"É importante lembrar que Francisco não criou tensões na Igreja, ele as herdou. É necessário também compreender que a situação criada pelo Summorum pontificum era intrinsicamente instável porque o experimento de Bento XVI não tinha raízes na história da Igreja", escreve Rita Ferrone, autora de vários livros sobre liturgia, incluindo “Liturgy: Sacrosanctum Concilium” (Paulist Press), em artigo publicado por America e reproduzido por Settimana News, 21-10-2021. A tradução da versão italiana é de Luisa Rabolini.
Desde que o Papa Francisco promulgou o motu proprio Traditionis custodes, limitando o uso dos ritos litúrgicos que precederam as reformas do Concílio Vaticano II, muitos na Igreja têm se esforçado para compreender as implicações de sua ação. Por que o papa fez isso? O que objetiva? Como a Igreja deveria responder?
Para colocar em perspectiva a decisão do Papa Francisco, é necessário compreender a situação imediata que a gerou. A história começa com outro motu proprio, emitido pelo antecessor de Francisco: o Papa Bento XVI publicou o motu proprio Summorum pontificum em 2007 para liberalizar o uso dos ritos anteriores às reformas do Vaticano II. Antes do Summorum pontificum, todo sacerdote que quisesse celebrar os ritos anteriores precisava obter permissão de seu bispo.
Bento XVI removeu o bispo local da equação, dando permissão direta para celebrar os ritos anteriores ao Vaticano II a qualquer padre que assim o desejasse. O Summorum pontificum afirmava também que, sempre que uma comunidade estável regularmente solicitava a missa em sua forma anterior, "o pároco deveria consentir de bom grado aos seus pedidos de celebrar a Santa Missa de acordo com o rito do Missal Romano de 1962".
O Papa Bento XVI essencialmente criou uma situação que nunca havia existido antes, na qual duas formas do Rito Romano (uma reformada, outra não) seriam praticadas livremente ao mesmo tempo em toda a Igreja. Ele previu que essas duas formas de celebrar a liturgia teriam coexistido pacificamente e se teriam enriquecido mutuamente. Ele cunhou o termo "forma ordinária" para descrever o rito reformado pelos decretos do Vaticano II e chamou o rito contido nos livros litúrgicos publicados em 1962 de "forma extraordinária".
Há alguns indícios de que Bento XVI considerasse essa situação transitória, uma espécie de experimento, para benefício de todos. Era, primeiramente, um meio de reconciliar os tradicionalistas com a autoridade papal e curar o cisma causado pelo Arcebispo Marcel Lefebvre e seus seguidores (a Fraternidade São Pio X), que não aceitavam o Vaticano II. Em segundo lugar, parecia que ele queria ver a maior disponibilidade do rito mais antigo desencadear uma "reforma da reforma", na qual o rito pré-Vaticano II influenciaria o rito pós-Vaticano II tanto na teologia quanto na prática.
Certamente é assim que sua iniciativa foi interpretada na prática. Quando Bento XVI falou de "enriquecimento mútuo" entre as duas "formas" do rito romano, aqueles que aplaudiram esse desenvolvimento esperavam que o "enriquecimento" fluísse para o rito reformado, e não para a reforma.
No final, o experimento falhou. A Fraternidade São Pio X nunca quis se reconciliar, e os mais ardentes expoentes do antigo rito que estavam em união com Roma continuaram a criticar duramente a reforma, semeando dúvidas sobre a sua legitimidade. Aqueles que deviam ser reconciliados não se tornaram mais favoráveis ao Vaticano II. Em vez disso, eles fortaleceram a sua oposição, agora a partir de uma base dentro da Igreja, tornando-se mais duros e exigentes.
Do lado da corrente principal, os esforços para "reformar a reforma" não foram acolhidos favoravelmente. Aqueles que celebravam a missa de acordo com as reformas do Vaticano II se ressentiam de ouvir que sua piedade era insuficiente, que deveriam virar seus altares ou parar de receber a comunhão nas mãos, ou que a liturgia seria mais santa se as mulheres tivessem sido excluídas do altar. Quando o cardeal Robert Sarah, então prefeito da Congregação para o Culto Divino, exortou os sacerdotes a virar os altares e os fiéis a receberem a comunhão apenas na língua, isso causou um verdadeiro pandemônio.
O Papa Francisco teve que contê-lo e pediu ao Cardeal Sarah que não usasse o termo "reforma da reforma" no futuro. Surgiram problemas também dentro de vários institutos de vida consagrada dedicados à liturgia mais antiga, com a consequente necessidade de maior disciplina. Alguns foram até suprimidos.
É importante lembrar que Francisco não criou essas tensões; ele as herdou. Também é necessário entender que a situação criada pelo Summorum pontificum era intrinsicamente instável porque o experimento de Bento XVI não tinha raízes na história da Igreja e nunca foi totalmente integrado no sistema pelo qual é administrada a Igreja como um todo. O papa Bento XVI esperava proteger a forma extraordinária estabelecendo um nicho para ela e libertando-a da interferência dos bispos pouco propensos a ela. A consequência desse acordo, entretanto, foi que a Igreja como um todo nunca assumiu o projeto.
Para ser honesto, provavelmente nunca poderia tê-lo assumido. Houve disjunções demais com o Vaticano II para tornar esses ritos verdadeiramente "adequados" para o normal funcionamento da Igreja pós-conciliar. Olhando para trás, é surpreendente que alguém pudesse esperar que esse acordo institucional levasse a uma visão compartilhada.
A forma extraordinária passou por cima do bispo local, cuja tarefa é ser o presidente da liturgia da diocese. Passou por cima da Congregação para o Culto Divino e da disciplina dos sacramentos, cuja tarefa é supervisionar e assistir à Igreja mundial na vida litúrgica. Passou por cima da congregação curial que trata da vida religiosa. O rito mais antigo respondia à Comissão Ecclesia Dei, situada na Congregação para a Doutrina da Fé: que não tem uma competência litúrgica - mas o dicastério foi encarregado de tomar decisões cruciais sobre as orações para a forma extraordinária.
Os padres do Vaticano II podem não ter previsto todas as consequências da reforma litúrgica que desencadearam, mas nunca imaginaram ter dois conjuntos de livros litúrgicos, dois catecismos ou dois protocolos distintos para se relacionar com a Cúria, muito menos ter clérigos que escolhem qual rito celebrar, independentemente de seus bispos. Até o prefeito do Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos de Bento XVI, o cardeal Kurt Koch, reconheceu que tal situação não poderia durar: "a longo prazo... A coexistência das duas formas não pode continuar".
Infelizmente, a concessão de uma permissão imediata aos sacerdotes para realizar os ritos mais antigos também autorizou um certo tipo de clérigo a se considerar superior e fora do alcance da disciplina. Esse não é apenas o caso no mundo online, onde os padres tradicionalistas reúnem "seguidores" independentemente de qualquer atribuição pastoral. A condição criada também pode gerar confusão diretamente na paróquia.
Lembro-me da história de uma pequena paróquia católica na Inglaterra para a qual um desses padres havia sido designado. Ele decidiu unilateralmente substituir a liturgia paroquial principal pela forma extraordinária, e retirou o altar pós-conciliar da Igreja.
Quando questionado sobre o que o bispo poderia dizer em resposta a tais manobras agressivas, ele respondeu: "o bispo precisa mais de mim do que eu dele".
Em 2020, o Papa Francisco realizou um levantamento entre os bispos do mundo para avaliar os efeitos do Summorum pontificum. Foi em resposta a essas avaliações que Francisco tomou a decisão de revogá-lo. Os resultados do levantamento não foram divulgados, mas Francisco explicou na carta que acompanha o Traditionis custodes que os resultados foram profundamente preocupantes. Ele sentiu que deveria intervir para o bem da unidade da Igreja.
Esse passo era realmente necessário? Não se pode ignorar a literatura vinda dos blogs tradicionalistas, sites e outros locais de publicação que procurou minar a reforma litúrgica que saiu do Vaticano II e recicla falsidades sobre como ela tomou forma.
No entanto, imagino que os bispos do mundo possam ter tido questões mais mundanas em mente. Uma experiência recente em Dijon, França, pode servir de exemplo. O bispo de Dijon tinha dois sacerdotes que celebravam a forma extraordinária em sua catedral e pediu-lhes que concelebrassem com ele a Missa crismal. Eles recusaram. Por quê? Porque a forma extraordinária não permite a concelebração!
A Missa Crismal é um sinal da unidade do sacerdócio, mas a eles não importava; eles teriam celebrado apenas de acordo com o rito mais antigo. O bispo decidiu não os deixar exercer o ministério na diocese, e acredito que essa escolha foi justificada. Mas não acabou aí. Seguiu-se um enorme protesto da comunidade tradicionalista e tornou-se um caso internacional.
Lembro-me de outro fato que aconteceu no meio-oeste estadunidense. Um bispo convidou alguns sacerdotes de uma das ordens tradicionalistas em sua diocese, pensando que poderia usar sua ajuda devido à falta de sacerdotes. Mas quando chegaram, esses padres não queriam celebrar a missa na forma ordinária. Bem poucas pessoas queriam o rito mais antigo, por isso tinham pouco a fazer e, em vez de dar uma mão, não faziam nada na diocese.
O que estamos protegendo aqui? Quem é servido? Não é suficiente avaliar o Traditionis custodes através da lente estreita de como isso afeta o pequeno número de pessoas que atualmente celebram de acordo com o rito antigo, mesmo que o impacto da decisão de Francisco sobre elas certamente será significativo. Em vez disso, é essencial dar um passo atrás e ver o quadro geral. O que Francisco fez não diz respeito apenas àqueles que usam os ritos anteriores ao Concílio. Ele deu um passo estratégico que afetará toda a Igreja.
O que Francisco fez foi restabelecer a prioridade do Vaticano II em nossa vida litúrgica. Basicamente, está dizendo que ninguém mais pode voltar para antes dele. Seu motu proprio visa garantir um futuro comum no qual a nossa liturgia será construída sobre um fundamento único e coerente. É uma manobra a favor do que ele chamou de "expressão unitária do Rito Romano" firmemente ancorada nas reformas do Vaticano II. Cada católico deveria se preocupar com isso.
O Papa Francisco disse em outras ocasiões que a reforma da liturgia é irrevogável. Também disse aos jovens que são críticos da reforma que é importante entender a liturgia reformada de dentro e desenvolver uma compreensão de suas dinâmicas internas e das formas precisas com que ela encarna a nossa fé. Em outras palavras, a melhor abordagem para a liturgia não é ficar fora dela como um crítico, mas estar dentro dela como um povo fiel, permitindo que ela nos molde em um corpo de Cristo. É um processo.
Para iniciar esse processo, a Igreja tinha que estabelecer alguns princípios básicos, como Francisco fez agora. Na carta que acompanha o Traditionis custodes, ele descreveu os ritos reformados como a única expressão da "lex orandi". Os ritos reformados mantêm o padrão e estabelecem o padrão para o nosso tempo. Isso deve ficar claro.
A Igreja pode manter um padrão, mas permitir exceções: dar tempo às pessoas, mantê-las no barco, acompanhá-las. Mas o objetivo é que todos finalmente cheguem ao ponto em que possam dar um assentimento sincero ao rito reformado "de dentro". Seria gravemente anormal favorecer uma situação como a que Michael Brendan Doherty descreveu em seu recente artigo no New York Times quando declarou: “Os meus filhos não podem voltar para [a nova missa]; não é a sua formação religiosa. Francamente, a nova missa não é a religião deles”.
Francisco pretende eliminar completamente os antigos ritos? Ele não disse que o faria e sempre foi bastante tolerante com o uso limitado dos antigos ritos no passado. Se ele considerasse que sua eliminação é necessária como meio de preservar a unidade da Igreja, entretanto, acredito que não hesitaria em fazê-lo. Penso que Francisco tem uma direção pastoral em mente.
A carta que acompanha o motu proprio convida os bispos de todo o mundo a se juntarem a ele na supervisão responsável da liturgia, usando os princípios que ele articulou. Acredito que ele deseja que os bispos ajudem seu povo a se engajar sinceramente na liturgia reformada como um só povo - algo que ele mesmo se esforça para fazer em seu ministério.
O Papa Francisco sabe muito bem que a vida moderna está repleta de tentações de inquietação. Alguns sempre ficarão tentados a procurar uma capela separada porque sentem que “há uma magia que aqui falta. Há um mistério de que sinto falta”. O que ouvi dizer é que o mistério está aqui. Procurando, nós o encontramos. Nós o descobriremos nas coisas humildes se nos aproximarmos do Senhor com um coração humilde e pedirmos ao Espírito Santo para nos guiar.
É evidente que existe uma situação pastoral mista na prática. Enquanto alguns apresentam argumentos em oposição ao Vaticano II, há outros que preferem os ritos mais antigos simplesmente por razões estéticas e pessoais, não porque rejeitam o Concílio ou consideram a liturgia reformada como não ortodoxa. Talvez eles se sintam atraídos pelos ritos antigos por sua ênfase na cerimônia e reverência, silêncio e adoração. Ou talvez tenham sido desincentivados por celebrantes despreparados ou por liturgias alegres e piegas em sua paróquia natal.
A boa notícia é que há um caminho a percorrer para esses católicos sem recorrer aos livros litúrgicos de 1962. Se o latim e o canto gregoriano são o necessário para satisfazer o desejo de uma atmosfera mais reverente na missa ou um senso da "alteridade” de Deus, é fácil imaginar como isso possa ser alcançado.
Os lugares que atualmente hospedam a forma extraordinária poderiam se tornar centros onde a liturgia reformada é celebrada em latim, com canto gregoriano. Temos muita experiência em hospedar uma diversidade de estilos na liturgia paroquial; isso não deve comportar uma bifurcação do Rito Romano ou duas séries distintas de normas litúrgicas.
A chave para seguir em frente pode ser tão simples quanto esta: falem com os seus sacerdotes. Procurem celebrações mais solenes do rito reformado. Façam a si mesmo o favor de levar a sério o conselho do Papa Francisco e dediquem algum tempo explorando a liturgia reformada "de dentro", aprendendo a apreciar melhor as suas dinâmicas internas e as suas formas externas. Estudem a missa. Rezem a missa. Encontrem o seu lugar na corrente da tradição que ainda vive na liturgia reformada: e que vive em abundância se a buscarmos.