27 Julho 2021
"Por trás da opção de celebrar a missa tridentina, tem quase sempre a rejeição ao Concílio Vaticano II e a todo o seu espírito. Ninguém de bom senso nega isso. Os próprios usuários do rito antigo não escondem sua inaceitação do Concílio, de sua teologia e sua espiritualidade", escreve Marcelo Barros, monge beneditino, escritor e teólogo.
Louvado seja Deus pela coragem profética do papa Francisco que, mal sai de uma semana hospitalizado e volta ao seu ofício de pastor encarregado da unidade das Igrejas e ele já assina um Motu Proprio interferindo nas celebrações de missa que, em todo mundo, se fazem conforme o rito (considerado extraordinário) anterior ao Vaticano II.
A primeira coisa que me chama a atenção é que isso se deu nesses dias nos quais a sua cirurgia revelou uma realidade nova de fragilidade para um homem de 84 anos de idade e quando a imprensa comenta o seu isolamento no meio do episcopado e do clero. Nesse contexto, só uma grande liberdade interior explica que ele tivesse decidido mexer no vespeiro que é a prática litúrgica dos tradicionalistas e a situação atual da Liturgia Romana.
Louvado seja Deus pela coragem e a lucidez com a qual ele modificou leis emitidas pelos seus dois antecessores imediatos e explicou os motivos com toda clareza e transparência.
O rito é sempre expressão de uma cultura e nesse sentido, quase poderia parafrasear Paulo dizendo: com esse ou aquele rito, pouco importa, contanto que Deus (e o Cristo) seja louvado. Embora isso contenha uma verdade, não é tão simples assim. No século VI, São Gregório Magno ensinava que existe dois tipos de idolatria: o primeiro consiste em adorar deuses falsos. O segundo, que ele considerava mais comum e perigoso se dá quando se adora o Deus verdadeiro de uma maneira falsa. Então, no caso que nos ocupa aqui, a primeira coisa a se perceber (basta percorrer as fórmulas litúrgicas de um e outro rito) é se a forma de adorar a Deus é igualmente evangélica ou se há uma diferença substancial entre os dois ritos.
No motu próprio Traditionis Custodes, a observação do papa Francisco é que está comprovada: no atual uso do rito de Pio V, não está em questão apenas um gosto litúrgico tradicional ou um tipo de piedade do padre. Por trás da opção de celebrar a missa tridentina, tem quase sempre a rejeição ao Concílio Vaticano II e a todo o seu espírito. Ninguém de bom senso nega isso. Os próprios usuários do rito antigo não escondem sua inaceitação do Concílio, de sua teologia e sua espiritualidade.
Talvez precisemos ser mais claros e sinceros: em toda a Igreja Católica, esse repúdio ou ódio ao Concílio foi disseminado durante os trinta e cinco anos anteriores ao ministério de Francisco. E sejamos claros: não foi alimentado apenas por padres velhos ou jovens que tentam esconder por trás da sofisticação clerical da sua piedade litúrgica seus desacertos psicológicos ou pessoais. Foi cultivado mesmo por autoridades do Vaticano e sob a complacência benévola e de vez em quando bênção dos dois últimos papas.
Mais do que discussões sobre doutrinas ou liturgias, o que estava por trás dessa reação anti-conciliar era o modelo de Igreja neocristandade. Ligado a esse modelo, vinha junto a concepção do culto sagrado, a compreensão do ministério ordenado e da relação de superioridade da Igreja Católica com relação às outras Igrejas, às outras religiões e ao mundo.
Ao ler agora o motu proprio do papa Francisco, minha primeira reação foi o sofrimento de pensar que o papa fica mais sozinho. Mais uma vez, é um João Batista que grita no deserto. O seu documento devolve a cada bispo a responsabilidade de liturgo da sua Igreja local. Isso foi bom e justo. O papa propõe alguns critérios como o bem pastoral dos fieis e coloca regras restritivas visando o bem da Igreja e a unidade da Igreja. Deus queira que todos os bispos saibam realmente o que pensar sobre isso e formem critérios para discernir o assunto para além da obediência mecânica ao decreto.
Pessoalmente, fui ordenado em 1960, exatamente quando o rito do Vaticano II foi promulgado. Desde a primeira celebração eucarística na qual atuei como presbítero, nunca celebrei no rito anterior ao Concílio. No entanto, o conheci de perto, fui acólito de missas e conheci muitos padres santos que durante toda a vida celebraram neste rito. Agradeço a Deus ter sido formado no espírito da liturgia que tende a superar a concepção pagã antiga de sacrifício ritual e que vê a assembleia litúrgica como o primeiro sacramento da comunhão.
Mesmo no decorrer da minha caminhada de fé, fiz um longo e progressivo caminho de busca da intimidade divina que continua sempre um Mistério e, de modo algum, me considero como quem descobriu o tesouro. Sigo na busca, às vezes, angustiada e, às vezes, confortada pela presença de uma verdadeira nuvem de testemunhas (Hb 12, 1). Mesmo quando não vejo claro ou não sei o que pensar, minha opção de fé é seguir sempre, sempre na caminhada das Cebs e das pastorais sociais que me alimentam na fé.
Compreendo quando o papa afirma que, na história, a unidade da liturgia romana tem sido sempre um bem. Só gostaria de lembrar que isso foi feito nos séculos finais da Idade Média e em Trento sufocando e reprimindo a sadia e rica diversidade de tantas liturgias locais como a galicana, a mozárabe, a ambrosiana, a céltica e tantas outras que simplesmente foram extintas para que só sobrasse o rito romano.
Em si considero atualmente bom termos o rito romano como rito comum, mas em minha experiência pastoral, aprendi que há uma profunda diferença entre rito e estilo. Não vejo para que termos outro rito, mas gostaria sim que cada comunidade e cada celebrante não fosse apenas um robô mecânico repetindo palavras e gestos. Que cada Igreja local pudesse ter o seu estilo de celebrar, mesmo dentro da obediência ao mesmo rito. Estilo é o que faz com que o mesmo gesto e a mesma palavra ganhem vida e sangue cada vez e em cada local que são realizados. E que o memorial do Cristo ressuscitado possa ganhar nossa cor e nosso sotaque próprios.
Se eu pudesse acrescentar um parágrafo ao documento do papa Francisco, eu diria assim: Não adianta passar do rito tridentino ao rito do Vaticano II, se o bispo, padre celebram o rito do Vaticano II, mas os fazem tendo no coração o espírito da liturgia tridentina. Atualmente, ainda há algumas catedrais, mosteiros e paróquias, nas quais se celebram missas pontificais verdadeiramente tridentinas, só que no rito do Vaticano II. A pompa digna de uma corte medieval, mal transposta para hoje, o estilo barroco e a idolatria do poder sagrado se tornam mais fortes do que a própria Palavra de Deus. Provavelmente alguém de vocês que está lendo essas linhas vão se recordar de algumas celebrações de investiduras ou posses de bispos...
Não adianta ler o evangelho ou as leituras em língua vernácula e de acordo com a liturgia atual, se ela é sufocada por uma tal profusão de bugigangas rituais e tiques cerimoniais, que o estilo nega o que o rito quer de exprimir. A antiga missa pontifical em latim e no rito do Pio V ao menos continha uma gravidade que evitava a evidente mediocridade espiritual que esse tipo de pastiche, infelizmente, escancara.
O motu próprio do papa Francisco merece de nós não apenas obedecer às suas normas, mas ao seu espírito e assim retomarmos o princípio litúrgico do Lex orandi, lex credendi e podermos viver o louvor divino “pela transformação de nossas mentes e a oferta de nossas vidas como liturgia santa e agradável a Deus” (Cf. Rm 12, 1- 2).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Por trás das palavras, o Espírito (Ressonâncias pessoais ao Motu Proprio: Traditionis custodes) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU