A ex-presidente Michelle Bachelet, como parte da resposta humanitária do Chile ao terremoto de 2010 no Haiti, facilitou aos haitianos que entraram no Chile com vistos de turistas para que obtivessem o de trabalho, assim que encontrassem emprego no país. O número de haitianos que residem no Chile cresceu exponencialmente, a mais de 185 mil, a partir de dezembro de 2019.
Porém, com o aumento da visibilidade chegou a discriminação generalizada baseada na raça e no gênero, que impactou a capacidade dos migrantes haitianos para encontrar emprego, acessar os serviços ou se integrar de outra maneira na sociedade chilena.
Segundo estudo de 2018, que investigou as condições de trabalho para os migrantes haitianos, dos quais 33,8% da mostra eram mulheres, 48% havia experimentado discriminação e disse que isso foi uma barreira significativa para obter um emprego.
À medida que a visibilidade dos migrantes haitianos crescia nos centros urbanos do Chile, o tema da imigração se situou no primeiro plano de debate público. O então candidato presidencial Sebastián Piñera fomentou o sentimento anti-migrante em sua campanha eleitoral e, depois de assumir o cargo em março de 2018, suspendeu rapidamente os vistos que haviam permitido que os haitianos trabalhassem no Chile.
Entre outubro de 2018 e maio de 2019, sua administração “devolveu voluntariamente” 1400 haitianos para o Haiti. Não há registro de que nenhum haitiano tenha obtido o status de refugiado entre 2010 e 2019.
Muitos destes migrantes haitianos tiveram que abandonar a América do Sul, frequentemente com seu filhos recém-nascidos, e buscar segurança nos Estados Unidos.
A rota migratória atravessa aproximadamente 11 mil quilômetros e onze países, e seus horrores, em particular nos mais de 150 km da Floresta de Darién, entre Colômbia e Panamá, estão bem documentados. Quando estes migrantes chegam à fronteira sul do México, encontram-se com o “muro mexicano”.
Desde 2019, devido em grande parte à pressão econômica que os EUA exercem sobre o México, as autoridades mexicanas deixaram de expedir as “permissões de saída” que antes permitiam aos migrantes haitianos (e africanos) transitar até a fronteira entre México e Estados Unidos para solicitar asilo no país.
Em vez disso, os haitianos e seus filhos estão entrando no sistema de imigração mexicano em maior número: em agosto de 2021, os haitianos eram o segundo maior grupo de requerentes de asilo no México, depois dos hondurenhos.
Conforme documentado em nosso relatório recente, os haitianos enfrentam vários obstáculos no México, incluindo: barreiras linguísticas; abusos racistas cometidos por funcionários da imigração, outros migrantes e cidadãos mexicanos; discriminação no emprego e habitação; e exclusão social e isolamento.
As mulheres haitianas enfrentam formas de discriminação de gênero, mesmo quando procuram atendimento de saúde reprodutiva. Como descreve uma das mulheres haitianas entrevistadas no relatório, “é como se o sangue que corre em suas veias não fosse igual ao sangue em nossas veias. Eles olham para você como se você não fosse nada porque você é negro”.
Os migrantes haitianos e outros afrodescendentes, junto com os afro-mexicanos e indígenas mexicanos, também sofrem o impacto negativo do racismo e da discriminação generalizados com base na cor da pele no México.
É nesse contexto, depois de esperar meses ou anos para ser processado por um sistema de imigração mexicano com poucos recursos e sobrecarregado, que milhares de haitianos chegaram recentemente à fronteira EUA-México.
Esta não é uma “crise” temporária: ainda existem milhares de haitianos no México, e outros milhares na rota de migração, que dificilmente serão dissuadidos de buscar asilo nos Estados Unidos.
Como mencionei antes, uma análise da justiça racial da migração haitiana nas Américas não apenas ilustra as violações dos direitos humanos com base na discriminação racial que enfrentam, mas também revela como o racismo estrutural contra os negros permeia a região e as sucessivas leis e políticas de imigração dos países.
Além disso, uma análise de justiça racial também ilumina os limites do direito internacional dos refugiados.
A definição de “refugiado” articulada na lei internacional de refugiados muitas vezes exclui negros, indígenas e outras pessoas racializadas que são cada vez mais forçadas a migrar devido à desigualdade global (“migrantes econômicos”) e, em relação a isto, os impactos ambientais e humanos da mudança climática nas nações e populações mais marginalizadas (“migrantes climáticos”).
Esses fenômenos são as manifestações atuais das histórias de colonialismo (de colonização) e escravidão, imperialismo (EUA) e a exploração (atual) dos recursos naturais em toda a região, incluindo o Haiti, e devem ser entendidos como questões de justiça racial. Ambos a nível nacional e transnacional.
A resposta a esses fenômenos, e especificamente à migração haitiana que está ocorrendo como resultado, requer não apenas uma resposta regional baseada nos direitos humanos, mas também uma resposta racialmente justa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A migração haitiana: injustiça racial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU