21 Julho 2021
Para entender o que acontece na Igreja Católica após o aguardado decreto (motu proprio) do Papa Francisco que limita o uso da liturgia em latim, os especialistas poderão explicar em detalhes muitas coisas. Mas para o leigo, continuará difícil entender a importância do nó que Francisco abordou e desafiou com coragem e visão.
O comentário é de Riccardo Cristiano, vaticanista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, publicado por Reset, 20-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A questão que ele colocou não é de forma alguma ideológica. Por oito anos ele permitiu que aquele rito fosse celebrado livremente em todos os lugares. Mas agora ele constatou que, nos fatos que tantos bispos lhe relataram, está se tornando uma oportunidade para promover e divulgar visões anticonciliares, isto é, contra o Concílio Vaticano II. Mas como? Vamos dar um exemplo que tem a ver com outro contexto.
Grandes especialistas em questões litúrgicas, muitos ex-comunistas se lembrarão do debate que esquentou tantas de suas assembleias: "Pode-se escrever marxismo-leninismo sem hífen?" Aqueles que respondiam que sim, ou melhor, que deveria ser escrito sem hífen, em substância negavam a existência de um único corpo, eterno e imutável, codificado para sempre, ou melhor, imodificável, no qual todo Marx confirmaria (embora seja impossível) todo Lenin. É precisamente o marxismo-leninismo, necessariamente com o hífen. No entanto, na referência ao marxismo leninismo, Marx e Lenin permaneceram o que eram aos seus olhos, porém sem a ilusão de que a doutrina era uma, eterna, compacta de A a Z, sempre e em tudo. Marx não podia ser usado para criticar qualquer "mínima decisão" de Lenin. Tudo é coerente e imodificável. Estávamos discutindo isso, discutindo aquele hífen ...
Todo o movimento operário transferia a utopia para o futuro, para o amanhã, para o sol do devir, mas o caminho para alcançar o tão esperado amanhã pelos apologistas do marxismo-leninismo tinha que ser certo, uma linha reta eterna da qual ninguém poderia desviar um único centímetro. Nenhuma concessão ao pensamento burguês, nenhum repensamento, nenhuma lição da história poderia ser transmitida ou aceita pela ala em marcha do proletariado: eles, os depositários da utopia perfeita que será alcançada seguindo o caminho traçado pelo marxismo-leninismo, tinham apenas que ler, nunca escrever.
Grande parte do pensamento religioso, ao contrário do movimento operário, transfere a utopia para o passado. Voltar às origens é o que muitas vezes se indica como caminho. Obviamente, seria importante, mas para muitos católicos as origens não são aquelas dos padres da Igreja, quando os cristãos eram perseguidos pelo poder constituído, que eles contestavam. Não, as origens estão no constantinismo, ou seja, nos tempos em que a Igreja se tornou o poder, o imperador presidia os Concílios. O discurso na realidade não diz respeito tanto a Constantino, no caso deveríamos referir aos seus sucessores, aqueles que impuseram o cristianismo (um cristianismo, aquele que definiram como "ortodoxo", com péssimas consequências para os "hereges") como religião de Estado, (com consequências nada desagradáveis para os outros). Assim, o antigo rito, aquele em latim, embora certamente não remonte àqueles tempos, mas apenas ao século XVI, com a relativa revogação de todos os precedentes, dá a alguns católicos a ilusão de serem sempre os mesmos, "imutáveis".
Imutáveis: esta é a chave para compreender o duplo falso: o falso litúrgico, ou seja, que o rito de Pio V seja o "rito de sempre" da Igreja Católica, que ao escolhê-lo permaneceria, portanto, fiel à sua tradição, eterna e imodificável, e o falso ideológico, isto é, que o cristianismo seja uma ideologia e como tal imodificável, igual a si mesma além do tempo e da história.
Este cristianismo ideológico na realidade liberou o capitalismo-católico, pronto até mesmo a se casar com o liberalismo econômico a fim de se iludir de permanecer agarrado ao poder que em troca lhe dá algumas concessões sobre a forma-família para obter o aval do que lhe interessa, a transformação da sociedade em um sistema individualista e consumista, mas sobretudo lhe concede a cobertura "religiosa" da política internacional, com a conhecida teoria do choque de civilizações.
Assim, a missa em latim é usada para convencer os fiéis de que os muçulmanos são eternos inimigos e infiéis, como nos dias de Lepanto, os judeus são no mínimo um problema (naqueles ambientes o antissemitismo é generalizado), a modernidade um desvio dos valores sagrados e o cristianismo o justo inimigo de todas as falsidades, a âncora de salvação a partir da imodificável família, não tanto por ser baseada no matrimônio (que, aliás, significa "o que compete à mãe" à diferença do patrimônio que significa "o que compete ao pai") mas porque se baseia no pater familias, ou seja, no domínio, da mulher e da natureza, para serem exploradas à vontade. É a cosmologia da dominação, que em minha opinião tem bem pouco a ver com Jesus.
Mas Francisco não tem nada contra o rito em latim, a sua ideologia não é conciliar. Ele não disse não a um rito, mas a um fato: que o cisma daqueles que rejeitaram o Concílio porque ele recusava a liberdade religiosa voltasse pela porta de um rito usado para dizer o que o Concílio colocou no porão, ou seja, que fora da própria verdade, existem apenas crenças falsas e, portanto, uma falsa humanidade. Ideia que pessoalmente não considero muito distante do que pensavam os guardiões do marxismo-leninismo, com o hífen.
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Missa em latim: o rito transformado em ideologia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU